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Zuzu Angel, Stuart e a luta contra a ditadura

14 de abril de 1971. Stuart Edgar Angel Jones é assassinado após ser sequestrado por militares nas proximidades do aparelho¹ em que vivia, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Levado para o Centro de Informações da Aeronáutica (CISA), no aeroporto do Galeão, Stuart é brutalmente torturado e deixado para morrer, tornando-se uma das muitas vítimas da ditadura militar brasileira (1964-1985).

Integrante do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), do qual se tornaria um dos dirigentes em 1969, Stuart se envolveu com a militância política ainda na universidade, quando iniciou o curso de Economia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e passou a integrar o Movimento Estudantil, onde também viria a conhecer sua futura esposa, Sônia Maria Lopes de Moraes (Sônia seria assassinada pelos militares em 1973, após viver alguns anos exilada na França e no Chile). Em tempo, o casal se juntaria ao MR-8, à época ainda chamado Dissidência do Rio de Janeiro (DI-RJ), sendo posteriormente rebatizado em memória da prisão de Ernesto “Che” Guevara, ocorrida em 8 de outubro de 1967.

Zuzu Angel

De acordo com o ex-deputado Márcio Emanuel Moreira Alves, censura, tortura e mortes já eram comuns no Brasil desde o primeiro ano do golpe militar, o que seria corroborado pela Comissão Nacional da Verdade, entre 2011 e 2014 — portanto, muito antes da existência de grupos de guerrilha e luta armada. Ainda assim, em dezembro de 1968, foi instaurado o Ato Institucional nº 5 (AI-5), considerado o mais duro dos Atos Institucionais, responsável por fechar o Congresso Nacional, pela supressão de direitos, punições mais violentas para opositores do governo, a cassação de mandatos, etc. Segundo a historiadora Beatriz Kushnir, na mesma noite em que foi decretado, redações por todo o país receberam listas do que poderia e do que não poderia ser veiculado nas publicações. Além disso, uma matéria especial sobre o AI-5 do site Biz Evolution dá conta de que 500 filmes, 450 peças, 200 livros e 500 músicas foram censuradas pelos militares.

A luta contra a ditadura tornou-se, portanto, mais perigosa. Em maio de 1969, já sob o AI-5, Sônia e mais três estudantes foram presos enquanto participavam de uma manifestação estudantil. A liberdade veio apenas em agosto e, uma vez absolvida pelo Superior Tribunal Militar, ela decidiu exilar-se na França. Stuart, contudo, permaneceria no Brasil. Era a última vez que o casal se veria.

A morte de Stuart também marcaria um ponto de virada na vida de sua mãe, a estilista Zuzu Angel, que, na busca pelo filho desaparecido, iniciou a sua própria luta contra a ditadura militar — o que, não muito tempo depois, também lhe custaria a própria vida.

Zuzu Angel

Nascida Zuleika de Souza Netto, em Curvelo, Minas Gerais, Zuzu pertencia a uma família humilde e aprendeu a costurar ainda muito pequena para ajudar a mãe nas despesas de casa. Após passar a infância em Belo Horizonte, mudou-se para Salvador, onde viveu a adolescência e os primeiros anos da vida adulta, mas foi no Rio de Janeiro onde alcançou maior êxito profissional e destacou-se como estilista, abrindo sua primeira loja de roupas. Em tempo, as cores, tecidos e temáticas tipicamente brasileiras (natureza, folclore, etc.) utilizadas por Zuzu em seu trabalho, torná-la-iam famosa também no exterior, levando a moda brasileira cada vez mais longe (artistas como Joan Crawford, Liza Minelli e Kim Novak eram algumas de suas clientes).

Paralelamente ao sucesso profissional, Zuzu conheceu o estadunidense Norman Angel Jones, com quem viria a se casar em 1943. Após dois anos vivendo no Rio de Janeiro, o casal mudou-se para Salvador, onde Zuzu e Norman tiveram seu primeiro filho, Stuart. Em 1949, e já morando novamente no Rio de Janeiro, Zuzu deu à luz sua segunda filha, Hildegard Angel Jones, e, em 1952, à sua filha caçula, Ana Cristina Angel Jones. Norman e Zuzu se separaram oito anos depois, em 1960. Após a separação, Norman passaria a viver em Minas Gerais, ao passo que Zuzu permaneceria no Rio de Janeiro com os três filhos pequenos.

