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Doutor Gama: a luta incessante pela liberdade

Doutor Gama (2021) é uma cinebiografia do poeta, jornalista e (principalmente) advogado Luiz Gama que, ao longo de sua carreira jurídica, libertou mais de 500 escravizados. O filme, dirigido por Jeferson De, é um marco no cinema brasileiro por retratar a vida de um intelectual negro do século XIX, precursor da literatura afro-brasileira e da construção dos direitos humanos. Com uma trajetória de vida impressionante, Luiz Gama ainda é desconhecido por muitos. O resgate de sua memória traz importantes reflexões sobre a luta por direitos em tempos incertos.

A conquista da palavra

Segundo relatado pelo próprio protagonista (interpretado por César Mello) em carta a Lúcio de Mendonça, no que pode ser considerado um dos poucos relatos registrados de ex-escravizados brasileiros, Luiz Gonzaga Pinto da Gama nasceu em 1830, na Bahia, filho de Luíza Mahin (Isabél Zuaa), africana livre originária da Costa da Mina e envolvida em insurreições de escravizados, e de pai português.

Luiz Gama descreve sua mãe como uma mulher “pagã, que sempre recusou o batismo e a doutrina cristã. Minha mãe era baixa de estatura, magra, bonita, a cor era de um preto retinto e sem lustro, tinha os dentes alvíssimos como a neve, era muito altiva, geniosa, insofrida e vingativa”. Luiza Mahin sem dúvida influenciou sua formação, e é uma figura tão interessante que chegou a ser retratada no romance Um Defeito de Cor, de Ana Maria Gonçalves. Ainda assim, biógrafos têm apontado dificuldade em confirmar a veracidade do relato. Independentemente de Luiza Mahin ser real ou alter ego de Luiz Gama, ela é a mãe que Luiz encontrou dentro de si, nas palavras de Lígia Fonseca Ferreira: “Ele foi o filho que deu à luz a sua mãe.” Através dos seus escritos sabemos da existência de Luiza Mahin.

Após dissipar sua herança, seu pai o vendeu. Dos 10 aos 18 anos, Luiz Gama viveu na pele a experiência da escravização. Foi contemporâneo da Revolta dos Malês (1835), maior insurreição negra nas Américas, e da Sabinada (1837), na qual sua mãe teria participado. Esses levantes, associados à Revolução Haitiana (1791-1804) — que culminou na primeira república formada por ex-escravizados e pessoas de ascendência africana — fizeram com que pairasse entre os escravagistas o medo de que a população escravizada, em maior número, tomasse o poder no Brasil. Esse temor contribuiu para que Luiz Gama, originário da Bahia, conhecida pelas revoltas, fosse rejeitado por diversos compradores de pessoas escravizadas.

Luiz Gama criança escravizado

Luiz Gama foi alfabetizado aos 17 anos por Antônio Rodrigo do Prado Junior (Higor Campagnaro/Johnny Massaro), então hóspede na casa de seu escravizador. Mais do que isso, a partir desse momento ele se percebeu como sujeito inserido na história, capaz de atuar sobre a realidade. A escravização, a existência de exploradores e explorados, não era um fato imutável. Esse episódio evidencia a centralidade do acesso à educação: através dela, Luiz Gama pôde reunir secretamente provas de que havia nascido livre e, portanto, era ilegalmente mantido como escravizado.

Um ouvido mais atento conseguirá detectar, em certo momento de Doutor Gama, o som da flecha de Oxóssi, um dos primeiros orixás trazidos ao Brasil e relacionado à liberdade. Oxóssi é guardião das florestas, gosta do espaço ao ar livre, ilimitado. Caçador habilidoso, com apenas uma flecha — uma oportunidade —, atinge seu objetivo, sem chance de errar. No filme, antes que Luiz Gama parta da casa de seu escravizador, Ana (Teka Romualdo), sua companheira de cativeiro, entrega-lhe um par de sapatos. No Brasil, os sapatos distinguiam escravizados de pessoas libertas, eram símbolo de status. As alusões e referências diretas e simbólicas à liberdade perpassam a obra.

Luiz Gama conquistou a palavra — proibida aos escravizados —, que se tornou a sua ferramenta de trabalho e de resistência: foi tipógrafo, poeta, tradutor, folhetinista e, principalmente, advogado autodidata (rábula). Apenas 12 anos após a sua alfabetização, ele escreveu as Primeiras Trovas Burlescas de Getulino (1859), se antecipando à literatura negra brasileira.

Por uma sociedade sem exploradores e explorados

Luiz Gama nunca obteve o diploma de bacharel em Direito, uma vez que foi rejeitado ao tentar ingressar na Faculdade de Direito de São Paulo e frequentar as aulas como ouvinte. Adquiriu conhecimento e experiência como escrivão da Secretaria de Polícia. Como advogado, Luiz Gama dedicou-se às “causas da liberdade”. Ele dizia: “Eu advogo de graça, por dedicação sincera à causa dos desgraçados; não pretendo lucros, não temo represálias”. Sua trajetória remete a uma frase de Charles Hamilton Houston: “um advogado é um engenheiro social (…) altamente qualificado, perceptivo e sensível, que entende a Constituição e sabe como explorar seus usos na melhoria da vida dos cidadãos menos favorecidos.”

Apesar das ameaças de morte e de ter sido demitido do cargo de escrivão na Polícia pela sua atuação, libertou mais de 500 escravizados. Luiz Gama expôs as contradições de um sistema jurídico que, embora tivesse extinto o tráfico de pessoas africanas (1850) e alforriado os filhos de mulheres escravizadas (1871), na prática continuava a mantê-los nessa condição.

