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Um dia em Londres com Mrs. Dalloway

O primeiro contato que tive com Virginia Woolf foi por meio da sua obra Ao Farol, uma leitura boa, mas que não suprimiu minha curiosidade sobre a famosa autora inglesa, tampouco arrebatou meu coração da forma como eu esperava. Um Teto Todo Seu ainda está na prateleira, aguardando ser lido em 2018. Foi com Mrs. Dalloway, portanto, que eu entendi um pouco mais sobre o encanto de Woolf. Publicado em 1925, a trama de um dos livros mais famosos da autora se desenvolve na Inglaterra pós-Primeira Guerra Mundial e narra um único dia em junho de 1923 — uma quarta-feira —, em que Clarissa Dalloway, uma socialite com mais de cinquenta anos, casada com Richard Dalloway, um político conservador, está preparando uma grande festa.

De grosso modo, Mrs. Dalloway soa como uma leitura pacata, não fosse a peculiaridade e inquietude que ela transmite a quem a lê. Em suas pouco mais de 200 páginas, Mrs. Dalloway demonstra ser muito mais um livro sobre sentimentos, fluxos de pensamentos e anseios, do que o real planejamento de uma festa para a nata da sociedade inglesa. O livro inicia com Clarissa Dalloway escolhendo as flores para a festa da noite (“Mrs. Dalloway disse que ela mesma iria comprar as flores”) e, embora seja ela a responsável por dar nome à obra, sua vida e sua narrativa coexistem com dezenas de outros personagens igualmente interessantes. Por coabitarem um mesmo espaço e um mesmo pano de fundo — uma Londres entreguerras —, os personagens se interligam, mas de maneira rápida, quase imperceptível, o que torna fácil se perder na leitura: sem a divisão em capítulos ou uma ordem linear, o livro se desenvolve à base de uma enxurrada de descrições, emoções, ideias e ideais, que pulam de um personagem a outro, em mudanças de cenas pouco demarcadas, e que acabam, por vezes, deixando o leitor confuso. Seu ritmo é frenético e soa muito pessoal; Virginia parece ter deixado muito de si em cada um de todos os personagens. Essa característica marcante do livro é também o seu trunfo: quando nos acostumamos com o estilo de escrita da autora, a leitura flui.

O fluxo — ou melhor, dilúvio — de consciência dos personagens conta um pouco de suas percepções do presente e do passado, sobre si e sobre os outros. O livro vai, vem, estaciona e retoma o ciclo novamente. Por se tratar de uma realidade entre guerras, há também a ressaca desse período pairando no ar, como no caso da história pessoal de Septimus Smith, um veterano da guerra que teve que aprender a engolir sentimentos, enxergar a morte com apatia e, mais tarde, sofre com o estresse pós-traumático e a depressão ocasionados pela sua experiência — tanto quanto o leitor, que é convidado a interpretar por si só, é levado a crer. Incompreendido por seus médicos, visitamos a consciência de Septimus em alguns momentos, suas ideias desconexas e entendemos o porquê de elas existirem. Septimus é considerado o personagem contraposto à Clarissa: suas realidades nada têm a ver uma com a outra, mas, eventualmente, se cruzam. Ao lado de Septimus está Lucrezia Smith, a esposa imigrante italiana, que sofre ao enxergar seu marido não-doente, e sofre por, solitária, não ter mais o seu marido, bem dizer.

Peter Walsh é mais um dos grandes peões da história. Peter é um amigo de longa data de Clarissa, a quem ela rejeitou a proposta de casamento há mais de trinta anos. Assombrado pela rejeição e por seu longínquo sentimento por Clarissa, Peter está de passagem por Londres a fim de arranjar o divórcio de Daisy, com quem planeja se casar. Peter é constantemente arrebatado por crises existenciais e possui pensamentos e língua afiada — ainda que diálogos não sejam o forte da obra. Sally Seton, por sua vez, é conhecida de Clarissa desde muito jovem, uma grande amiga da família. Vivaz, intensa, dramática e alegre, Sally pode ser considerada um dos interesses românticos da protagonista; quando jovens ambas compartilharam um beijo, do qual Clarissa nutre muito carinho e se recorda até os dias atuais. Da mesma forma, conhecemos um pouco sobre Elizabeth Dalloway, jovem de 17 anos filha de Clarissa e Richard. Elizabeth é mais apegada ao pai, com quem prefere visitar o interior à frequentar as festas da mãe. Silenciosamente, Clarissa disputa Elizabeth com Miss Kilman, uma professora de história e cristã, com quem Elizabeth passa horas, para o horror de sua mãe. Da mesma forma, Miss Kilman, ao seu tempo, desgosta fortemente de Clarissa — e o sentimento é mútuo. De maneira orgânica é possível explorar um pouco sobre cada personagem.