O golpe de 1964 não tornou Zuzu uma artista imediatamente ativa contra a ditadura, como não o fez o envolvimento de Stuart com a militância política (Zuzu tinha conhecimento sobre a ligação do filho com a resistência, mas não sobre a extensão de seu papel nela) —, mas ela tampouco era a favor dele. A partir do desaparecimento de Stuart, no entanto, essa atitude se transfigura: Zuzu deixa de ser uma cidadã passiva diante da política brasileira para se tornar uma figura essencial, que utilizava a própria visibilidade dentro e fora do território brasileiro a fim de chamar a atenção para os crimes cometidos pelo regime militar. De fato, sua busca se iniciara de forma muito básica, com os próprios militares (o que significou até mesmo tentar uma aproximação com a ex-primeira-dama Yolanda Barboza da Costa e Silva, sem sucesso), e é somente na ausência de quaisquer esclarecimentos que sua abordagem passa a ser mais incisiva.

A confirmação da morte de Stuart viria pouco tempo depois, com a carta de Alex Polari — também guerrilheiro, também preso à mesma época —, na qual este narra os últimos momentos da vida do jovem. Na carta, Polari afirma que assistira à tortura infligida a Stuart da janela de sua cela; que este havia sido amarrado a um carro, arrastado pelo pátio do quartel e obrigado a colocar a boca no escapamento do veículo para aspirar seus gases tóxicos, e pedira água noite adentro até, por fim, falecer; seu corpo, então, teria sido transportado de helicóptero e jogado em alto-mar pelos assassinos. O enterro como indigente, entretanto, permanece uma possibilidade, como apontam Reinaldo Cabral e Ronaldo Lapa, no livro Desaparecidos Políticos — alternativa reforçada pelo ex-sargento José do Nascimento, da Base Aérea de Santa Cruz, que afirmou, em depoimento à Comissão Nacional da Verdade, ter recebido uma visita noturna do grupo responsável pela morte de Stuart e os observou enterrar alguém que, conforme soube mais tarde, havia sido morto nas dependências da Base Aérea do Galeão.

“Minha senhora, esse é para mim um assunto doloroso e sei que deverá ser ainda mais doloroso para a Sra. Não é fácil descrever as coisas de forma tão crua, mesmo sabendo que estarei destruindo a esperança que, por mais irreais que possam ser, sempre permaneceram com uma mãe aflita pelo desaparecimento de um ente querido.”  — Trecho da carta de Alex Polari à Zuzu Angel

Devido à dupla cidadania estadunidense de Stuart, Zuzu encaminhou a carta de Polari ao senador Edward Kennedy, que denunciou o caso no Congresso dos Estados Unidos. Ainda em 1971, Zuzu utilizou sua arte como forma de protesto e, em um desfile na cidade de Nova York, apresentou peças com estampas de manchas que imitavam sangue, pássaros engaiolados, motivos bélicos e um anjo ferido e amordaçado. A própria Zuzu vestia-se toda de preto na ocasião.

Embora esse seja seu ato mais memorável, aquele que lhe rendeu maior projeção, sobretudo na imprensa internacional, onde ficou conhecido como o primeiro desfile-protesto da história (no Brasil, devido à censura, foi documentado como se inspirado por motivos infantis), ele está longe de ser o único. Durante a visita do secretário estadunidense Henry Kissinger ao Brasil, Zuzu furaria sua segurança para lhe entregar um dossiê sobre a morte do filho e, ao final de uma viagem de avião, pouco antes de pousar no Rio de Janeiro, utilizaria o microfone de bordo das comissárias para falar sobre os crimes cometidos em território brasileiro sob o regime militar. Em tempo, Zuzu também conseguiria documentos que provariam o assassinato de seu filho pelo Estado brasileiro.

Pouco a pouco, suas ações passaram a surtir efeito, desgastando a imagem da ditadura brasileira no exterior e tornando a própria Zuzu um incômodo para aqueles que permaneciam no poder. Era, portanto, uma questão de tempo até que ameaças começassem a acontecer — e elas realmente começaram. Nada que fosse suficiente para pará-la, no entanto (a essa altura, sua nora, Sônia, também havia sido assassinada). Em 1975, temendo que algo pudesse acontecer a si própria, Zuzu escreveu cartas a alguns amigos (entre eles, o cantor e compositor Chico Buarque de Hollanda), nas quais afirmava que, se algo lhe acontecesse, teria “sido obra dos assassinos do meu amado filho”.