Em Doutor Gama, embora relutante, Luiz Gama aceita ser advogado de defesa de José (Sidney Santiago), que assassinou Antunes, o seu escravizador, no intento de defender sua esposa dos abusos sexuais perpetrados por este. Em determinada cena, Luiz Gama vai até Thereza (Clara Choveux), esposa de Antunes, colher provas favoráveis a José. Ela se recusa a oferecer-lhe um copo de água e sugere que ele vá até um riacho onde bodes e cabras saciam a sede. “Bode”, “cabra” e “mulato” eram nomes pejorativos atribuídos aos negros mestiços durante a naquele período. Em seu poema “Quem Sou Eu?”, Luiz Gama satirizou essas denominações que recebia, afirmou sua identidade negra e questionou aqueles que, numa sociedade multirracial como a brasileira, valorizavam somente as suas origens europeias.

Durante o julgamento do caso ficcional, para sensibilizar sua audiência, Luiz Gama ressaltou a degradação humana a que eram submetidas as pessoas escravizadas e a indiferença social perante o cenário de violência. Considerava a escravização um crime contra a humanidade, ainda que fosse respaldada por legisladores e juristas.

Enquanto Luiz Gama lutava pela afirmação da sua humanidade e da população escravizada, outros pleiteavam a manutenção da objetificação do ser humano. Ele reúne provas de que José havia sido criminosamente escravizado, tal como ele próprio, visto que era filho de uma mulher livre. Entretanto, o juiz não aceita seus argumentos. Graças à sua oratória, Luiz Gama convence o júri de que José atuou em legítima defesa, então profere a frase: “O escravo que mata o senhor, seja em que circunstância for, mata, sempre, em legítima defesa.” Como poderia ele ter dado início à violência se a própria condição de escravizado já constituía, por si só, uma violência?

Na realidade, em 1880, em uma carta a Ferreira de Menezes, Luiz Gama comentou fato semelhante, referente ao linchamento de quatro escravizados que assassinaram o seu escravizador. Nela, Luiz Gama defende que essas pessoas teriam agido em legítima defesa, tendo em vista terem sido sequestradas de sua terra natal, vendidas, trabalhado em regime de escravidão e submetidas a toda sorte de violência. Para ele, o dia em que se fez o primeiro escravizado deveria ser de luto para todos.

Quais histórias queremos contar?

Segundo Sud Mennucci, um dos biógrafos de Luiz Gama: “Pode-se representar a vida inteira de Luiz Gama como duas mãos tendidas para o alto, no clamor incessante pelo respeito aos diretos humanos.” Infelizmente, Luiz Gama faleceu de diabetes em 1882, antes de presenciar a abolição da escravatura pela qual tanto lutou. Essa liberdade que não foi uma concessão, mas foi e é conquistada em cada ação que visa concretizá-la. Somente em 2015 a seccional de São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil concedeu a ele o título de advogado.

Há muitos retratos no cinema e na televisão de personagens históricos brasileiros, como D. Pedro I, D. Pedro II, Carlota Joaquina, Tiradentes, entre outros, mas poucos sobre personalidades negras, especialmente intelectuais, como Luiz Gama, José do Patrocínio e André Rebouças. Naquelas narrativas, os negros e indígenas são coadjuvantes, não protagonistas e autores de suas próprias histórias. Destacamos a peça Luiz Gama: Uma Voz pela Liberdade, o trabalho de Lígia Fonseca Ferreira, que compilou a obra de Luiz Gama, contribuindo para a sua divulgação, assim como a trilha sonora de Tiganá Santana.

Retratar uma vida como a de Luiz Gama, sem dúvida, é algo complexo. Por isso, Jeferson De escolheu alguns fatos marcantes da sua trajetória, se concentrando em um julgamento fictício, o que deu um tom intimista ao filme. Jeferson De também construiu em Doutor Gama um filme que tem como pano de fundo a escravização, mas que é sensível. Seu foco recai mais sobre a subjetividade do protagonista do que no sofrimento sobre o corpo negro. Isso faz com que o filme possa ser utilizado para fins educacionais, sem que desperte gatilhos emocionais nos espectadores em razão da banalização da violência.

Nos Estados Unidos, narrativas autobiográficas de ex-escravizados alcançaram grande repercussão nacional e internacional, como as de Frederick Douglass (1817-1895), Harriet Ann Jacobs (1813-1897) e Solomon Northup (1808-1863). Entretanto, no Brasil, biografias de figuras como Mahommah Baquaqua, Esperança Garcia e a do próprio Luiz Gama ainda são pouco conhecidas. Desejo um dia ter ainda a oportunidade de comentar um filme sobre a vida de Esperança Garcia (1751-?), por exemplo, considerada a primeira advogada negra brasileira, cuja história se aproxima da de Luiz Gama. Há muitas histórias por contar.


Referências 

FERREIRA, Lígia Fonseca. Luiz Gama por Luiz Gama: carta a Lúcio de Mendonça.  In: Teresa. Revista de Literatura Brasileira, n. 8/9; São Paulo, 2008, p. 300-321. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/28-critica-de-autores-masculinos/653-luiz-gama-por-lui-z-gama-carta-a-lucio-de-mendonca-ligia-fonseca-ferreira Acesso em: 19 out. 2020.

LITERAFRO. Luiz Gama. 25 set. 2021. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/autores/655-luiz-gama Acesso em: 18 out. 2021.

PINTO, Ana Flávia Magalhães. Fortes laços em linhas rotas: literatos negros, racismo e cidadania na segunda metade do século XIX. Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Campinas, SP: [s. n.], 2014.

SANTOS, Luiz Carlos. Luiz Gama: retratos do Brasil negro. São Paulo: Selo Negro, 2010.