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Retrato de Uma Jovem em Chamas: o mundo pelo ponto de vista de mulheres

Retrato de Uma Jovem em Chamas começa com Marianne (Noémie Merlant) sentada em uma cadeira posando para que suas jovens alunas possam pintá-la, captar todos os seus detalhes. Em algum momento da sequência, uma das meninas conta que comprou uma tela da vila onde vive, algo que causa uma reação estranha na professora. A obra conta com uma mulher no auge dos seus 20 e poucos anos, loira e com um vestido cinza. Ela está parada ao lado de uma fogueira e sua roupa está pegando fogo, mas ela não parece perceber. O público, que não sabe de absolutamente nada sobre as protagonistas do longa até então, percebe que existe uma história profunda e intensa por trás daquela única pintura, que serve como ponto de partida para um dos filmes mais complexos e lindos sobre o mundo pelo ponto de vista de mulheres. É por isso que, durante suas duas horas, poucos homens aparecem na trama — sendo que nenhum deles têm um desenvolvimento real ou sequer muitos diálogos.  

Quem dirige a obra é a francesa Céline Sciamma, acostumada a conduzir produções que são contemporâneas e por isso abordam os problemas de uma sociedade moderna, como Tomboy, de 2011. Dessa vez, no entanto, ela volta para o século XVIII para explorar a relação de Marianne e Heloïse (Adèle Haenel), que se tornam amigas e então, amantes. Mesmo que a história principal seja a relação que as duas desenvolvem, o roteiro da obra, também assinado por Sciamma, se propõe ao mesmo tempo a estudar a vida dessas mulheres na época, oferecendo uma perspectiva única sobre o patriarcado, romance, sexualidade e até mesmo questões de gênero, sem deixar o desespero causado por certas situações de lado.

Atenção: este texto contém spoilers!

Quando Marianne chega na mansão de Heloïse, ela tem que fingir ser apenas uma companheira de caminhada para a menina, que se recusa a ser pintada, vivendo isolada em uma mansão aos pedaços. Ela mal se comunica com a mãe, e passa a maior parte do seu tempo trancada no quarto lamentando a morte da irmã, cujo destino nunca realmente fica claro no roteiro. Apenas é mencionado que ela caiu de um penhasco, mas que não gritou ou pediu ajuda para as pessoas que estavam com ela. Afinal, ela se matou ou não? De qualquer forma, o casamento arranjado para sua irmã antes acaba como responsabilidade de Heloïse, que carrega uma raiva paralisante de ser forçada a manter uma relação com um homem que ainda é um completo desconhecido.

retrato de uma jovem em chamas

O começo de Retrato de Uma Jovem em Chamas é lento, justamente porque existe a necessidade de estabelecer a dinâmica entre Marianne e Heloïse antes de realmente colocá-la em prática. Para isso, a fotografia tem um papel essencial na produção, sendo que o filme nunca convida o público a fazer uma imersão na época em que as personagens estão inseridas. O que realmente importa aqui é a relação criada entre as mulheres abandonadas naquela mansão. Por isso, o começo do relacionamento entre as duas protagonistas é baseado em olhares, gestos e curiosidade. Elas trocam poucos diálogos, mas a atuação de Merlant e Haenel garante que o público fique interessado no que pode surgir por causa das faíscas presentes quando elas interagem. Essas faíscas, inclusive, às vezes aparecem de forma bem literal na tela, e Sciamma coloca as duas para interagir em ambientes onde é possível quase sempre ver o fogo, ou apenas ouvir o crepitar do mesmo.

A mesma característica aparece em outros aspectos do filme: as duas caminham sempre pelo penhasco quando o vento está forte, tendo que então ficar com a cara coberta, apenas com os olhos de fora, facilitando que uma conexão seja estabelecida por esse recurso; os vestidos são chamativos, com cores fortes e intensas, como se representassem a personalidade e a atração que elas sentem uma pela a outra; a câmera respeita o corpo feminino em todos os momentos, não sexualizando nenhuma das personagens, mas ao mesmo tempo fazendo alusões ao sexo de forma nada sutil. Em um momento, por exemplo, uma parte da axila de Marianne emula o que parece ser uma vagina, enquanto Heloïse coloca os dedos entre ele.

