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Enxame e o culto sagrado às celebridades

Produção original do Prime Video, Enxame, criada por Janine Nabers e Donald Glover, envolvido em Atlanta e na canção viral, “This Is America”, está sendo descrita como um “terror inspirado em Beyoncé, mas, na verdade, apresenta diversas camadas além desta ao explorar o lado obscuro da cultura pop e levantar questões sociais complexas.

Atenção: este texto contém spoilers!

Na série, Dre (Dominique Fishback) e Marissa (Chloe Bailey) são irmãs que dividem mais do que uma casa, uma condição financeiramente apertada e a mesma idade. Muito diferentes em personalidade, uma vez que a segunda é mais extrovertida e confiante, ao passo que Dre se permite relaxar e se abrir apenas com ela, se mostrando introspectiva e peculiar para o resto do mundo, ambas também compartilham a paixão de fã por Ni’Jah (Nirine S. Brown), uma estrela mundial, desde a infância.

Apesar de uma atitude questionável da família ao fim do primeiro episódio, não fica claro que elas compartilharam mais do que uma amizade de infância elevada ao nível da irmandade até os episódios finais da produção, que exploram como um acontecimento daquele primeiro ato turbulento se entrelaça de maneira perturbadora às suas jornadas pessoais por conta das atitudes de Dre. Enquanto Marissa está tentando encontrar seu lugar no mundo e deslanchar na carreira como maquiadora profissional, ao mesmo tempo em que tenta encaixar um relacionamento em sua vida, como praticamente todos os jovens de vinte e poucos anos, ou seja, se equilibrando na medida do possível entre expectativas e crua realidade, Dre se mantém reclusa em seu único interesse real: a cantora internacionalmente famosa, Ni’Jah.

Enxame

Não é coincidência que, em todos os sete episódios da produção, Enxame advirta: “Isso não é uma peça de ficção. Qualquer semelhança com pessoas reais, vivas ou mortas, ou eventos, é intencional”. A série não está fazendo esse tipo de “disclaimer” como um recurso para chamar a atenção e deixar o público mais atento aos acontecimentos explorados em tela, procurando por easter eggs. A estrela maior da produção, Ni’Jah, não é somente inspirada em Beyoncé. Ela é Beyoncé, em estética, aparência, sonoridade, timbre de voz, narrativas, prêmios, conquistas, estratégias de marketing, e, inclusive, polêmicas. Para além de literalmente fazer referência a eventos importantes que marcaram a carreira da cantora, como o show quebrador de barreiras do Coachella 2018 (que ficou conhecido como Beychella), Enxame brinca com a história pessoal de Beyoncé e Jay-Z, dando para Ni’Jah um marido que os fãs apenas toleram, uma irmã com quem é comparada e uma briga fictícia dentro de um elevador, que coloca o trio no centro das atenções. Contudo, o principal está em seu fã-clube oficial, a BeyHive.

Na série, o grupo de fãs denominado The Hive é considerado um “enxame” por conta de seu modus operandi: em fóruns nichados ou em redes sociais, grupos organizados de fãs (fandom), muitas vezes, simplesmente não permitem que terceiros toquem no nome “sagrado” de seus ídolos máximos de forma leviana. Ante a menção a uma ofensa, é função deste “enxame” de abelhas agir coletivamente em nome da… Abelha Rainha, ou seja, a Queen Bey. Pessoas como Dre, que existem na vida real, se levantam aos montes por trás de computadores e celulares para liderar respostas, que rapidamente se transformam em ataques virtuais por conta do volume dos grupos, àqueles que expressaram uma opinião supostamente inaceitável sobre seus ídolos. Isso porque, em época de Twitter, Instagram e TikTok, o culto à imagem é totalmente exacerbado.

Se nos anos 60, com os Beatles, nascia a “Beatlemania”, a qual elevou o movimento do fã a um patamar jamais visto até então, em um período onde o acesso ao artista, sua obra e, principalmente, sua personalidade e vida pessoal é supostamente maior, a falta de controle se mostra proporcional à histeria.

Não foram uma nem duas as estrelas perseguidas por fãs em suas próprias residências, um local onde, supostamente, a face pública de suas personalidades pode ser colocada de lado por um momento em nome da normalidade. Enquanto Billie Eilish foi alvo de um stalker que se mantinha à espreita em sua casa, Rihanna teve a sua invadida por um homem que desejava se  casar com ela e John Lennon foi assassinado por alguém que pediu um autógrafo antes do ato final.

