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O que Vanusa pode nos ensinar sobre o culto ao fracasso das mulheres

“Fui eu quem se fechou no muro
E se guardou lá fora
Fui quem em um esforço se guardou na indiferença”

Vanusa, “Manhãs de Setembro”

Não é surpresa para ninguém o quanto a mídia em geral gosta de tripudiar em cima dos erros cometidos por mulheres. Qualquer passo em falso dado por uma mulher é um prato cheio para reportagens desrespeitosas, e agora, com a internet, passamos por uma glorificação do fracasso feminino. O que isso quer dizer?

A internet elevou o fracasso a outro patamar. Falamos sobre ele de maneira exaustiva nas redes sociais. Não temos apenas as reportagens desrespeitosas, mas um séquito de memes — que, ainda que sumam na mesma velocidade que aparecem, potencializam o desprezo que a sociedade tem pelos erros cometidos por mulheres.

Em 2009, a cantora Vanusa foi uma das primeiras mulheres brasileiras a viverem o shaming virtual, ao cantar o hino nacional de maneira errada durante um evento da Assembleia Legislativa de São Paulo. A partir daí, sua vida mudou radicalmente, trazendo à tona questões que nos fazem pensar em como a mídia afeta artistas física e emocionalmente.

O causo do hino brasileiro trouxe o nome “Vanusa” a muitos lábios. Uma vez que passara pela situação, a cantora virou meme, sem que ainda nem houvesse uma palavra para designar esse conceito na época. Pessoas falavam sobre Vanusa, questionavam se ela estava bêbada, que sorte de remédios havia consumido. Para muitos, era a primeira vez que pronunciavam seu nome, e essa pronúncia vinha atrelada a uma série de xingamentos etaristas e misóginos.

vanusa

Eu já pronunciara inúmeras vezes seu nome, na maioria delas para exaltar uma das cantoras com as quais cresci e me tornei adulta, ouvindo suas letras, sua voz tão potente e, ao mesmo tempo, tão frágil. Não era justo o que estavam fazendo com uma artista tão fascinante, mas, até aquele momento, desenhar o motivo era mais complicado. Agora, tenho consciência de que Vanuza pagou muito menos por seus erros e muito mais por ser mulher. Uma mulher mais velha, não tão conhecida, que precisou protagonizar um escândalo para que seu nome voltasse aos lábios das pessoas.

O calvário de Vanuza, com direito à depressão e remédios, não é algo incomum na sociedade. A exposição de mulheres, famosas ou não, a determinados tipos de shaming precisa da nossa atenção, especialmente por causa das consequências que traz. Infelizmente, a cantora não é a primeira a pensar em suicídio e se isolar após vivenciar um episódio de superexposição. Quantas mulheres, anônimas ou não, já não passaram pela mesma situação?

Vivemos em uma estrutura que enaltece o sucesso, mas, quando falamos sobre o sucesso de mulheres, ser bem-sucedida não é o suficiente. É preciso transpirar beleza, estar sempre feliz, ser uma ótima mãe. Não há tempo para questionamento e ressentimentos. No entanto, o que aconteceu  Venusa no fatídico Dia Internacional da Mulher trouxe à tona o que se esconde por trás da aparente perfeição de uma mulher: a depressão, os remédios e os fracassos. Talvez tenha sido por isso que as pessoas tenham ficado tão furiosas, e não porque estivesse assassinando o hino nacional. É porque olhar para as entrevistas com a cantora é confrontar-se com a fragilidade do que é ser mulher.

A maneira sensacionalista como a mídia tratou a questão não é melhor. No programa do Gugu, por exemplo, uma centena de médicos foram chamados para testemunhar sobre a saúde de Vanusa. Na realidade, vou além: eles estavam lá para atestar a veracidade das declarações de Vanusa. A cantora relatou que havia tomado inúmeros remédios antes da apresentação e que não havia dormido na noite anterior. Na hora da apresentação, ela começou a ter uma crise de labirintite, o que afeta os sentidos, mas continuou cantando. O que os médicos do Gugu fazem é reforçar essa narrativa, como se Vanusa precisasse que alguém — no caso, homens — confirmasse e validasse o que ela havia dito. Se não acreditamos em uma vítima de estupro, como vamos dar crédito a uma mulher que poderia muito bem estar bêbada? Pois é.

