O imaginário coletivo é formado pelas histórias que nos são contadas e passadas adiante conforme as gerações vão mudando. E, dessa forma, a cultura é moldada a partir da maneira com que lidamos e enxergamos o mundo.
Ouvimos histórias sobre grandes heróis desde muito cedo. Sejam em livros, quadrinhos, filmes ou oralmente. Se prestarmos atenção, podemos ver uma grande semelhança na trajetória entre muitos desses heróis. Frodo, Luke Skywalker ou Harry Potter, suas jornadas seguem quase o mesmo caminho. Isso acontece porque todos seguem uma estrutura muito semelhante: O Mito do Herói, mais conhecido como a Jornada do Herói, desenvolvido pelo antropólogo Joseph Campbell. Em sua obra O Herói de Mil Faces, Campbell defende que os mitos criados pelos humanos seguem arquétipos, isto é, seguem imagens primordiais que são associadas a acontecimentos no decorrer das gerações. Por essa razão, as estrutura das trajetórias são tão semelhantes.
Campbell divide a Jornada do Herói em 12 passos: o Mundo Comum, ou o mundo normal do herói, estabelecido antes do início da aventura; o Chamado da Aventura, quando o problema se apresenta ao herói; a Recusa ao Chamado, quando o herói se recusa ou hesita em aceitar o desafio; o Encontro com o Mentor, em que o herói encontra alguém que o leva a aceitar o chamado e o treina para a aventura; Cruzamento do Limiar, no qual o herói abandona o mundo comum para entrar no mundo especial; Teste de Aliados e Inimigos ou A Barriga da Baleia, quando o herói enfrenta testes, encontra aliados e enfrenta inimigos, de forma a aprender as regras do mundo especial; Aproximação do Objetivo, quando o herói tem êxitos em suas provações; Provação Máximas, a maior crise da aventura, a batalha de vida ou morte; Recompensa, quando o herói, após enfrentar a morte, se sobrepõe ao seu medo e ganha uma recompensa (o elixir); Caminho de Volta, em que o herói deve voltar ao mundo comum; Ressurreição do Herói, quando este enfrenta novamente a morte e deve usar tudo que foi aprendido; Regresso com o Elixir, quando o herói volta para casa com o elixir (que também pode ser traduzido em seus conhecimentos adquiridos) e o utiliza para transformar o mundo ao seu redor.
Essa teoria moldou a estrutura da cultura popular como conhecemos hoje. O Universo Marvel e o DCU são exemplos claros de como aplicar a Jornada do Herói em suas produções, assim como as franquias de Star Wars e Senhor dos Anéis. No entanto, a estrutura narrativa de Campbell, que pregava sobre arquétipos humanos independentes de gênero, não se aplica totalmente às jornadas psicológicas e conflitos de personagens femininas. As heroínas possuem dificuldades específicas e diferentes das dos heróis, da mesma forma que, na realidade, mulheres sofrem muito mais dentro da sociedade do que os homens.
Em 1930, com o surgimento da primeira mulher heroína nos quadrinhos, a quebra de padrões comportamentais e de pensamento foi inevitável — e de imensa importância. Naquela época, a objetificação das mulheres era ainda maior, o que também acontecia no cinema e na televisão. Mas com a modernização da cultura e o maior acesso a informações e o avanço do movimento feminista, a sexualização de personagens femininas foi diminuindo gradativamente.
Mas, afinal, onde a Jornada do Herói influencia na trajetória da mulher dentro de produções culturais?
O que é a Jornada da Heroína?
Durante a década de 1990, Maureen Murdock, que foi aluna de Campbell, lançou o livro A Jornada da Heroína, uma alternativa para o que Campbell havia criado, porém compreendendo os aspectos sociais e culturais que diferenciam as experiências de homens e mulheres em sociedade — como reagem a conflitos, pressões e obstáculos que mulheres encontram e homens não, etc.
