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O ano em que Shonda Rhimes disse sim

Falar sobre Shonda Rhimes e seu trabalho dos sonhos é também entender o que é trabalho duro. Imaginar, criar, produzir, escrever (e muito!) são coisas pouco tangíveis, mas admiráveis, que não recebem a mesma visibilidade do que atuar em frente às câmeras, uma atividade visível aos olhos do público final. Mas como é o trabalho que acontece por trás das câmeras? Quem cria o discurso, quem monta a história e a produz para que chegue até o conforto de nossas casas?

Para os consumidores ávidos de séries, o nome de Shonda Rhimes não é uma novidade. Ou melhor: para quem presta atenção nos bastidores de suas narrativas, é impossível não relacionar o nome com os projetos em execução. Nascida em Chicago, Illinois, no ano de 1970, Shonda Lynn Rhimes é, atualmente, responsável por 70 horas semanais de conteúdo na televisão norte-americana. São quatro shows em exibição, muitos dos quais foram criados por ela do zero ou produzidos pela própria do início ao fim. Shondaland, sua produtora, transformou-se em uma verdadeira fábrica de histórias, e encabeçada pela própria autora, possibilitou que Shonda alcançasse feitos inéditos na televisão — como ter emplacado três produções de sua autoria no horário nobre da ABC, todas exibidas em sequência, e se tornasse líder de audiência.

Mas por mais brilhante e talentosa que seja, Shonda não esteve livre de problemas como a ansiedade e a depressão, é uma mulher introvertida, e muitas vezes deixou de vivenciar o sucesso e conquistas provenientes do seu trabalho por… medo. É depois de ouvir da própria irmã, Delorse, que jamais diz “sim” para as coisas, que ela decide fazer o experimento que, mais tarde, daria origem ao seu livro de memórias, O Ano em que Disse Sim, publicado no Brasil em 2016. O livro traz muitas reflexões que vão desde a vida pessoal da autora até os bastidores de suas produções, especialmente Grey’s Anatomy, seu trabalho mais longevo, e inclui informações valiosas sobre como é feito um programa de TV e como funciona o seu trabalho. Desde a primeira página, Shonda nos conta que se considera uma mentirosa e que ama ser assim — o que não significa mentir sobre si mesma ou para os outros, mas criar histórias e universos que existem apenas na ficção.

“Grey’s Anatomy foi meu primeiro trabalho de verdade na televisão. Ter um programa como meu primeiro trabalho de verdade na TV significava que eu não sabia nada sobre trabalhar na TV. Perguntei a todos os escritores de TV com quem esbarrei como era o emprego, como era estar no comando da temporada de uma série em uma emissora de televisão. Recebi uma porção de bons conselhos, e a maioria deles deixou claro que cada programa é uma experiência muito diferente, muito específica. Com uma exceção: todos os escritores que conheci comparavam escrever para a televisão a montar os trilhos para um trem que se aproxima com velocidade.”

Antes do experimento, tudo parecia bem em sua vida: Shonda tinha uma carreira bem-sucedida que lhe dava tanto dinheiro quanto prestígio, uma família carinhosa e filhas que amava incondicionalmente. Mas a fala de sua irmã muda tudo. No livro, ela comenta que, na hora, sua ficha não caiu; ela dizia “sim” para aquilo que lhe parecia conveniente. Propostas que não gostava ou com as quais não se sentia confortável recebiam um grande “não”, como deveria ser. É somente depois de começar a dizer “sim” e aceitar novos desafios que ela percebe que sua vida, talvez, não estivesse tão bem assim, e que o contrário era apenas uma mentira que ela gostava de contar a si mesma. A partir de então, O Ano em que Disse Sim faz várias reflexões importantes, utilizando a experiência da própria Shonda como exemplo, como o “sim” podia se aplicar nas mais diversas situações e como pontos cruciais de seu cotidiano entraram em colapso quando sua atitude diante delas mudou.

“Cresci em uma família na qual o trabalho árduo não era opcional. Meus pais trabalharam muito para criar e educar seis — eram seis — crianças. E, em algum momento, percebi que o motivo pelo qual tive uma infância tão boa e jamais me faltou alguma coisa foi meus pais trabalharem muito para que pudéssemos ter coisas impensáveis como comida, gasolina, roupas e contas quitadas. No ensino médio, consegui um emprego de garçonete na sorveteria Baskin Robbins e desde então sempre trabalhei. Tenho consciência de que atualmente vivo uma realidade muito tranquila. Sei que sou extremamente sortuda. Sei que tenho filhas incríveis, uma família fantástica, amigos ótimos, um emprego espetacular, um lindo lar e todos os meus braços, minhas pernas, os dedos das mãos e dos pés e os órgãos intactos. Sei que não tenho o direito de reclamar. Não sobre minha vida em comparação à vida de qualquer outro. A não ser que esse qualquer outro seja a Beyoncé.”

“Sim” para si mesma

Em 2013, antes de iniciar o chamado Ano do Sim, Shonda trabalhava demais, comia errado e não se movimentava. A rotina pouco saudável a fez atingir seu peso máximo e, por isso, ela já não se reconhecia mais no espelho. A insatisfação foi o ponto de partida para um grande “sim” a ser dado a si mesma; ela precisava se cuidar, entender que momentos de descanso, caminhada e sono não eram um luxo, mas sim uma necessidade. Que transformando sua rotina, a sua qualidade de vida também podia mudar muito. Assim, quando decide começar a praticar exercícios e, consequentemente, emagrecer, Shonda não o faz por uma pressão externa, porque deseja que seu corpo mude para se adequar a um padrão, mas para tornar-se uma pessoa mais saudável, e a perda de peso é apenas uma consequência. Seu maior desafio era olhar-se no espelho e gostar daquilo que era refletido de volta, sabendo que aquela era a melhor versão de si mesma que poderia ser naquele momento.

