Categorias: TV

As Five: crescer é diferente de amadurecer

São poucas as telenovelas da Rede Globo que têm o privilégio de ter produtos audiovisuais derivados que não sejam remakes. Embora os fãs insistam em pedir seriados e webséries para continuar acompanhando seus personagens preferidos, ao longo da história da emissora apenas as obras de muito sucesso acabam por conseguir a façanha: Totalmente Demais e seus dois spinoffs; Haja Coração e a história de Teodora Abdalla enquanto estava perdida durante o folhetim; Fina Estampa e Senhora do Destino — ambas de Aguinaldo Silva — com filmes derivados estreando personagens populares (Crô e Giovanni Improta); a próxima novela das 18 horas, Nos Tempos do Imperador, derivada de Novo Mundo (2017); e, indo mais longe, em 1983, Voltei Pra Você, de Benedito Ruy Barbosa, um spinoff de Meu Pedacinho de Chão (1971), contando a história das crianças Serelepe/Pedro das Antas e Pituca/Liliane se reencontrando depois de adultos.

Levando em consideração a novela adolescente Malhação, que tem uma estrutura serial de temporadas fechadas, foi considerada a possibilidade de criação de derivados das temporadas Malhação: Intensa como a Vida (2012) e Malhação: Sonhos (2014) ambas de Rosane Svartman e Paulo Halm, mas a única temporada que conseguiu realizar o feito foi também a única que ganhou um Emmy. Malhação: Viva a Diferença (2018) contava a história de cinco meninas muito diferentes que se uniram por um fato inusitado: um parto no metrô de São Paulo. Depois de ajudarem Keyla (Gabriela Medvedovski) a dar à luz em um vagão da Linha Azul, a vida dela e as de Lica (Manoela Aliperti), Ellen (Heslaine Vieira), Tina (Ana Hikari) e Benê (Daphne Bozaski) se entrelaçam gerando um forte laço de amizade entre elas.

Com o sucesso da temporada, tanto de público quanto de crítica, Cao Hamburger mostrou um novo jeito de contar histórias adolescentes na TV aberta, abordando questões sociais, políticas e econômicas que afetam diretamente a vida dos jovens; um feito sucedido por outros autores nacionais apenas nos streamings. Vendo o sucesso da temporada e a disponibilidade de autores e atores para a produção de uma continuação, seria impossível que a emissora não investisse no projeto.

As Five tem a proposta de contar por onde andam as cinco protagonistas de Viva a Diferença cinco, seis ou sete anos depois do final da temporada (a data exata fica confusa em meio aos saltos temporais). A vida afastou as amigas, que não se falavam há um tempo, mas, mais que isso, criou uma barreira na forma como se relacionam. Ao longo da temporada, pouco a pouco, esse relacionamento entre elas vai sendo restaurado. No primeiro episódio, temos a situação quase metafórica que revela como as cinco não têm relacionamento algum além de um conhecimento superficial: no funeral da mãe de Tina, no que parece ser a casa do pai da moça, as amigas são meras convidadas e agem como tal.

Apesar de ser um spinoff derivado com as mesmas protagonistas, pela falta dos personagens secundários fundamentais do passado, o enredo talvez funcione melhor como produto independente, separado de Viva a Diferença. As perguntas não respondidas e a desconexão com a vida que as meninas levavam na novelinha com a que elas levam no seriado são espaços não preenchidos grandes demais para considerar as duas obras como um todo. O salto temporal causa estranheza para quem acompanhou a adolescência delas, não pelo afastamento, mas pela falta de informação sobre suas vidas no período entre Viva a Diferença e As Five. As cinco são sozinhas em suas vidas, sem apoio familiar algum, com apenas uma ou outra pessoa intimamente ligada a elas. Durante a temporada, as cinco sistematicamente perdem essas pessoas e encontram outras.

A “barra” que Tina “segurou” com a doença da mãe é abordada de forma superficial, apenas por menções. Ellen, apesar de estar no funeral da mãe da cunhada, está focada no prazo dos estudos do mestrado nos EUA, o que é compreensível para alguém com a trajetória dela. É talvez quem mais amadureceu durante os anos em que as cinco não conviveram, mas a volta para o Brasil abala tanto os dois mundos — passado e presente — que ela mantém separados, que a desestrutura. A revelação que Guto é gay é interessante para o enredo da série e a proposta de evolução de Benê como personagem, mas se desloca se analisada em conjunto com o relacionamento assexual dos dois em Viva a Diferença.