A Jornada da Heroína é baseada em experiências de mulheres que idealizaram, se identificaram e se aliaram à cultura masculina que predomina na sociedade. Com isso, querem se desassociar da figura feminina já que, desde crianças, rejeitam o universo da mulher e suas qualidades tais como a intuição, a expressividade, criatividade e espiritualidade.
Essas etapas não são restritivas: a heroína pode querer se desassociar da figura feminina sendo ela a boa moça da história ou uma vilã. Além disso, nada impede uma pessoa de encontrar a si mesma em uma ou mais etapas ao mesmo tempo. O modelo sugerido não têm restrições de idade ou gênero, por isso Murdock sugeriu que a jornada de uma heroína era em direção a unidade dessas forças e a “integração dos aspectos masculinos e femininos dela mesma”.
A Jornada da Heroína é, portanto, um conflito bem mais pessoal do que a Jornada do Herói. Diferentemente do herói, a heroína vive em conflito consigo mesma, entre o que se espera dela e o que ela realmente é.
As fases da Jornada da Heroína
Murdock divide a Jornada da Heroína em dez fases: a Separação do Feminino, quando a mulher começa a se distanciar de tudo aquilo que é considerado feminino — a mãe, por exemplo, que pode funcionar como uma representação do que a heroína renega em sua feminilidade. A Identificação com o Masculino e Reunião de Aliados, quando a heroína passa a se identificar com valores masculinos, ou seja, pode aproximar-se do pai, que em oposição à figura materna será uma representação da liberdade. A Estrada de Testes que, assim como na Jornada do Herói, é o momento em que a heroína enfrenta os obstáculos que a levam ao seu desenvolvimento, mas, diferente do herói, com conflitos internos, como noções de dependência, amor e inferioridade. O Encontro com o Sucesso Ilusório (Experimentando o “boon” do Sucesso), quando, depois de superar os primeiros obstáculos, irá experimentar o sucesso, para depois perceber que traiu seus próprios valores para atingir o objetivo — o Despertar de Sentimentos de Aridez Espiritual/ Morte.
Por isso se sentirá em conflito e limitada na nova vida; a Iniciação e Descida para a Deusa, após a crise de identidade, quando a heroína deve se reconciliar com seu lado feminina, ou seja, reencontrar-se-á com a figura da deusa, que representa os valores que ela abandonou. A Reconexão com o Feminino, fase em que a heroína busca recuperar sua conexão com o sagrado feminino para entender melhor sua psique. Para isso, ela pode tentar reacender um vínculo com a mãe, por exemplo, e passar a ver seus antigos valores sob uma nova perspectiva. Em Curando a Divisão com o Feminino, a heroína finalmente se reconecta com suas raízes, encontra força no passado. Ela emerge da escuridão com um senso de identidade mais profundo; é capaz de compartilhar e ser apoiada, recupera traços femininos que antes considerava sinais de fraqueza. Já ao Curar o Masculino Ferido, após a primeira reconciliação, a heroína deve compreender a parte masculina de sua identidade e entender que existem pontos positivos e negativos deste aspectos. Por fim, há a Integração do Masculino com o Feminino, quando a mulher encontra equilíbrio interior. É um momento de reconhecimento, uma lembrança daquilo que, no fundo, ela sempre conheceu: sua essência.
A real Jornada da Heroína
A teoria desenvolvida por Murdock começa descrevendo uma mulher que tenta se libertar dos arquétipos femininos impostos a ela com a intenção de buscar aprovação e reconhecimento em uma sociedade dominada por homens, obrigando-a a agir como tal. A heroína passa por conflitos e pela perda de sua própria identidade.
Ela reflete sobre suas conquistas, mas ao mesmo tempo se questiona se foi merecedora ou se a conquista só foi possível por ter assumido um papel masculino, o que acaba na “morte” de sua falsa identidade criada para agradar a sociedade. Depois de passar pelos nove estágios da sua jornada, a heroína finaliza a integração entre feminino e masculino, e renasce buscando pela reconexão com o que realmente o feminino, sem um conflito de identidade, mas tendo certeza de quem é e abraçando a si mesma. Seus aspectos internos e externos permanecem e o sofrimento que resta a guia em uma nova jornada. A junção entre feminino e masculino se dá por reconhecer as próprias feridas, entendê-las e só então deixá-las ir.