Enxame

É claro que o fato de a produção explorar o fandom de Beyoncé é apenas uma alegoria para se referir aos diversos fandoms de inúmeros artistas que agem exatamente da mesma forma quando um alvo é determinado por “n” motivos, de forma que cabe ao público fazer sua própria interpretação sobre cultura pop no tempo das redes sociais. Porém, também denota sua importância para a indústria do entretenimento pós-anos 2000 e, por isso, não se trata de uma escolha aleatória para a produção de alguém como Donald Glover.

Em uma época onde a internet sequer tinha o alcance de hoje, a cantora tomou o mundo com “Single Ladies” em uma estética e letra empoderadas, que marcaram não apenas sua carreira, mas a música mundial. Além de hits imediatamente reconhecidos, nos anos 2010, Beyoncé ficou conhecida por mudar o direcionamento de sua carreira. Mais reservada, inovou na estratégia de lançamento do álbum autointitulado, investiu em uma estética luxuosa, passou por dramas familiares públicos que se tornaram parte de sua “mitologia”, mergulhou de vez em suas origens e referências sonoras do hip-hop até o country texano, além de incorporar permanentemente em seu trabalho a bandeira do ativismo negro. Mas, mais importante ainda, Beyoncé se transformou em uma artista que compreende muito bem seu público.

Existe uma esquete feita pelo programa de humor ácido Saturday Night Live sobre “O Dia Que Os Brancos Descobriram Que Beyoncé É Negra”, que transmite perfeitamente tal mudança. Em 2016, quando a cantora lançou o single, “Formation”, como pontapé inicial para o álbum Lemonade, pouco antes de um Super Bowl em que usava um figurino que fazia referência a Michael Jackson e ao Partido dos Panteras Negras estadunidense, a mulher que era simplesmente tratada como uma uma “Diva Pop” comum se transformou em uma “Diva Pop Negra e Militante” em razão das escolhas criativas de seu novo trabalho.

De fato uma ode à cultura negra nos Estados Unidos, invertendo padrões opressivos para colocar os negros em posição de poder, e um mergulho em suas raízes africanas, Lemonade mudou a visão que pessoas brancas tinham de Beyoncé — mesmo seus fãs. Ou seja, ainda que antes a cantora possuísse como referências óbvias mulheres como Tina Turner e Donna Summer, quando essas referências se tornaram políticas e Beyoncé deixou de aceitar o “natural” embranquecimento promovido pela indústria, dando um passo claro na direção da ousadia, liberdade e poder sob o viés racial, tomando as rédeas da narrativa para si como poucos já ousaram e/ou conseguiram fazer, foi demais: sua música passou a ser considerada “música para negros”.

Enxame

Ainda assim, o movimento elevou a cantora a um patamar quase inalcançável de artista. Em sua obra, Beyoncé propositalmente invoca para si a imagem de algo sacro, distante, de forma quase sobrenatural e onipresente, como uma deusa negra. Em 2017, durante uma apresentação do Grammy, ela subiu ao palco em uma clara referência à iconoclastia religiosa ligada à maternidade: no look inteiramente dourado com um véu e até uma auréola do estilista Peter Dundas, grávida, poderia se tratar de uma referência à Oxum, deusa de matriz afro, Shiva, entidade do credo indiano, ou a Virgem Maria da religião cristã. Todas elas evocam o poder criador da figura feminina, algo que casava com seu momento pessoal, mas que não se tratava de um mero conceito performático. De lá para cá, Beyoncé investiu cada vez mais em uma imagem sagrada, que, como nas religiões comuns, evoca o fanatismo de seus seguidores.

Ni’Jah é retratada exatamente da mesma maneira em Enxame. Ninguém canta como ela, ninguém entrega performances como ela, ninguém coleciona sucessos como ela, ninguém tem o caráter dela, ninguém compreende a comunidade negra como ela. Por isso, Dre se sente imediatamente abraçada por sua obra e “filosofia”. Vinda de um lar disfuncional, trata-se de uma pessoa que sempre se viu deslocada, desde a infância, e que, como parte do fandom de Ni’Jah, encontrou uma forma de se encaixar em algo maior, algo que tivesse sentido.