“A partir de agora, nunca mais diria de ninguém que a pessoa era isto ou aquilo. Ela se sentia muito jovem; ao mesmo tempo, inconcebivelmente velha. Passava por tudo como uma faca afiada; ao mesmo tempo, ficava de fora, contemplando. Tinha uma sensação permanente, olhando os táxis, de estar longe, longe, bem longe no mar e sozinha; sempre era invadida por essa sensação de que era muito, muito perigoso viver, ainda que por um dia.”

Mrs. Dalloway foi um dos primeiros grandes romances de Virginia Woolf, seguido por Rumo ao Farol (ou apenas Ao Farol), Orlando e o ensaio Um Teto Todo Seu. Considerada um dos grandes nomes do modernismo e da literatura inglesa, é característico da autora escrever obras de intenso teor psicológico e emocional, e Mrs. Dalloway não foge à regra. É possível observar tópicos de alta relevância social permeados durante a obra, como a bissexualidade e homossexualidade, ou a crítica ao tratamento dado aos problemas psicológicos, ainda que não explicitamente descritos ou panfletários. Embora se trate de um livro que se passa durante o período entre Primeira e a Segunda Guerra Mundial, o que inevitavelmente data a sua ambientação, Mrs. Dalloway é muito certeiro em tudo relacionado ao sentir: o vai e vem incessante e muito real de pensamentos e julgamentos que nós, meros mortais, vivenciamos todos os dias.

É impossível ler Mrs. Dalloway e não enxergar os paralelos que podem ser traçados com a vida da própria autora. Nascida em 1882, Virginia Woolf é considerada uma grande romancista feminista, que batalhou desde muito nova contra colapsos nervosos e distúrbios da mente, em especial após a morte da sua mãe em 1895, a morte de seu pai em 1904 e a morte de seu irmão, dois anos depois. Em 1941, temendo um novo surto de sua doença mental, conforme explica em um bilhete deixado ao marido Leonard Woolf, Woolf cometeu suicídio por afogamento. A autora também é conhecida por ter vivido um romance com a poeta Vita Sackville-West durante dez anos, romance este que inspirou o livro Orlando. O relacionamento de Vita e Virginia era de conhecimento do seu círculo de amigos e até mesmo de seu marido, e ganhará esse ano uma versão adaptada para o cinema. Saber disso faz com que as histórias de Septimus Smith ou Sally Seton em Mrs. Dalloway mudem um pouco de tom e ganhem ainda mais atenção e carinho.

Ler Mrs. Dalloway não foi fácil. No começo da leitura penei para acompanhar seu ritmo, facilmente me perdi entre as mudanças de cenas, e não mais de uma vez me perguntei se acompanhava o fluxo de pensamento do mesmo personagem que um parágrafo atrás (diversas vezes, não), mas quando engrenei no estilo, foi para deslizar. Nas páginas finais entendi que o livro é um pouco mais do que eu esperava e, ao mesmo tempo, nada do que eu esperava. É, de fato, uma experiência única e muito marcante, que deixa óbvio que a autora tinha muito talento pra fazer o que fazia. Se alguém ainda tem medo de Virginia Woolf, Mrs. Dalloway é a melhor pedida para fazê-lo se dissipar.

Mrs. Dalloway

O exemplar foi cedido para resenha por meio de parceria com a Editora Companhia das Letras.


** A arte em destaque é de autoria da nossa colaboradora Carol Nazatto. Para conhecer melhor seu trabalho, clique aqui!

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