Ser uma heroína é protagonizar sua própria história
Das histórias em quadrinhos às grandes produções cinematográficas, a figura da mulher está em constante ascensão. E, graças a isso, é perceptível a presença da Jornada da Heroína na construção dessas narrativas. Filmes e séries baseados no universo dos quadrinhos, em particular, tornam possível identificar a teoria ser utilizada na prática. É o caso de Capitã Marvel.
Carol Danvers (Brie Larson) tinha uma relação muito próxima com Mar-Vell (Annette Bening), que mesmo não sendo sua mãe, representa uma figura materna para ela. Porém, após a perda de sua memória, Danvers passa a ver a imagem de Mar-Vell com certa dúvida. Sem memórias, ela é levada por Yon-Rogg (Jude Law) para fazer parte de sua equipe. Durante todo o período em que eles ficam juntos, é dito que a Carol que ela precisa controlar suas emoções (o feminino) para ser mais forte.
O maior conflito interno de Carol é lidar com suas emoções e poderes. Ela não sabe quão forte é, sendo frequentemente vista como uma vulnerabilidade. Ao ser capturada pelos inimigos, Danvers nota que é o momento de testar suas habilidades e consegue lutar sozinha com uma tropa em vitória. Com os flashbacks, começam a surgir dúvidas a respeito de si mesma, momento em que ela também percebe que a vida que vinha levando não era verdadeira.
Ao longo de sua jornada, Carol tem uma crise de identidade, e ela não sabe quem realmente é. Ela parte em uma nova aventura para encontrar seu “eu” interior, verdadeiro. Ao mesmo tempo em que ocorre a separação dela com a figura masculina, ela descobre seu vínculo com Mar-Vell (figura feminina/materna). Danvers luta contra Yon-Rogg, mas não o mata. Isso demonstra o fim de um ciclo e o começo de um novo. Carol Danvers descobre seu verdadeiro poder e, principalmente, como controlá-lo. Ela aceita suas próprias emoções e entende que elas não são sua fraqueza, mas sua força. Em sua jornada de autoconhecimento, sua amizade com Nick Fury (Samuel L. Jackson) é o sinal de um ciclo que se inicia, de uma relação de harmonia entre feminino e masculino.
Capitã Marvel não é o único filme e se utilizar da teoria de Murdock em suas produções. Jessica Jones (Krysten Ritter), protagonista da série homônima da Netflix, Miss Marvel, das HQs de mesmo nome, e Diana Prince (Gal Gadot), de Mulher-Maravilha são alguns exemplos em que são possíveis observar a aplicação da Jornada da Heroína. Entre as animações da Disney, também podemos destacar Mulan (1998), que conta a história da guerreira chinesa que se disfarça de homem para lutar no lugar do pai, enquanto em Star Wars, Rey (Daisy Ridley) passa por todas as etapas da jornada durante a nova trilogia.
Nos filmes do Studio Ghibli, A Viagem de Chihiro, que conta as aventuras da pequena Chihiro em busca da libertação dos pais de uma maldição e de ter novamente uma vida normal, sai da experiência totalmente diferente de como começou sua jornada. E o que há de similar entre Merida, de Valente, Moana e Enola Homes, dos filmes de mesmo nome? Todas são personagens que passam por esse mesmo ciclo até conectarem-se a si mesmas e descobrirem sua verdadeira identidade.
Essa é uma jornada que não há prazo para acabar. É sem começo, meio e fim específico. Não importa a ordem das fases. E para cada desafio sempre há uma nova jornada.
** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!
Adorei! Já tinha um ouvido falar da jornada da heroína, é um recurso narrativo muito interessante para escritores.