A questão é que todo o sentido da vida de Dre está em torno da dependência que desenvolveu pela figura de Ni’Jah através da proximidade que diz sentir dela. Afinal, Ni’Jah a compreende como ninguém, as músicas de Ni’Jah foram responsáveis por conferir a ela confiança, poder e independência em relação ao mundo, por fazê-la se sentir como uma mulher normal em meio à sua disfuncional solidão e, por isso, a descreve como uma amiga.

Para Dre, trata-se praticamente do mesmo tipo de relação que possui com Marissa. Por isso, não é coincidência que todos os acontecimentos da série sejam engatilhados por conta de algo relacionado à amiga, pois é nela que a protagonista deposita toda a sua energia, toda a sua esperança de normalidade, todo o seu esforço para ser aceita e compreendida, sem jamais considerar fazer isso em nome de si mesma. Trata-se de uma decisão inconsciente, mas compreensível para quem vê de fora: é mais fácil projetar no outro suas expectativas, é mais fácil viver através da vida do outro, dentro e fora das telas, o que é muito comum atualmente. Assim, sem Marissa para projetar a realidade em seu entorno, Dre motiva suas ações inteiramente em nome de Ni’Jah. É neste ponto, então, que as coisas ficam sangrentas.

A produção exige alguma suspensão da descrença do público em razão de algumas facilitações de roteiro. Com episódios de cerca de trinta minutos, tudo dá certo para que Dre persiga suas vítimas para vingar sua deusa maior. Trata-se de uma cruzada que parte da interpretação idólatra que o público confere aos ídolos da cultura pop, como se as guerras travadas na internet se equiparassem aos antigos conflitos em nome de líderes da igreja ou da política, tendo em vista que todos se posicionam, tanto na antiguidade, como atualmente, de forma mais superficial, em defesa de um determinado ideal.

Enxame

Longe de os atos de Dre serem incentivados por Ni’Jah — ou que qualquer outra pessoa chegue ao extremo que ela chegou por conta de um artista da vida real —, Enxame retoma a reflexão sobre o modus operandi da indústria do entretenimento, que concentra seus lucros justamente em cima de pessoas fascinadas por figuras que, no fim do dia, são criadas para fascinar e, ao mesmo tempo, serem exploradas; um feito que apenas Hollywood consegue equilibrar.

Em 2007, Britney Spears foi mais do que certeira ao cantar sobre seus rótulos, questionando o fato de todos quererem um pedaço dela em “Piece of Me”, uma canção que retrata bem a falta de equilíbrio que rege a relação público-artista-mídia. Com Beyoncé, a necessidade de se conseguir esse pedaço ultrapassou a simples metáfora. No ano de 2018, a comediante Tiffany Hadish revelou que uma atriz havia mordido a cantora no rosto, após ser “esnobada” pela estrela e seu marido, que eram os anfitriões da festa em que estavam. A história viralizou, é claro, e entrou para o hall das mais bizarras da cultura pop, sendo referenciada em Enxame, afinal, o ídolo de Dre é tão “irreal” que parece necessário conseguir esse pedaço para provar sua existência e, neste caso, até sua humanidade.

Na série, é claro, as inspirações são levadas ao limite por um roteiro que tem propriedade de si mesmo. Glover e Nabers sabem o que querem explorar diretamente, especialmente a julgar pelo nível de pesquisa sobre eventos reais que aparecem na produção, assim como sabem o que deixar em camadas para os olhos mais atentos, não somente em relação à cultura pop. Bullying, solidão, privilégio branco, transtornos alimentares e sexualidade são alguns dos temas que rodeiam a produção, que se mostra curta demais para abarcar a complexidade de Dre.

Em certo ponto, embora se trate de uma história elaborada na medida da crença do espectador quanto às atitudes criminosas da protagonista, que conta com nomes da indústria como que para corroborar que tudo explorado ali não é tão absurdo quanto parece ser, como Paris Jackson e Billie Eilish, a qual estreia muito bem no papel de uma líder de seita, é como se faltasse um pedaço no desenvolvimento da personagem, um peça para explicar os saltos em suas atitudes e escolhas, e não houvesse tempo para adentrar na história interessante que a coadjuvante, Marissa, parece ter — vez que se concentra inteiramente no ponto de vista da outra.

Ainda assim, Enxame se sobressai em criatividade e se mostra uma produção fora do convencional e do mainstream, mesmo que trate diretamente de cultura pop — ou, de um lado feio da cultura pop —, deixando no ar a questão: como a equipe jurídica de Beyoncé autorizou uma série como esta?