A sutileza não para por aí. Quando Marianne chega na mansão, ela cria uma pequena amizade com Sophie (Luàna Bajrami), que trabalha como empregada e foi uma das pessoas que viu a irmã de Heloïse morrer. Mais tarde, ela descobre que a menina está grávida e não quer ter o bebê, embarcando em uma jornada para ajudá-la a realizar um aborto. A sequência inteira reforça a junção dessas mulheres e como elas ajudam uma a outra, mas também mostra cenas pesadas durante o aborto em si, onde um bebê oferece apoio para Sophie, como se fosse um contraponto para o procedimento que ela estava realizando.

retrato de uma jovem em chamas

Ao mesmo tempo que conta a trajetória de Sophie e seu aborto, algo pouco comum para narrativas que abordam outra época, o roteiro de Retrato de Uma Jovem em Chamas também explora a revolta de Heloïse em aceitar o papel que lhe foi designado na vida. Afinal, por que ela teria que se casar com um homem desconhecido? A protagonista quer mais do que isso. Ela quer arte, amar e ser amada. Não quer ser limitada pelo seu gênero, cair nas convenções. Existe, inclusive, um momento onde ela e Marianne falam sobre isso, sobre liberdade e como ela pode ser subestimada quando é algo garantido na vida, algo que Heloïse lembra sua companheira.

Na medida em que Marianne vai conhecendo Heloïse e descobre algo novo sobre ela, a narrativa acrescenta mais cor, mais arte e mais precisão aos trabalhos da pintora. Quando as duas sentam para falar sobre música, Marianne toca “As Quatro Estações” de Vivaldi, falando sobre a turbulência de sentimentos que a música proporciona, como ela não é feliz, mas cheia de vida. Nesse momento específico é impossível não fazer um paralelo com os sentimentos que elas compartilham uma pelo outra, que não necessariamente teve um final feliz, foi curto e abrupto, mas foi cheio de vida.

O romantismo entre Marianne e Heloïse é criado no meio dos detalhes apontados pelo texto, mas também pelo jeito que uma vê a outra, com admiração e ternura, como se fossem âncoras se mantendo sãs para enfrentar os empecilhos proporcionados pela vida. Com uma direção orgânica, a forma como os cortes são feitos servem para reforçar esse aspecto, ao mesmo tempo que priorizam olhares e a forma como uma se comporta perto da outra.

Existe também uma desconexão com a realidade que permeia a obra. Heloïse, Marianne e Sophie parecem viver em uma realidade paralela, como se o mundo não existisse no mesmo espaço-tempo que elas — algo frisado ainda por uma cena onde aparecem várias mulheres, que parecem sumir no dia seguinte. É por isso que, quando o tempo que as duas protagonistas têm chega ao fim, a ruptura e desconforto são quase impossíveis de aguentar. O roteiro toma um tempo considerável mostrando a despedida crua e honesta entre elas, que mistura amor e desespero, além de um sentimento desolador diante do futuro que lhes espera, uma sem a outra. Assim, antes que o sentimento de arrependimento de se envolver em algo que nunca teria continuidade surgisse, elas decidem que não podem esquecer do que tiveram, do sentimento que surgiu e persistiu de forma tão espontânea. “Não se arrependa. Lembre”, diz Marianne.