Talvez o lugar onde Keyla se encontra seja o mais incompreensível levando em consideração o enredo de Malhação: seu pai Roney (Lúcio Mauro Filho), tão presente e imprescindível na vida da adolescente, não é mencionado uma única vez. Uma única fala poderia ter resolvido o impasse, principalmente quando Lica pergunta a Benê sobre a mãe dela. Levando em consideração o relacionamento de Roney e Josefina (Aline Fanju) na novela e o desaparecimento dos dois do seriado, a menção de que teriam, por exemplo, saído de São Paulo e se mudado para o interior já resolveria o maior problema de As Five. Keyla ser mãe solo sem auxílio nenhum do pai dela ou da namorada dele é no mínimo estranho. Uma mãe solo desempregada em São Paulo é mais difícil ainda de se compreender sem uma rede de apoio. No decorrer da temporada, a rede de apoio dela acaba virando as outras quatro Five e o novo amigo Miguel (Marcos Oli). Das cinco, o enredo mais contínuo com o da novela é o de Lica que, se piorou no comportamento, pelo menos se mostra consistente com suas neuroses e o ambiente em que está e foi criada.

As Five

As Five tem um enredo fortemente forjado na ideia de como a Geração Z vive e se relaciona entre si. Porém ignora o fato de que nenhuma das cinco protagonistas parece realmente representar ou ainda mais estar inserida completamente nessa geração. Todas agem e se encaixam na faixa etária entre a Geração Millenial (Y) e a Geração Z, uma geração de transição que apresenta características de ambas e recebe a nomeação de Zellenials. As cinco protagonistas são jovens adultas, mas ainda não adultas. Elas podem fingir que têm vidas estruturadas, mas o enredo deixa claro que nenhuma delas ainda se encontrou, pessoalmente, profissionalmente, sexualmente ou amorosamente.

Essa confusão entre gerações acaba mostrando um pequeno problema de concepção do seriado que o faz destoar da realidade da Geração Z e até mesmo de uma parte da própria Geração Millenial. Essas duas gerações não são gerações tão “independentes”. Se os amigos eram a família da Geração X e Millenials mais velhos — nascidos no começo e meio dos anos 1980 —  e a independência financeira era regra, para os Zillenials falidos isso é um tanto inconcebível. Morar na casa dos pais é muito mais comum do que entre as gerações anteriores. Não apenas isso, mas morar na mesma cidade que os pais e não morar com eles é desperdício de dinheiro.

Claro, entre as Five, todas têm motivos plausíveis para não estar sob o mesmo teto que seus progenitores, mas esses motivos são tão sutis que fica difícil entender e acabam se perdendo durante os episódios. A forma como a plataforma escolheu apresentar esses episódios — semanalmente, não de uma vez só — também faz com que as informações se percam para quem acompanhou os lançamentos. Para uma série que se inicia com a família, os pais estarem completamente alheios às vidas de garotas de 23, 24 anos é destoante da realidade brasileira, tanto para Millenials quanto para Zellenials ou Geração Z.

A presença da mãe de Lica, Marta (Malu Galli), é tida como um traço de imaturidade da personagem. Mas quando se leva as características das gerações em consideração, isso pode ser ligado muito mais a uma perspectiva da Geração X do que às que vieram depois. Para Millenials, pedir ajuda não é mais vergonhoso, pois a crise extrema do mercado de trabalho fez com que esses conceitos caíssem. Os filhos ajudam na casa dos pais pois a renda de uma, duas pessoas não sustenta mais os gastos com uma vida digna debaixo de um teto. O Brasil de 2019 é o oposto do de 2009, e é impossível fingir que nada mudou em nosso país nessa década.

Todas as cinco vivem vidas tão idílicas que o principal cerne do que sustentava o apelo de Viva a Diferença, que realmente representava a adolescência da Geração Z, não se faz presente em As Five. Os problemas geracionais e sociais não estão ali e a série acaba por escolher uma abordagem mais individual, que remete a algumas outras séries brasileiras do passado e talvez denuncie a geração a qual pertencem os roteiristas. Pela ambientação paulistana, lembra principalmente Alice (2008) e Aline (2009), ambas contatando histórias de jovens moças de vinte e poucos anos — pertencentes a Geração X e Millenials mais velhos — encontrando a si mesmas social e sexualmente na capital paulista.