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Outro aspecto interessante sobre o causo é o fato de Vanusa não ter parado para dizer que não estava bem. Ela declarou em entrevista para Marília Gabriela que fez isso porque não gostaria de não entregar o compromisso, de furar com ele. Aqui, mais uma vez, voltamos à questão da sociedade que enaltece o sucesso a qualquer preço, ao ponto de se passar em cima de limitações físicas para produzir sempre mais. No caso das mulheres, esse compromisso com o sucesso, em entregar tudo o que esperam, é alimentado a ponto de se perder de vista a hora de parar. Porque, se paramos, sabemos o que irá acontecer: o dedo do vizinho, apontado na sua cara, dizendo o quanto você é fraca.

Ao ser duramente atacada e alvo de deboches, Vanusa adoeceu. Como muitas de nós, mergulhou em depressão, fazendo com que, inclusive, pensasse em suicídio:

“Você começa a achar de que não é digna de estar viva.”

Acho que muitas pessoas não pensam na responsabilidade que tiveram em relação ao caso Vanusa. Ah, mas foi na internet, né? Sim, e ela é um mundo paralelo, mas ainda assim um mundo, com consequências reais. Um mundo no qual é fácil insultar e expor as pessoas, pois o anonimato garante e legitima suas ações. Assim como a Hannah de 13 Reasons Why, o shaming deixou marcas profundas na vida de Vanusa, e não foi à toa que ela escolheu o isolamento. Contudo, ao contrário da personagem da série, ela conseguiu contornar o problema com terapia e apoio de amigos e familiares.

Brotam rosas das feridas abertas, é só saber regar

Depois de meses internada em uma clínica de reabilitação, isolada de tudo e de todos, Vanusa foi convidada para gravar seu último CD, Vanusa Santos Flores, pelo cantor e compositor Zeca Baleiro. Infelizmente, a grande mídia não deu a atenção devida a esse trabalho, pois Vanusa não faz parte do “cânone” quando falamos sobre cantoras brasileiras.

Minha teoria do cânone não é tão difícil de entender, basta pensarmos que algumas cantoras recebem mais atenção do que outras. Você consegue citar uma música de Gal Costa, por exemplo. De Maria Bethânia também. E quanto à Vanusa? Você sabia que “Paralelas“, composição de Belchior, foi cantada por ela pela primeira vez? E que Zé Ramalho compôs “Avôhai” para ela, muito antes de se tornar um grande cantor? Não, muito provavelmente você não saiba. A culpa disso é de uma mídia que separa os trabalhos que merecem mais valor do que outros. Vanusa não merece tanta atenção por ser, como ela mesmo declarou uma vez: brega. Mas brega para quem?

Para mim, o problema também está ligado ao fato de que Vanusa pertenceu à Jovem Guarda, movimento dos anos 60. Muitos cantores, classificados dentro dessa caixinha, foram tachados de alienados. A Jovem Guarda era a prima pobre da Tropicália, tida como muito melhor musical e culturalmente. Portanto, todos os trabalhos desses cantores e dessas cantoras foram esquecidos pelo tempo.

A verdade é que Vanusa tem álbuns fantásticos, que a colocariam muito, mas muito longe da alienação. No final dos anos 60, a cantora experimentou o rock psicodélico, as guitarras de Jimi Hendrix e os sons diferentes e gravou três álbuns que hoje são referência fora do Brasil. Muitas músicas desses álbuns, como “Atômico”, “Platônico” e “Mundo Colorido”, fazem parte de coletâneas de rock psicodélico estrangeiras, como a Brazilian Nuggets. Se você escutar esses discos, perceberá que o homem não vivia só de Os Mutantes.