“Sim” para as mães

Um dos capítulos mais interessantes do livro é aquele em que Shonda fala sobre sua relação com a maternidade, a relação com outras mães e o quão doentio isso poderia ser. A pressão para estar sempre presente nas atividades e reuniões da escola, por sempre preparar a merenda das filhas, de poder acompanhar de perto o crescimento das meninas são questões que existem fora de contexto e ignoram as particularidades de cada mulher, reduzindo sua existência ao papel de mãe. Há a implicância social de que super-mães são apenas aquelas que dão conta de tudo, o que, muitas vezes, gera ainda mais ansiedade em mulheres que já estão em seu limite máximo. O comportamento, no entanto, não se restringe aos educadores, mas às próprias mães, que são condicionadas a acreditar que para ser uma mãe de verdade é preciso fazer tudo sozinha, dar conta do recado.

“Olhe, sou dedicada às minhas filhas. Profundamente. Mas minha devoção não tem nada a ver com guloseimas preparadas em casa. Não tem nada a ver com fazer qualquer tipo de demonstração pública de grandiosidade maternal. Porque — você me conhece a esta altura — demonstrações públicas de qualquer tipo de grandiosidade jamais acontecerão para mim. Sou devotada a conhecer minhas filhas, a ler livros com elas, a ouvir as histórias que elas me contam e às conversas que temos. A torná-las cidadãs do mundo. A criar seres humanos fortes e feministas que amam e acreditam em si mesmos. Isso já é difícil o suficiente para mim sem precisar entregar guloseimas caseiras na escola em uma sexta-feira.”

O que faz Shonda refletir sobre essas questões inicialmente é uma reunião de pais e mestres da escola de suas filhas em que uma mãe do comitê de organização de eventos exige que as comidas levadas pelas crianças para venda nos eventos escolares fossem obrigatoriamente feitas em casa. Mas e as mães que trabalham fora? E as que não sabem ou não gostam de cozinhar? São questões muito mais profundas do que sugere uma disputa vazia entre mães, e cada uma delas é levantada por Shonda com tanta honestidade quanto empatia. A autora também evidencia o outro lado da moeda, que é o das mães que entendem umas às outras, como quando leva um bolo (de padaria) para um piquenique e outra mãe pisca para ela em compreensão e empresta sua faca para Shonda que, na correria diária, esquecera de levar a sua própria; ou quando admite que sua vida jamais seria a mesma sem a babá de suas filhas, Jenny McCarthy, que de maneira inesperada tornara-se a sua própria, e a quem ela é eternamente grata.

“Sim” para elogios

Quantas vezes, ao receber um elogio, nos justificamos para a pessoa que nos elogia? Por que diminuímos nossas conquistas, por que não aceitamos e internalizamos aquilo que está sendo dito de positivo sobre nós? Outro grande “sim” na trajetória de Shonda é, justamente, aceitar o peso de suas conquistas como algo grande e real. Ela foi uma das primeiras mulheres a ser a roteirista responsável por mais de três shows na televisão norte-americana, todos transmitidos na mesma época; uma das primeiras mulheres negras a ocupar um cargo tão importante na televisão e revolucionária ao dar voz a pessoas de diferentes etnias, gêneros e sexualidade em suas produções. Ao receber um prêmio ou ser elogiada por uma pessoa, no entanto, Shonda não ia até a cerimônia de premiação ou simplesmente rebatia os elogios dizendo que aquilo não era grande coisa. Sim, ela fez tudo isso, e foi brilhante ao fazê-lo. E ela merece todos os reconhecimentos por suas conquistas. Mas isso não a impedia de sentir medo ou ser tomada por aquilo que comumente conhecemos como a Síndrome do Impostor. Em seu Ano do Sim, Shonda também aprende a importância de valorizar os seus feitos e ter orgulho daquilo que construiu com seu próprio trabalho e dedicação.

“Sim” para novos… sims!

Nunca somos as mesmas pessoas que fomos ontem e não sabemos como seremos no amanhã. Mas como afirma Shonda Rhimes, se valorizar, se aceitar, não se culpar, dar mais chances a nós mesmas são consequências de quando dizemos “sim” para aquilo que nos assusta, para as oportunidades que nos tiram de nossa zona de conforto. Em uma analogia, seria como encarar nossos próprios temores como os bruxos de Harry Potter o fazem quando encaram um Bicho Papão. Quando nos expomos ao medo descobrimos que ele não é tão assustador assim — ou talvez seja, mas talvez também sejamos capazes de superá-los. É rindo, arriscando e tendo coragem que nossos medos diminuem até não terem mais influência sobre nós.

Leituras como O Ano em que Eu Disse Sim traz infinitas reflexões, muitas mais do que seria possível abordar neste texto, e que são trabalhadas de maneiras diferentes por cada uma de nós dentro do contexto em que vivemos. Para cada leitor existe um tema que vai falar mais alto, e cada etapa da experiência de Shonda Rhimes funciona também como um empurrãozinho para quem precisa dele. A pergunta que fica é: por onde começamos a lidar com nossos medos? O Ano do Sim foi a resposta de Shonda; a nossa, somente nós seremos capazes de encontrar.


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