A montagem e edição do seriado também não o favorece, dando a impressão que diversas cenas foram cortadas, o que faz parecer que tem um enredo raso, sem um aprofundamento maior em nenhum dos cinco núcleos. Impossível não comparar com Sintonia (2018), que numa primeira impressão pode parecer ter uma abordagem diferente, mas que representa os jovens adultos da Geração Z de forma incomparável tocando em assuntos tabu para a sociedade — não mais sexo, mas sim religião, fama e marginalidade —, ousando continuar de forma mais completa de onde Viva a Diferença parou.

Apesar dos erros de concepção, As Five apresenta cinco narrativas femininas e feministas pertinentes aos jovens. Ao individualizar os problemas das protagonistas, o seriado acaba por generalizar suas histórias, o que faz com que os assuntos fiquem um tanto diluídos em 10 episódios, mas conseguem prender o interesse de forma suave. Dissociação, sexualidade, relacionamentos tóxicos, sonho versus realidade, e questionamento das escolhas são os alguns dos temas abordados.

Benê: descoberta da sexualidade

A Five Benê

Ao descobrir que seu namorado de anos é gay e que, ao contrário do que ela pensava e do que tinham em comum, ele gosta de sexo, Benê começa a rever todos os conceitos sobre sexualidade que tinha como certos para sua vida até ali. Sua busca pela própria sexualidade se encontra com a de seu novo vizinho, Nem (Thalles Cabral), moço misterioso e um tanto “estranho”, viciado em pørnografia.

“Eu tinha essa curiosidade, de entender como alguém como você tinha tantos amigos. Agora eu entendi. Quando todo mundo é esquisito ninguém é esquisito”, Nem comenta com a moça no episódio da festa de despedida de Ellen. Enquanto em Viva a Diferença o arco de Benê era externo, descobrindo o mundo e como se relacionar com as outras pessoas, em As Five vemos a personagem se voltar para si. Ela já descobriu quem é dentro da dinâmica das relações e é confortável na própria pele em relações sociais e profissionais, mas ao ver o ex satisfeito sexualmente, sua perspectiva se abre para também buscar essa possibilidade.

Na série, perdemos a possível narrativa da assexualidade e de como um personagem jovem adulto assexual navega por relacionamentos amorosos e sexuais no mundo de encontros online, mas ao mesmo tempo ganhamos a exposição da vida sexual de pessoas no espectro autista. Benê tem a característica da aversão ao toque e a série adentra por suas reações ao descobrir o prazer com o próprio toque e o toque alheio. Apesar disso, As Five peca em mostrar a moça se sentindo desconfortável com o sexo de Nem, que emula a pørnografia, e optar por deixar de fora da tela a conclusão dela sentindo prazer no sexo com o moço que acabou de conhecer.

O enredo polêmico do vício em pørnografia também não é muito aprofundado. As consequências de homens que crescem com modelos irreais e quase teatrais de atos sexuais nas relações pessoais da vida real são prejudiciais não só para suas parceiras e parceiros mas também para si próprios. Após transar com Benê, Nem não “necessita” mais da pørnografia, mas a verdade é que um vício não consegue ser curado com sexo. A série também não entra nas problemáticas de sites de pørnografia com vídeos criminosos (estupro, pedofilia etc.), e ainda não aborda a discussão de camgirls/boys como um estilo de profissional do sexo cada vez mais comum.

A cena final de Benê é ousada no contexto da série, ainda mais se for levado em consideração ela ser uma pessoa neurodivergente, mas nos diz pouco sobre os rumos da personagem. A dúvida de para onde o relacionamento com Nem caminha, se de forma não-sexual ou sexual, fica restrita a outro personagem que os espectadores não conhecem.

Keyla: redescoberta de si mesma

Keyla

Com um filho de sete anos para criar, a vida de Keyla parece ser a mais complicada de se navegar. Mãe solo e sem apoio, ela tem que balancear as necessidades de Tonico (Matheus Dias) e as suas próprias com empregos em que ela não se sente realizada e sem perspectiva de melhora. Com o reencontro com as amigas e a demissão do telemarketing, a moça vê uma janela de oportunidade se abrir para buscar a verdadeira profissão que quer seguir: atriz de teatro musical.

