Categorias: CINEMA

Projeto Flórida: a vida é melhor que um cruzeiro

Ao falar sobre a maneira como escreve, Tchékhov afirmou: “Contra todas as chamadas regras da arte, gosto de começar forte e terminar em pianíssimo”. Famoso por seus contos e peças de teatro, Tchékhov é considerado um grande mestre da escrita. Suas histórias são conhecidas por não terem nem começo nem fim — elas são como pedaços de vida. Para ele, a arte deveria representar “a vida como ela é na realidade”. Seus diálogos dizem menos nas palavras e mais naquilo que não está escrito; em suas peças, os eventos mais importantes são aqueles que acontecem fora do palco. “Que tudo no palco seja como na vida: as pessoas almoçam e só almoçam e ao mesmo tempo se forma sua felicidade ou quebra sua vida”.

Em um de seus contos mais importantes, “A Dama e o Cachorrinho”, a personagem chave, a dama, nunca é nomeada. São poucos os escritores que conseguem se aprofundar tanto na natureza humana a ponto de não precisar dar nomes para seus personagens. Não há nenhuma palavra supérflua na obra de Tchékhov, há apenas o estritamente necessário e, ainda assim, ele consegue descrever a fundo aquilo que é importante. Não é preciso grandes histórias, nem grandes personagens, o cotidiano e as pessoas comuns bastam, tanto para Tchékhov quanto para o filme Projeto Flórida.

No meio do nada da cidade de Orlando, Moonee (Brooklynn Kimberly Prince), Scooty (Christopher Rivera), Dicky (Aiden Malik) e Jancey (Valeria Cotto) brincam na rua e nos espaços vazios onde vivem. Futureland e Magic Castle poderiam ser os nomes dos parques do Disney World, mas, contra as expectativas, são os nomes dos motéis baratos de beira de estrada onde as crianças moram com suas famílias. Moone vive com a mãe, Halley, (Bria Vinaite) num quarto e passa as tardes das férias de verão brincando com seus amigos.

As crianças, que não passam dos oito anos, fazem campeonatos de cuspe nos carros dos inquilinos, entram em casas abandonadas e imaginam futuros possíveis, correm por gramados mal-cuidados, pedem trocados a turistas para comprar sorvete, brincam juntos o dia inteiro. Os adultos, por outro lado, precisam trabalhar. Os que perderam o emprego, como Halley, arranjam outras formas de conseguir pagar o aluguel, como revender perfumes baratos nas portas dos hotéis cheios de turistas. Não é preciso de muito para entender o contraste. Na verdade, não precisa de nada para explicar; a situação é dada desde o começo do filme. A câmera está de costas para os parques de diversão — o que a gente vê é a cidade de Orlando que não é a Disney.

Projeto Flórida

Assim como um conto de Tchékhov, Projeto Florida não precisa de começo nem fim; o que é mostrado é um pedaço da vida. Parece pouco, mas um pedaço de vida pode ser tão profundo quanto todo o conhecimento humano. Um pedaço de vida tem tudo: tem sentimentos, motivações, dificuldades, sofrimento. Tem crianças ainda vivendo no mundo lúdico infantil, mesmo que a crueldade do mundo adulto queira entrar com toda a força e corromper a proteção que há na ingenuidade.

Apesar de serem todos disfuncionais à sua maneira, os adultos do filme conseguem, também à sua maneira, proteger as crianças. Não de forma física ou efetiva, pois elas ainda passam as tardes livres, correndo soltas pela cidade, sem nenhuma supervisão. Mas de forma simbólica. Nenhum adulto revela a feiura que há no mundo ainda invisível para as crianças, nenhum adulto fala diretamente sobre dinheiro e as dificuldades quando não há o bastante, nenhum adulto corta as brincadeiras das crianças; ou eles as deixam livres, ou entram junto.

A câmera acompanha as crianças o tempo todo: “Quem mora aqui vai preso sempre”, Moone diz apontando para a porta de um quarto, “a mulher que mora aqui acha que é casada com Jesus”, explica Moonee, quando apresenta o lugar que mora para sua nova amiga, Jancey. Para nós, os espectadores, que já saímos do mundo ingênuo infantil, somos surpreendidos por todos os diálogos entre as crianças. Estamos tão acostumados com o mundo adulto retratado nos filmes, que uma fala de Moonee já nos desmonta por completo.

