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A Primeira Comunhão escolhe o caminho mais fácil em um subgênero com possibilidades ilimitadas

O sobrenatural é o estilo mais antigo de cinema de horror. As suas origens estão ligadas ao surgimento do próprio gênero, que data de 1896, ocasião na qual George Mèlies filmou o curta-metragem A Mansão do Diabo. Nele, o diretor aparecia como Mefistófeles, um personagem surgido na Idade Média que se tornou conhecido como uma das encarnações do mal e um aliado de Lúcifer. Usando de capacidades como desaparecer e se transformar em um morcego, Mefistófeles assombrava dois cavaleiros que entraram desavisados em um castelo.

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Embora para quem assiste hoje o filme não seja assustador, A Mansão do Diabo reúne elementos que continuariam sendo usados no horror, sendo o principal deles o simbolismo católico. Essa retomada constante da religião no cinema de gênero está ligada, principalmente, a dois medos bastante comuns no ocidente: o medo da morte e o medo da própria religião.

Tais temores estão intrinsecamente conectados. Enquanto o medo da morte surge na forma de um questionamento a respeito do que acontece uma vez que a existência terrena se finda, a religião é a responsável por responder essa pergunta com uma boa dose de intimidação: existe um céu se você for uma boa pessoa e um inferno caso você não seja. Essa é uma visão maniqueísta e que reduz a vida humana a relações de causa e efeito, certo e errado. Além disso, a fé católica também aparece no horror como uma ferramenta de controle, visto que oferece os elementos necessários para que os personagens lidem com o seu medo: cruzes para enfrentar vampiros, exorcismos para libertar garotinhas inocentes e a própria igreja como um território capaz de oferecer proteção.

A Primeira Comunhão

A partir disso, é possível perceber uma dualidade bastante interessante nesse tipo de símbolo e ela foi explorada de maneira brilhante em clássicos como O Exorcista (1973) e A Profecia (1976). Outros títulos mais recentes, como Inovação do Mal (2013), Mártires (2008), O Exorcismo de Emily Rose (2005) e A Bruxa (2015) também se valem dessas questões para construir a tensão em suas narrativas, sempre de maneira inventiva, o que nos permite concluir que, ainda que o sobrenatural seja um estilo antigo de horror, ele rende boas produções graças às diversas possibilidades de exploração dos seus elementos.

Quando as histórias deste subgênero são feitas fora dos Estados Unidos, isso se torna ainda mais interessante porque abre espaço para que ritos distintos sejam abordados de acordo com o seu significado em culturas menos hegemônicas. Incialmente, esse parece ser o caso de A Primeira Comunhão, de Victor García, produção espanhola que chegou às salas de cinema brasileiras no dia 9 de março.

Ainda na primeira cena do longa, assistimos à cerimônia da primeira comunhão de Judit (Olimpia Roch), uma garotinha que pertence a uma família pobre. Esse recorte de classe se mostra importante devido à forma como o rito é conduzido na Espanha e à relevância cultural que ele tem, especialmente no interior do país. A celebração religiosa conta com a participação de crianças que têm entre 8 e 10 anos de idade e é assistida pelos seus entes queridos, sendo considerada um motivo de comemoração. Assim, é importante pontuar que o luxo está presente nos mínimos detalhes, de maneira que os preparativos chegam a custar, em média, 2,5 mil euros, o equivalente ao salário mensal de algumas famílias.

A Primeira Comunhão

Esses pontos estão presentes de forma orgânica na cena destacada, de modo que A Primeira Comunhão dá a entender que essa celebração terá alguma importância para a trama, sendo explorada com maior profundidade no seu decorrer. Porém, depois que Remedios (Anna Alacrón) aparece em cena perguntando por Marisol (Sara Roch), a sua filha desaparecida cinco anos antes durante a mesma cerimônia, a temática perde força, porque o roteiro parece se interessar por coisas demais e não consegue articular todas as suas possibilidades. Assim, elas nunca são colocadas a serviço do que deveria ser a trama principal.

Infelizmente, a religiosidade é abandonada em prol da narrativa de Sara (Carla Campra), uma jovem recém-chegada à cidade que tenta se adaptar à sua nova vida enquanto navega por uma série de questões típicas da adolescência. Mesmo quando coisas estranhas acontecem na vida da garota e ela decide investigá-las com a ajuda da igreja, o simbolismo católico somente surge em tela na forma de jumpscares simplórios. Quando se fala sobre isso, o mais óbvio é ressaltar a risível maquiagem dos fantasmas, que não consegue atingir o impacto pretendido. Contudo, a questão extrapola esses aspectos.

Primeiramente, é importante citar que o jumpscare é uma técnica bastante antiga no cinema de horror. Em linhas gerais, ela pode ser definida como o ato de provocar sustos no público, especialmente por meio de “aparições surpresas”. Ainda que na atualidade muitas pessoas insistam em taxar o recurso como barato, isso não é verdadeiro. Quando bem feito, o jumpscare consegue elevar a tensão e aterrorizar os espectadores. Um bom exemplo disso é Atividade Paranormal (2007), que é quase todo filmado através de câmeras de segurança. A todo o momento aparecem em tela elementos que fazem o espectador pular da cadeira e eles são eficazes porque o filme se vale de um senso de realidade e das reações dos atores, que são boas o suficiente para convencer quem assiste.

A Primeira Comunhão

Por outro lado, em A Primeira Comunhão existe didatismo na forma como o jumpscare é usado. Sempre que um susto está prestes a acontecer, a trilha sonora é aumentada e os personagens estão sozinhos em cena. Com isso, o desgaste do recurso acontece de forma rápida porque o espectador é capaz de antecipar o que está por vir. O fato de que todas as “sequências assustadoras” são parecidas — objetos voando, portas batendo e golpes de um inimigo invisível — acaba esgotando as possibilidades do filme. Desse modo, mesmo as cenas que representam o clímax da produção acabam se tornando pouco impactantes porque se valem daquilo que nós já conhecemos muito bem.

Além de não conjugar tão bem os seus elementos de horror, o filme de Victor García ainda peca por não ser uma obra fechada. Um desfecho sugestivo não seria um problema se as demais conclusões apresentadas fossem satisfatórias. Porém, o roteiro deixa diversos buracos em aspectos importantes e que não poderiam ser ignorados. A própria trama de Sara não é finalizada, mesmo que ela domine boa parte da projeção. De certa forma, parece existir a expectativa de uma sequência para A Primeira Comunhão, mas existem tantos fatores que poderiam levar esse plano a não se concretizar que o filme simplesmente deveria se bastar e oferecer ao público algum tipo de resolução.

Dessa maneira, ainda que a produção tenha um ponto de partida interessante, isso acaba sendo diluído em prol de um caminho já bastante enraizado no imaginário do público que consome o cinema de horror. Se A Primeira Comunhão optasse por se construir em torno da importância do rito na cultura espanhola e usasse os seus símbolos de forma mais assertiva, a trama teria muito a ganhar, inclusive em termos de “fator surpresa”, já que se trata de uma cultura que não temos o hábito de ver retratada com frequência nesse estilo de filme. Entretanto, Victor García opta por fazer o básico em um subgênero que oferece possibilidades quase ilimitadas, além de ceder ao que é hegemônico, especialmente quando se fala sobre os longas estadunidenses. Logo, o diretor retira do seu filme qualquer possibilidade de potência e, infelizmente, acaba entregando algo que não empolga e não assusta