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Sejamos doidas pra escrever

Imagine uma pessoa escrevendo. O que você vê? Uma mesa organizada, um computador decente para se trabalha, alguns post-its espalhados? Uma mesa com pilhas e mais pilhas de cadernos sujos de café, canetas sem tinta e um gato dormindo no teclado do computador? Na verdade, não há nem uma mesa: o computador está na cama, junto de alguns livros que estão rabiscados e marcados com anotações nas margens. Ou, então, mesa e cama não existem, apenas um punhado de papel que é carregado para cima e para baixo, entre cafeterias, bibliotecas e bares.

Talvez, essas sejam imagens que evocamos quando pensamos na escrita, o que vemos quando vemos em um escritor. Mas seria ela verdadeira?

Sim e não.

De acordo com o dicionário, o verbo transitivo direto “escrever” significa “representar por meio de caracteres ou escrita”, “expressar-se por meio de escrita”. Já o substantivo feminino “escrita” significa “representação da linguagem falada por meio de signos gráficos”, “conjuntos de signos num sistema de escrita” e “arte de escrever à mão ou maneira própria de escrever”. Assim, da mesma forma como existem inúmeros estilos e gêneros de escrita, existe mais de um estilo de escritor, com seus detalhes, rotinas e processos. O que eles têm em comum, se assim podemos dizer, é o desejo (em alguns casos, até mesmo o anseio) pela escrita. Como redatora, busco entender os processos alheios, o que é a escrita. E, não raro, existem autores que compartilham seus processos e como entendem o papel da escrita em suas rotinas. Existem, por exemplo, aqueles que a entendem de fato como uma profissão; outros, como um chamado poético; e aqueles que a veem apenas como uma tarefa a ser cumprida.

Doida pra Escrever

Autores como Aline Valek, Ana Elisa Ribeiro, Elena Ferrante e Haruki Murakami são exemplos de escritores que compartilham seus processos a partir de livros, e, de alguma forma, se encontram e desencontram em diversos aspectos. Embora o foco deste texto seja o livro de Ana Elisa Ribeiro, Doida pra Escrever, um breve destaque aos autores citados ajudam a observar a existência dos mais diversos tipos de escrita: Valek e Ribeiro, por exemplo, são mulheres brasileiras que publicam de forma independente e entendem esse lugar como uma forma de criar conexões e se comunicar com os leitores, que a escrita existe em mais de um formato — imagem, pintura, desenho — e em suportes para além dos livros com capa, quarta capa e lombada — blogs, newsletters, zines e fotografias. Já Murakami não se via como um futuro escritor: enquanto era dono de um bar de jazz, começou a escrever na mesa da cozinha, com uma caneta Bic e a sua motivação era a necessidade de escrever. Não tinha a pretensão de vender o original, muito menos mostrar para alguém seus escritos, quem diria se tornar um dos autores japoneses mais renomados e referenciados de sua geração. Ferrante, por sua vez, escreve mais livros do que de fato publica, e desafia a lógica da mídia ao não promover a própria imagem junto com suas publicações, costuma tangenciar as mesmas temáticas em suas histórias e carrega uma bagagem de referências em seus textos. O que une esses escritores é entenderem a escrita como sua principal ferramenta de expressão, compreensão do mundo e conexão.

Doida pra Escrever: a escrita de Ana Elisa Ribeiro

Doida pra Escrever é um compilado de crônicas que carrega um título com dupla interpretação. Doida pra escrever por o desejo pelas palavras é tão intenso que a única resposta possível seja essa. Doida pra escrever porque não escrever pode levar à loucura. Qualquer uma das opções coloca que é necessário algo que vem de dentro e que impulsiona a mão sobre o papel. Porém, não é só de sentimento e inspiração que vive um escritor: é necessário tempo e, principalmente, disciplina.

“É preciso saber ficar doido pra escrever. Ligar a ignição. Tá tudo calmo e quieto, vontade alguma, só pensando no mato pra capinar ou na graxa do portão, mas chega uma demanda de escrever. Quem não entende do riscado pensa que é assim, ó: ‘Senta e escreve, bora lá’. E a gente faz. Aprende a riscar a faca no chão até dar faísca. Pedra com pedra. Fósforo. Lente no sol. Queima até o que não tem. Doidos pra escrever são perigosos. Acordei doida pra escrever. E nem era só um prazo expirado. Era uma energia transbordando aqui e ali. Calibrada? Níveis normais? Vamos agora ao dia, pra ter mais o que escrever, nas próximas linhas.”

Ribeiro argumenta que a escrita é resultado de, entre outras coisas, memórias, conexões e leitura — enquanto a leitura é resultado da escrita, processos que se retroalimentam para continuar a existir. De modo que podemos entender que quem escreve está cheio de coisas para ver, ouvir, ler, sentir, levar embaixo do braço, perto do peito.

Na perspectiva de uma mulher brasileira que escreve, Ribeiro sentiu a necessidade de pensar e produzir para além do formato do livro. O mercado editorial é cruel com os escritores e o senso comum só os reconhece pela materialização do livro, porém é necessário e urgente entender os espaços de blogs, zines, newsletters e até ilustrações e fotografias como processos de escrita e publicação. Aqui, cabe o questionamento de que a escrita só é válida em um tipo único de publicação, uma vez que estamos falando de um processo que leva anos entre idas, vindas, refazer e apagar. Podemos definir que quem escreve é quem publica tradicionalmente ou apenas quem exerce a escrita é suficiente para ser considerado escritor? E de onde vem a necessidade de bater o martelo nessa definição? Eu e Ribeiro diríamos que a linguagem existe em toda e qualquer ação, e alguns de nós a vemos e temos consciência dela o tempo todo, tendo a necessidade de organizá-la no papel ou na tela. Em um ponto do livro, Ribeiro trata apenas das narrativas feitas pela fotografia, que, por uma não-coincidência, significa escrita da luz, é tornar visual essa linguagem que nos cerca.

“A escolha de um modo de fotografar ajuda a construir um registro. E como nos conhecerão no futuro? Ou que representação queremos de nós? (…) Eu sou, enfim, uma cronista com uma câmera nas mãos. É mais ou menos como largar o teclado do computador e as palavras por um instante para brincar com a luz. É como aprender a escrever de novo.”

Nem todas nós temos a urgência da palavra-escrita. Muitas precisam da palavra-dita ou da palavra-lida — e aquelas que precisam de todas elas. O fato é que elas estarão ao nosso redor e, em algum ponto, estaremos doidas por elas. E que de fato sejamos, enquanto nos apropriamos de cada uma delas.


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1 comentário

  1. Como sempre os posts por aqui são excelentes, mas essa parte aqui ” a escrita é resultado de, entre outras coisas, memórias, conexões e leitura — enquanto a leitura é resultado da escrita, processos que se retroalimentam para continuar a existir. ” explodiu minha mente!!

    Fiquei bem curiosa sobre o livro e assim que sobrar uma graninha voltarei aqui para comprar pelo link de vocês!!

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