Categorias: TV

O Palhaço Coroado e o luto das personagens femininas

O Palhaço Coroado é uma série sul-coreana que foi exibida pela tvN entre 7 de janeiro e 4 de março de 2019, no formato padrão de uma temporada única com 16 episódios. A história é um remake do filme O Substituto do Rei (2012), e narra a trajetória de um rei da Dinastia Joseon e seu sósia, um palhaço que é colocado no trono para lidar com as lutas pelo poder que estão ameaçando a família real e a corte.

Ainda que seja centrado no personagem do rei Yi-heon e o palhaço Ha-sun, ambos interpretados pelo ator Yeo Jin-goo (Além do Mal, Link e Hotel del Luna), o enredo apresenta personagens femininas que possuem diferentes papéis dentro da realeza, desde a rainha até a acompanhante do secretário-chefe, passando pela figura emblemática da rainha-viúva e a irmã mais nova do protagonista.

Nesse sentido, o desenvolvimento dessas personagens passa pelo aspecto da relação com os homens da narrativa, mas não está limitado ao que acontece com essas figuras. A partir desses relacionamentos, as representações femininas na série passam a retratar as diferentes formas de se relacionar com o poder, o luto e a solidão dentro da corte.

O Palhaço Coroado

Sendo assim, o que torna O Palhaço Coroado ainda mais atraente, além da própria trama com aspecto novelesco e dramático, é acompanhar como essas personagens evoluem diante dos acontecimentos. Por meio do luto e do sentimento de perda, cada uma delas segue um caminho distinto que apresenta a profundidade psicológica que possuem e o potencial das narrativas femininas dentro das produções audiovisuais.

Atenção: este texto contém spoilers

Conheça a história

Em termos mais específicos, O Palhaço Coroado apresenta o Rei Yi-heon durante a cena de falecimento de seu pai, em uma situação tensa que demonstra de início como a relação entre eles não era boa. No leito de morte, o antigo rei pede para que seu filho proteja o príncipe herdeiro, seu irmão mais novo, mas Yi-Heon deixa claro suas intenções de tomar o poder, mesmo sendo o filho bastardo. Assim, acaba por assassinar o irmão mais novo, garantindo que não haverá competição pelo trono e isolando a rainha-viúva, sua madrasta, de toda a presença política. Os atos de crueldade, contudo, começam a lhe custar caro e fazem com que o protagonista precise contar com o uso de drogas para dormir e reinar o país.

Logo no início, conhecemos um monarca cruel, desequilibrado e inserido em uma situação perigosa por conta de assassinos que tentam prejudicá-lo a todo momento. Mais ainda, vemos que o poder dentro da corte permite que a corrupção atinja todos os setores da sociedade. Em meio a esse cenário, o rei começa a enlouquecer por conta do sentimento de perseguição, dos pesadelos constantes com o irmão mais novo e as alucinações decorrentes da dependência química.

Nesse momento, conhecemos o palhaço Ha-sun que, com sua trupe de circo, realiza apresentações satíricas a respeito da vida na corte. Ao ser reconhecido pelo secretário-chefe Haksan (Kim Sang-kyung), o personagem acaba sendo arrastado até o palácio para se apresentar ao rei, que decide utilizá-lo como isca para seus assassinos. A partir desse ponto, o jovem plebeu se envolve na crise política e na rede de relacionamentos da corte, tendo que fingir ser o rei enquanto o mesmo enlouquece e padece de suas enfermidades. Para proteger sua irmã e seus amigos, o palhaço deve convencer a todos de que é o governador da Coreia enquanto sobrevive às diversas tentativas de assassinato orquestradas por seus inimigos.

O Palhaço Coroado

O luto na construção das personagens femininas

Ao longo da história, algumas perdas marcam a trajetória dos personagens e impactam o curso de suas escolhas e ações com base na forma como lidam com o luto. No caso da rainha-viúva (Jang Young-Nam), por exemplo, o assassinato do filho mais novo e do rei acabam transformando-a em uma vilã que busca incessantemente vingar-se do enteado, o Rei Yi-Heon.

Por não aceitar o destino de ambos, a personagem começa a tramar contra ele em todos os seus passos, iniciando uma rebelião que colocará um de seus parentes no trono e reforçando sua influência como rainha-viúva entre os membros mais antigos do reino. Para alcançar seus objetivos, ela se utiliza das damas da corte e de assassinos contratados que podem derrubar o rei de sua posição.

Em contrapartida, O Palhaço Coroado apresenta outras formas de luto, como acontece com Dal-lae (Soo-Yun Shin), a irmã de Ha-sun, que passa grande parte da série equilibrando a busca incessante por ele com o sentimento de perda. Ao invés de tornar-se vingativa, o luto faz com que a ingenuidade da personagem seja ainda mais forte, colocando-a em situações perigosas que acabam afetando o irmão indiretamente. Desde libertar o antigo rei enlouquecido até expor-se aos planos do ministro da esquerda, Dal-lae utiliza a dor da sua perda como motor para encontrar respostas, ainda que isso lhe custe muito caro.