retrato de uma jovem em chamas

A sequência que encerra a produção é inteiramente dedicada ao que parece ser os resquícios do relacionamento das duas e como ele se perpetuou em pequenos detalhes de suas vidas. Marianne, por exemplo, fez uma pintura referenciando Orfeu e Eurídice, que lembrava a despedida entre elas na praia, onde se beijam e se abraçam com ternura, entrando mais uma vez na realidade paralela que criaram e depois abandonando a mesma de forma abrupta e dramática (uma das melhores cenas do longa). Momentos depois, ela vê uma pintura de Heloïse ao lado de uma menina que parece ser sua filha. No quadro, ela segura um livro aberto na página 28, onde Marianne desenhou um retrato dela mesma nua, para que ela sempre pudesse olhá-la sem que precisasse ou sentisse saudades. E talvez a parte mais importante da obra em si, o último encontro entre elas, onde estão na ópera ouvindo justamente “As Quatro Estações”, de Vivaldi. Essa cena é mostrada a partir do ponto de vista de Marianne, que observa Heloïse acompanhar a apresentação, ao mesmo tempo que revisita o relacionamento delas. A atuação de Haenel pode parecer caricata ou exagerada na hora, mas suas expressões são fundamentais para que aquele momento atinja todo o seu potencial: algo que é comovente e lindo, finalizando a trama de forma perfeita e deixando um sentimento agridoce e quase triste de um amor que foi interrompido, que não viveu tudo o que tinha que ser.

Ao explorar não só a relação entre as duas protagonistas, mas também os problemas de Sophie e até mesmo algumas conversas entre Marianne e a mãe de Heloïse, o roteiro de Retrato de Uma Jovem em Chamas mostra que é, acima de tudo, um longa sobre o ponto de vista feminino. O resultado não poderia ser mais satisfatório, criando algo que é atemporal e sensível, que tem muito a dizer, mas deixa os sentimentos e o visual falarem por si. É uma experiência devastadora, ao mesmo tempo que é completa e necessária.

Outro dia li um artigo (não lembro exatamente onde) que explorava o ponto de vista de que quando você está lendo, vendo e discutindo coisas feitas por mulheres e para mulheres, com outras mulheres, parece que está em uma realidade diferente dos homens. Algo que, sendo uma mulher que escreve para um site de cultura pop feminista, teve grande impacto em mim. Retrato de Uma Jovem em Chamas reforçou ainda mais esse aspecto. É impressionante como cresci vendo figuras masculinas na tela e fui capaz de me identificar com suas jornadas, suas angústias e seus problemas. Agora, me aprofundo cada vez mais em histórias feitas por mulheres e tenho dificuldade em voltar ao que era antes.

7 comentários

  1. Um excelente artigo para um excelente filme Carol. Adoro essa parte:
    “Quando se emociona,
    faz assim com a mão. E quando fica
    embaraçada, morde os lábios. E quando fica chateada… não pisca.”

  2. Nossa, eu fiquei apaixonada por esse filme. Comovente, lindo, emocionante. E dirigido por mulheres, na perspectiva delas, com suas vivências, seu relacionamento em foco. Não sei como não foi indicado à alguma categoria no Oscar, achei cada aspecto impecável.

  3. Que resenha maravilhosa! O filme está em cartaz no cinema na minha cidade, mas até então não havia tido interesse real em assisti-lo. Agora eu quero muito ir conferir! O que também está me atraindo é a fotografia do filme que parece ser incrível, e é algo que me atrai muito no cinema.

  4. Nossa, Carol, parabéns pelo artigo, de muitíssima qualidade, me mostrou diversas outras interpretações sobre o longa!
    Assisti o filme hoje e não pude deixar de notar a diferença de como filmes dirigidos por mulheres e homens tratam acerca da realidade LGBT, nesse caso lésbico. Mais precisamente, não tive como não comparar com Azul é a Cor Mais Quente (um filme incrível, claro), dirigido por um homem, no que tange a sexualização dos corpos das mulheres, impossível não notar algo bastante forçado e mecânico nas cenas de sexo entre elas… Mas enfim, só queria comentar essa reflexão mesmo, não pude não fazê-la depois de você comentar sobre a diferença entre o consumo das obras feitas por mulheres e homens, haha. Obrigada pela critica!

  5. Que artigo lindo, Carol!
    Adorei a forma que você descreve como parecia que existiam só elas no mundo, e também por isso a depedida delas é tão comovente. Também adorei como você define “agridoce” o sentimento que a Heloise passa quando ela está no teatro.
    Ao mesmo tempo que fico muito feliz por ela finalmente estar ouvindo música e estar em um teatro, é triste porque a Marianne está ali apenas como observadora.

    O filme se tornou um dos meus favoritos. Eu vi tão concentrada que esquecia até de respirar. Que filme mais lindo!

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