Para Keyla, a volta de seu relacionamento com as outras quatro garotas significa ter uma rede de apoio necessária para qualquer mãe, solo ou não. Ao dividir Tonico com as amigas, ela pode respirar e pensar em si como indivíduo, longe da pressão da maternidade. Keyla se perdeu na vida do filho e isso fica evidente no segundo episódio, quando, ao tentar escolher roupas para si, ela não sabe mais qual é seu próprio estilo. Num primeiro momento o pensamento dela se concentra no que o filho precisa e a presença de Tina redirecionando o foco para a própria Keyla, mesmo que de um jeito um tanto egoísta, é crucial para que a moça comece a se enxergar mais.

São as amigas também que a ajudam a começar uma vida de encontros amorosos por aplicativos, apenas um meio para chegar na verdadeira narrativa de Keyla na temporada: sua busca pela felicidade profissional. Embora o furo narrativo das finanças da moça incomode, a tentativa de mudança profissional pela qual ela passa é fácil de se identificar. Suas passagens por diversas situações humilhantes apenas por ser mãe demonstram o quão cruel nossa sociedade é com as pessoas com quem deveríamos ser mais cuidadosos.

É em sua primeira audição que conhece Miguel, e os dois se tornam amigos rapidamente. O moço, mais ambientado com a profissão que ela, a ajuda com os percalços e constantes fracassos e decepções que vêm atrelados às profissões artísticas. Miguel, homem negro e gay, que encarna também a dragqueen Michelle, vira uma espécie de “fada madrinha” de Keyla, sem fugir dos diversos estereótipos que acompanham tanto personagens gays cis quanto personagens de homens negros. É ele quem tem respostas e soluções para os problemas da amiga, soltando frases de sabedoria sempre que aparece em cena. É necessário que Miguel, nas futuras temporadas, tenha um arco narrativo que não seja apenas ajudar a moça hétero branca.

Amorosamente, das cinco Keyla talvez seja a que tem a vida mais interessante. A dinâmica que o filho impõe em sua vida sexual traz frescor para o seriado e a atriz tem química com todos os possíveis pares românticos. Essa narrativa também é um grande acerto, mostrando a pluralidade das relações afetivas que se pode encontrar em São Paulo e brincando com estereótipos e preconceitos dos tipos paulistanos. Se havia dúvida que o seriado era paulista, a cena da aliança de namoro faz com que essa dúvida seja sanada: algo corriqueiro entre os moradores do estado, mas ultrapassado para o restante do país.

Tina: encoberta do luto

Tina

A relação de Tina com a mãe nunca foi das melhores. Não fica claro se a moça cursou ou não a faculdade de medicina que Mitsuko (Lina Agifu) tanto queria, mas a carreira que seguiu foi a de DJ. A morte da mãe evidencia na narrativa de Tina que algo não está dando tão certo assim em sua vida, e o pavor de que ela estivesse certa faz com que a Five comece a se fechar para todos ao seu redor.

Apesar de reencontrar as amigas e tê-las em sua vida — além de Anderson (Juan Paiva) e a irmã Telma (Tati Ang) — Tina é, das cinco, a que está mais sozinha. Ao se negar a tomar conhecimento do luto pela morte da mãe, ela se afasta de todos, se isolando em uma espécie de dissociação ao focar intensamente no trabalho, fazer uso indiscriminado de drogas e antagonizar o namorado. A dissociação acontece quando, por um trauma, as pessoas se deslocam mentalmente do próprio corpo. Essa dissociação pode ser leve ou mais pesada, apresentando diversos sintomas como: sensação de não pertencimento em si mesmo, não reconhecimento de si, pequenos lapsos de memória, esquecer o que está fazendo/vai fazer, fuga da realidade, fantasiar acordado, ficar parado olhando para o nada com a mente vazia.

Para fugir das questões que não quer enfrentar, Tina faz uso das redes sociais de forma quase viciada. Ela acaba por maquiar a dissociação com as redes sociais, e o uso que faz delas é uma forma de fugir da realidade que não quer encarar: a morte da mãe. Ao tentar assumir o controle absoluto de Tina, Mitsuko virou a principal antagonista da filha, que moldou sua vida à revelia da mãe: personalidade, profissão e namorado. Com a ausência dessa figura de contraponto, Tina se vê sem um referencial, o que a faz cair numa espiral de perda de consciência de si própria. O final do namoro com Anderson acaba por ser apenas um dano colateral da crise depressiva em que a moça está começando a entrar. Tanto que quem acaba tudo é ele, não ela.