Em complemento, vemos a rainha Yoo So-woon (Lee Se-young) lidando com um luto semelhante pelo exílio e consequente execução de seu pai. Na posição de rainha, So-woon começa a se aproximar do rei e acaba se apaixonando por ele mesmo sem saber que se trata de um sósia. Por conta do papel político que desempenha dentro da corte, torna-se vítima dos planos da rainha-viúva e dos inimigos que desejam interferir ou se vingar do rei. No entanto, ao invés de agir de maneira vingativa como a rainha-viúva ou entrar em situações perigosas como Dal-lae, a rainha se utiliza desses acontecimentos para se aproximar do rei a ajudá-lo a combater os inimigos. Nesse caso, a série demonstra que o luto pode criar um laço afetivo importante entre ambos, pois acabam se apoiando um no outro para vencer as adversidades dentro do castelo.

O Palhaço Coroado

Por fim, outra personagem feminina interessante por sua relação com o luto refere-se à acompanhante de honra do secretário-chefe, uma mulher que aparece em um papel materno ao longo da série por proteger Dal-lae e apoiar incondicionalmente os planos de seu amado. Em Woon-sim (Jung Hye-young) vemos o luto como instrumento de introspecção, que acaba por motivar a personagem a sair pelo mundo explorando outras possibilidades de vida após a morte de um dos personagens mais importantes da trama.

Assim, a narrativa constrói personagens femininas cujas personalidades são aprofundadas com base nos sentimentos que apresentam, indo além do romance com suas contrapartes ou dos lugares-comuns reservados para as mulheres dentro desse tipo de história. Ainda que exista um aspecto de lealdade e devoção, vemos que a linha de desenvolvimento de cada uma parte para rumos específicos que independem da presença masculina.

A morte como ferramenta narrativa

Em O Palhaço Coroado, a morte e a perda não aparecem como uma maneira de explorar o sofrimento feminino a fim de dar continuidade à história, mas sim como uma forma de torná-las independentes dentro do universo de acontecimentos. Por meio desses eventos, as personagens deixam de estar submetidas aos seus semelhantes e conseguem se mostrar como indivíduos com vontades que vão além do papel que lhes cabe no enredo.

As ações de So-woon, por exemplo, são tomadas em um espaço de individualidade e interesse pessoal que desconsidera até mesmo as funções políticas que ela possui como rainha, mostrando-a como uma personagem que não está limitada às vontades do protagonista ou ao papel dentro da relação entre ambos. A defesa pelo seu pai e o amor filial faz com que ela considere até mesmo a morte, tirando-a do espaço de passividade reservado às mulheres dentro dos doramas históricos.

Mesmo que algumas de suas ações tenham consequências negativas, como a exposição do rei aos assassinos, é interessante entender como ela se relaciona com as decisões tomadas por outros personagens, pois grande parte de suas escolhas parte de um universo pessoal de opiniões. Ou seja, vemos uma protagonista que está relacionada com o personagem masculino principal, mas não limitada a ele.

O Palhaço Coroado

No caso da rainha-viúva, o papel de vilã existe em decorrência da profundidade do seu sentimento de perda pelo marido e pelo filho mais novo. Por conta dessas emoções, a personagem age de maneira caótica, demonstrando o seu desequilíbrio e a sede incessante por vingança mesmo que isso acabe custando a sua posição na corte. Assim como So-woon, a rainha-viúva age dentro de um universo pessoal de sentimentos, desejos e vontades, atingindo diretamente outros personagens, mas sem deixar de lado o que a torna única dentro do enredo. Por trás da raiva e da maldade, encontramos uma mãe enlutada que não consegue aceitar o destino que lhe foi dado dentro da corte. Assim, o poder se torna uma forma de conquistar aquilo que considera justo dentro de um conjunto de valores próprios,

Esse tipo de construção em doramas históricos retira as personagens femininas de papéis acessórios, onde a fragilidade e a vulnerabilidade são preponderantes. Dessa maneira, vemos a força da representação das mulheres para além do crossdress, um tipo de narrativa em que as protagonistas performam o papel de homens, como acontece em O Rei de Porcelana (2021) e Love in The Moonlight (2016).

Ao vencer a limitação de que personagens femininas fortes podem existir somente nos contextos em que agem como homens disfarçados, O Palhaço Coroado acessa um universo emocional muito mais profundo para a representação de mulheres, o que pode ocorrer tanto nos doramas históricos quanto nos modernos. Além disso, trabalhar sentimentos como luto, perda e sofrimento de maneira equilibrada permite explorar o potencial dessas figuras dentro da história. Acima de tudo, é necessário torná-las independentes de suas contrapartes, para que existam além do romance ou do papel social reservado em alguns modelos narrativos. Ao posicioná-las como indivíduos, e não como plano de fundo para o desenvolvimento do protagonista ou vítima de todo o mal que acontece na trama, é possível fugir dos estereótipos e desenvolver construções cada vez mais complexas, mas igualmente próximas da realidade.