De fato, a luta de Zuzu só chegaria ao fim com a sua própria morte. Na madrugada do dia 14 de abril de 1976, a estilista sofreu um atentado — à época tratado como acidente —, enquanto dirigia pelo Túnel Dois Irmãos (atual Túnel Zuzu Angel), no qual teria supostamente perdido o controle do seu veículo e colidido com a mureta de proteção da pista, capotando e caindo de uma altura entre cinco e dez metros. Somente em 1998, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos do Ministério da Justiça concluiria que sua morte teria sido causada por agentes do regime militar: em depoimento, Marcos Pires disse à Comissão ter visto o carro de Zuzu ser fechado por outros dois veículos propositalmente, ao contrário do que afirmavam documentos da época, que cogitavam que a estilista tivesse ingerido bebida alcoólica antes do acidente. Além disso, outra testemunha, Lourdes Lemos de Moraes, comprovou, também em depoimento, a recente revisão do carro, o que excluía a possibilidade de falha mecânica.

Em 2014, durante a Comissão Nacional da Verdade, a evidência de que o suposto acidente fora, na realidade, um atentado contra a vida de Zuzu, tornar-se-ia mais forte. Em uma fotografia feita logo após o acidente e analisada pela Comissão, o ex-delegado do Departamento de Ordem Política e Social do Espírito Santo (DOPS-ES) reconheceu o ex-coronel do Exército e torturador responsável pelo atentado contra Angel a poucos metros do carro destruído da estilista — uma prova irrefutável do envolvimento das Forças Armadas em sua morte. Assim, em 2019, foi emitida uma nova certidão de óbito, na qual atribuía sua morte à causa “não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro, no contexto da perseguição sistemática e generalizada da população identificada como opositora política ao regime ditatorial de 1964 a 1985”.

“Quem é essa mulherQue canta sempre esse estribilhoSó queria embalar meu filhoQue mora na escuridão do mar”

A história de Zuzu e Stuart Angel continuaria a ser revisitada de diferentes maneiras ao longo dos anos. Em 1977, Chico Buarque compôs a música “Angélica”, na qual versa sobre a luta da amiga em busca do filho, mas essa seria apenas uma dentre as muitas homenagens e representações póstumas de ambos. Em 1986, apenas um ano após o fim da ditadura, é publicado Eu, Zuzu Angel, Procuro Meu Filho, que reconta a história de mãe e filho sob a perspectiva de Virginia Valli, irmã de Zuzu. Dois anos mais tarde, José Louzeiro publicaria Em Carne Viva, romance livremente baseado na trajetória de Zuzu e Stuart.

Em 1998, a Escola de Samba Em Cima da Hora desfilaria o enredo “Quem é Você, Zuzu Angel? Um Anjo Feito Mulher?” em homenagem à estilista. O estilista Ronaldo Fraga também homenagearia Zuzu: em 2001, ele criou a primeira de duas coleções dedicadas à estilista, intitulada “Quem Matou Zuzu Angel?”; a segunda, chamada “Zuzu Vive”, seria lançada em 2020. Mais recentemente, a jornalista e escritora Débora Thomé, dedicou uma parte do livro 50 Brasileiras Incríveis para Conhecer Antes de Crescer à luta da estilista, ao passo que Zuzu, de David Massena, lançado em 2019, traz a sua história em uma versão voltada para o público infantojuvenil.

Em 2003, o programa Linha Direta levou o caso à televisão, com a atriz Zezé Polessa no papel da estilista e o ator Mateus Solano como seu filho. Três anos depois, em 2006, Patrícia Pilar protagonizaria o filme Zuzu Angel, de Sérgio Rezende, com Daniel de Oliveira no papel de Stuart. Em entrevista, a atriz chegou a comparar Zuzu a Antígona, personagem da dramaturgia grega que desafia a autoridade do Rei Creonte para sepultar o irmão — uma comparação que continua a fazer sentido. Ela não foi a única: Zuzu é apenas uma entre as muitas mães que não puderam enterrar seus filhos; ao lado do filho e da nora, uma entre as muitas vítimas de um período sombrio da história brasileira — e são suas vozes que, afinal, merecem ser lembradas.


¹ Durante a ditadura militar, os aparelhos foram locais usados como abrigo de guerrilheiros e membros da resistência política, realização de reuniões, armazenamento de livros e material de propaganda, além de dinheiro e armas, etc.