A conclusão da narrativa de Tina é incerta. A sutileza com que as últimas cenas da personagem na temporada são apresentadas não deixam claro se ela irá ou não processar o luto. Quanto às redes sociais e aos narcóticos, é impossível que Tina modifique radicalmente sua forma de usá-los, pois ambos estão inseridos no estilo de vida de sua profissão.

Ellen: descoberta do próprio caminho

Ellen

Quando Ellen volta para o Brasil para o funeral da mãe de Tina, a verdade é que parece que ela não queria realmente ter voltado. O acontecimento coincide com a chegada do prazo de entrega e defesa de sua tese do mestrado no MIT (uma das mais importantes universidades de pesquisa e desenvolvimento de tecnologia e ciência do mundo), e todo o caminho que a moça vem traçando até ali culmina nesse prazo.

A pressão que vem sentindo de sua orientadora, Kiara (Jesuton), não é apenas fruto da pressão que a própria mulher mais velha sofreu no passado. O que Kiara diz a Ellen, que nada do que elas fizerem será bom o suficiente por serem mulheres e negras em um campo comumente dominado por homens brancos, não é nada comparado à própria cobrança interna da moça. Além da cobrança racial e de gênero, Ellen também se cobra por estar fora de seu país sendo uma história de sucesso e “superação”.

Ellen é quem mais amadureceu das cinco, mas esse amadurecimento vem não porque ela está pronta, mas por uma imposição social e racial de um amadurecimento mais rápido. Como mulher negra, ela não tem o benefício de poder errar e recomeçar quantas vezes quiser como as outras, inclusive Keyla. Ellen não só parece deslocada das amigas, ela está deslocada porque está em um outro momento, que as amigas não alcançaram ainda. É possível observar que, ao voltar para os EUA, Ellen se sente completamente confortável naquele ambiente, relaxada com as amigas da faculdade, que parecem realmente a entender e fornecer a ela o apoio que precisa.

Nos Estados Unidos, Ellen é uma cientista, seu passado são suas pesquisas e não a comunidade de onde vem. Em São Paulo, apesar de ser uma pesquisadora, é vista mais como uma garota que veio da periferia do que como quem é agora. A tese é tão importante para ela porque a faz sentir que é boa o suficiente. Ela ousa modificar a tese no final porque vê que é muito mais do que seu passado a levou a acreditar.

Fica incerto o quanto a traição e o caso com Lito (Matheus Campos) afetou essa decisão, mas o que ela diz a Omar (Bilaal Avaz) é um fato: não teve a ver com a relação que ela tinha com o noivo, mas sim com a crise por ter voltado ao Brasil. Ellen está perdida entre passado e presente, entre a menina que saiu da periferia e a cientista. O final do mestrado também assusta, o futuro em branco sem ser preenchido ainda. Com a chegada de Omar, as duas perspectivas são postas lado a lado e Ellen pondera qual seria realmente seu caminho. Voltar para os EUA e fundamentar pra valer uma vida longe da família, mas profissionalmente encaminhada, ou voltar ao Brasil, com a pesquisa científica precarizada, mas perto da família.

A traição resolve a parte do casamento, que desde o início Ellen não parecia muito confiante em levar adiante. Lito, o manic pixie dream boy de Ellen é, então, mais um homem negro que o seriado relega a estereótipos. Ele acaba transformado em um “guia espiritual” para a moça, compartilhando com ela sua sabedoria do relaxamento, da maconha e do sexo. Ser sapiossexual (pessoa que se atrai sexualmente pela inteligência alheia) é uma característica condizente com a personalidade de Ellen e um motivo válido para se envolver com Lito. Tudo isso fica claro quando ela observa Omar fazendo uma apresentação no congresso. Como a narrativa das outras quatro, seu futuro fica em aberto, tanto em relação à sua vida amorosa, quanto ao que vem depois do mestrado.

Lica: não descoberta da realidade

Lica

Desde Viva a Diferença, Lica vem sendo a garota rica sem foco, perdida em tantas opções. Parece que pouco mudou de lá para cá. Tudo o que ela parecia ter encontrado ao final da temporada de Malhação, foi perdido ou desgastado pela vida. Começou diversas faculdades sem terminar nenhuma, não tem projeto algum de futuro e vive da mesada da mãe. Nada disso é necessariamente um problema, e Lica estava feliz vivendo essa vida até que três situações aconteceram que a fizeram tomar uma atitude de mudança, o que não quer dizer que ela irá mudar realmente ou que fosse algo lógico a não ser para ela.