A cantora também visitou a MPB, gravando Vanusa 30 anos, um de meus álbuns favoritos. Aqui vemos a maturidade de suas letras, como Estado de Fotografia:

“Eu não posso escorrer pelo mundo
Vivendo por nada
Num eterno estado de fotografia
Não tenho o direito de me acomodar”

Na mesma época em que flertava com a MPB, Vanusa cantou a abertura do Fantástico, aliás, ela era figurinha carimbada no programa. Em uma época em que o Fantástico reunia música, poesia e literatura no mesmo programa, a cantora deitou e rolou. Há registros muito bonitos dessa época, como A Espingarda de Rolha, em que ela canta com a filha, Aretha.

Em 2015, Vanusa fez com que flores brotassem das feridas causadas pelo incidente com o hino nacional, através de seu álbum, Vanusa Santos Flores. Acredito que esse disco resgata o que há de melhor em Vanusa: as letras maravilhosas, combinadas com arranjos fantásticos. Vanusa Santos Flores tem um tom intimista, no qual você consegue perceber nas letras o reflexo do que ela viveu e aprendeu nesses últimos anos. “Abre Aspas” faz parte desse grupo:

“O mundo anda em linha reta
Eu ando em linha torta
Eu ando do meu jeito
Se o mundo anda em linha reta
Eu ando em linha torta
Eu ando do meu jeito”

O último álbum de Vanusa é sobre redenção, solidão e alegria. Tudo o que nós mulheres, acredito, vivemos todos os dias. Há até espaço para discutir a velhice com a faixa “Tapete da Sala”, que ela utilizou para promover o álbum em alguns programas de televisão. Para mim, enquanto fã, esse álbum foi um dos melhores presentes que poderia receber. Uma grande resposta a todos aqueles que a levaram em direção ao fundo do poço. Acho que nada pode incomodar mais uma pessoa machista, misógina e etarista do que uma mulher resistente. Vanusa faz parte desse grupo, inclusive até fez propaganda para uma marca de cartão de crédito rindo de si mesma, na qual há uma referência ao causo do hino nacional.

Por fim, a exaltação dos fracassos é perigosa, especialmente quando estamos falamos sobre mulheres. A vergonha e a humilhação pelas quais uma mulher passa podem levar a toda sorte de danos, sejam físicos ou emocionais. Precisamos retirar urgentemente o peso de toda uma existência que recai sobre nossos ombros. “Todas temos o direito de sair, falar e ouvir o vizinho cantar nas manhãs de setembro.” Todas.

6 comentários

  1. Encontrei esse texto para ler sobre Vanusa 1973 e escrever uma resenha para minha página @cantamulher, no Instagram. Amo o trabalho da Vanusa e ler esse post foi essencial, um acalanto. Obrigada! E viva Vanusa! <3

  2. Muito sábia e didática sua reflexão! Com certeza olharei para Vanusa e, todas as outras mulheres na arte, com os outros olhos depois dessa leitura. Obrigada!

  3. Parabéns Jéssica… Um texto bonito, justo, merecido e confortante ao saber que há gente sensível à gente… só gostaria que pudesse abranger mais cabeças, que realmente dessem mais luz ao valor dessa mulher que tanto fez, que tanto caminho abriu, que tanto brigou e gritou pela e para a mulher, para a música, para sociedade… obrigado pelo carinho … bj

  4. Excelente texto!! Faz-nos repensar o papel da mulher de ontem e hoje!! Obrigada por me ensinar mais sobre essa grande cantora!

  5. Adorei a matéria. Amo Vanusa desde minha infância. Saudades. Amo as musica de Vanusa. Gratidão por ela ter passado por este mundo e feito parte de minha vida.

  6. Grande respeito pela obra dessa artista, porém difícil deixar de notar que a redenção de uma mulher só ocorre quando esta se encaixa nesse papel de “intimista e reflexivo”.

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