Projeto Flórida

Numa cena, o gerente do motel, Bobby (Willem Dafoe), está pintando a fachada do prédio enquanto observa as crianças brincando na beira da piscina. Ele vê um homem velho abordando as crianças e, imaginando o pior, resolve interferir e tirar o homem dali. Ele consegue afastar o homem, tirá-lo de perto das crianças, e só depois de sair do campo de visão delas, ele o expulsa do motel. O homem não era um hóspede, não era alguém conhecido e poderia ser uma ameaça para o mundo das crianças. A câmera acompanha o olhar de Moonee e Jancey, que não entendem direito o que aconteceu. Elas não precisam entender tudo, elas ainda são jovens demais para compreender todas as ameaças do mundo adulto.

A história só acontece quando as crianças estão presentes, até as histórias dos adultos. Só vemos Halley, ou Ashley (Mela Murder), mãe de Scooty, quando seus filhos estão presentes. Essa escolha só aumenta o contraste: mundo infantil versus mundo adulto; lúdico versus real; brincadeiras versus dificuldades. Mas não há julgamento de valor, não há cobranças, as crianças são livres porque elas ainda são crianças, elas não precisam entender as batalhas dos adultos. E todos à volta parecem querer manter essa proteção. O mundo adulto é cruel e não irá demorar até que ele consiga corromper o mundo infantil, mas enquanto for possível, as crianças ainda podem brincar livremente nos espaços vazios entre os motéis.

Com poucas palavras, o filme consegue apresentar sua história. Não é preciso muitos diálogos para entender o que acontece com os personagens. Na maioria das vezes, as imagens já dizem tudo. A linguagem cinematográfica é muito mais imagem que texto, e um dos grande êxitos de Projeto Flórida é conseguir mostrar sua história ao invés de contá-la. No calor do verão da Flórida, o mundo é todo em tons pastéis. As cores que Bobby pintou seu motel, as cores das roupas das crianças, a cor já desbotada do cabelo colorido de Halley. A relação entre os personagens vai além do espaço físico, estão todos conectados pela imagem, estão todos conectados pelo mesmo microcosmo. Os motéis de beira de estrada de Orlando abrangem mundos inteiros; ao mesmo tempo eles são consequências da realidade e da desigualdade social, e também são alheios ao resto. O contraste existe o tempo todo.

Perto do final, quando Halley não consegue mais manter o mundo adulto longe de Moonee, ela resolve levar a filha para comer o café da manhã em um hotel onde elas nunca poderiam se hospedar. A câmera foca apenas em Moonee, sentada na mesa, comendo, como se fosse a última ceia, a última refeição antes do trágico final. Feliz com a variedade, ela pode experimentar comer um morango e uma framboesa ao mesmo tempo (“que nojento!”), expressa seu desejo de existir doces em forma de garfos (“aí era só comer o garfo depois da refeição”) e de estar grávida, assim poderia encher a barriga com mais comida. A experiência se resume quando Moonee diz, de forma muito sensata e já cheia de comida: “isso sim que é a vida, cara, isso é melhor que um cruzeiro!” No final, Moonee ainda não está pronta para deixar o seu mundo infantil; no fundo, ninguém está, nem mesmo os adultos. Quando percebe o que será tirado dela, a menina foge, como se o universo adulto nunca pudesse alcançá-la. Ela só para de correr quando chega na casa de Jancey, e a amiga, vendo que Moonee está sofrendo, pega sua mão e as duas correm, fugindo para o único lugar onde o mundo infantil ainda impera, onde elas podem estar seguras: a Disney.

Citando Tchékhov novamente, é um final pianíssimo. Não é o desfecho do conflito, nem o início de um novo ciclo; o final de Projeto Flórida é fuga, é escape. É simbólico ao pensar que o mundo infantil acaba quando as crianças crescem, mas também é físico e real, pois Moonee e Jancey fogem para a Disney, um lugar construído para dar forma aos sonhos e desejos das crianças. É o desfecho perfeito: na disputa entre o que é simbólico e o que é real, não há vencedores nem palavras finais; a vida é uma mistura dos dois, e assim também é Projeto Flórida.

Projeto Flórida recebeu indicação ao Oscar, na categoria de: Melhor Ator Coadjuvante (Willem Dafoe).


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana C. Vieira.

1 comentário

  1. Que crítica gostosa de ler, parabéns pela atenção e carinho pra notar e discutir os detalhes desse filme tão bonito e pesado

Fechado para novos comentários.