A primeira foi Marta se encher da filha e cortar o dinheiro, fato a que Lica prefere não dar muita atenção no início, mas que gera uma dívida de cartão de crédito de 15 mil reais. Com a dívida e o cartão cortado, ela resolve então procurar um desses empregos de que todo mundo fala, primeiro com o amigo MB (Vinicius Wester) — que agora é impressionantemente (ou não) dono de um restaurante — e depois com a ex-namorada Samantha (Giovanna Grigio), assistente de uma editora de site/revista online. A segunda foi a mudança de Benê para o apartamento que Lica (ou sua mãe) é proprietária. Apesar de não precisarem pagar o aluguel, elas ainda precisam quitar outras contas como luz, água, gás, internet e condomínio, tudo isso morando num prédio aparentemente caro na República. O padrão de vida de Lica — e consequentemente de Benê — não é barato, apenas por viverem num bairro central de São Paulo. Ela também se compromete a mudar de comportamento com Benê, o que não é acompanhado pelos espectadores, mas parece ocorrer. E a terceira situação é ter tido uma relação sexual com Alice (Dira Paes), uma mulher mais velha e casada, jornalista a quem Lica admira.

De início, Lica pensa que seu envolvimento com Alice viria a ser algo além do sexual, uma projeção distorcida. A moça vê na jornalista um futuro que poderia ter, mas não se atenta à jornada que Alice percorreu para ter aquela vida. Ao final do episódio, quando Lica pensa que a jornalista fala dela, na verdade ela apenas se vê naquelas palavras. Lica é imatura, jovem demais e sem experiência de mundo para compreender ou ter tudo o que quer. Até porque o que ela quer são coisas que não se pode comprar: uma carreira relevante e influente e um relacionamento amoroso sincero.

Essas três situações culminam na personagem voltando a procurar Samantha. Fica claro que a segunda ainda tem sentimentos fortes por ela, mas por estar perdida, sem conseguir saber como chegar até onde quer, Lica acaba colocando os pés pelas mãos. A falta de noção de realidade é agravada pela impulsividade da moça, que nunca teve que esperar para ter nada antes na vida. Samantha, achando que dessa vez vai ser diferente, acaba por se enredar nos problemas da Five, entrando mais uma vez no relacionamento tóxico que Limantha acabou se tornando.

Por fim, Lica consegue resolver um de seus problemas, o encanamento do prédio. Seu possível caminho parece ser o de síndica, mas se equivoca mais uma vez e confunde a possível realização pessoal com a amorosa ao pedir Samantha em casamento. Para ela, o fato de ter conseguido colocar um item em ordem na vida já sinaliza que está pronta para dar um outro passo.

Lica erra muito mais que acerta, pois, como toda garota rica, pode se permitir esses vários erros. Seus atos não têm consequências porque ela mora num apartamento de dois quartos que é dela e a falta de fundos não a colocará na rua. De todas as cinco, Lica parece ser a que mais representa a nova Geração Z: aberta a experiências novas e à diversidade, mas perdida nas possibilidades; com 24 anos, e com pais presentes em suas vidas.

A Geração “Ressaca” (Z) é, sobretudo, o oposto da Geração Coca-Cola (X): jogada a um mercado de trabalho praticamente inexistente, vivendo com os pais, sem universidade ou insumo para pesquisa, completamente conectada, tentando se vender como indivíduo neoliberal na internet (com picpay, twitch, vaquinhas, financiamento coletivo), mais tolerante, mas também mais polarizada.

A série consegue conversar com ambas as gerações, incluindo também os Millenials e Zellenials, perdidos no meio dessas mudanças. A verdade é que, apesar das definições das gerações serem diferentes e das décadas que as separam, no fundo, o Brasil continua o mesmo: negros têm que se esforçar de forma desumana e aguentar racismos e preconceitos para ter uma fatia do bolo, mães são relegadas à posição de cidadãs de segunda classe, neurodivergentes são interpretados de forma errônea pela sociedade, e a classe alta domina todas as esferas. As Five é, apesar das superficialidades, um produto muito brasileiro, gerado de outro mais brasileiro ainda, o que automaticamente instaura o seriado no rol dos audiovisuais de virada. É a partir dela que virão outras mais complexas.


** A arte em destaque é de autoria da editora Paloma.