Todos têm seus próprios egoísmos. Do mais rico ao mais pobre. Do mais sensato ao mais sem noção, a sociedade é composta por pessoas que pensam, primeiro, em si mesmas e, depois, se sobrar tempo, se ganhar algo em troca, se conseguir lembrar, nos outros. Por mais que adentre em outras questões sobre as relações humanas e sociais, essa é a premissa básica de Triângulo da Tristeza.
Atenção: este texto contém spoilers!
Vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes, o filme do diretor Ruben Östlund chegou ao Oscar sem causar muitos burburinhos, mas cravando sua indicação em três categorias que apontam para uma produção bem construída e autêntica — Melhor Direção, Melhor Filme e Melhor Roteiro Original, escrito pelo sueco, que centra seus esforços em criar discussões sociológicas em ambientes desafiadores, como em uma redoma onde se observa um experimento científico.
Em Triângulo da Tristeza, diversos personagens de origens diferentes se encontram em um iate de luxo. Por mais que, no decorrer da trama, todos ganhem destaque, o fio condutor da história é o casal de modelos, Carl (Harris Dickinson) e Yaya (Charlbi Dean). Ambos vivem sob a ilusão criada pela mídia: enquanto Yaya é uma modelo de sucesso e influencer, que não tem realmente dinheiro, mas ganha as coisas de graça, o namorado tenta ganhar a vida como modelo masculino (os quais recebem muito menos e têm menor projeção do que as mulheres na indústria) e, como todos de sua geração, está obcecado em querer externar e entender suas questões internas e seu relacionamento, como em uma sessão de terapia, o que leva o casal a discutir o tempo todo.
A vida real, no entanto, nunca estará no ritmo de Carl — ou Carl nunca estará no ritmo daqueles ao seu redor — e há uma falta de adaptação latente em sua jornada, pois uma mundo nunca irá desacelerar para que ele processe as coisas em seu tempo e nem todos desejam ou precisam disso. Às vezes, as coisas são mais simples do que se imagina: enquanto para Carl há nuances e significados nas ações alheias, a realidade de Yaya, por exemplo, sua namorada, gira em torno da fama e, especialmente, de seus seguidores, da vida perfeita que irá projetar para quem pode dar a ela o que lhe interessa — e isso inclui um namorado perfeito, ao menos em aparências.
Tudo no mundo dos passageiros do iate de luxo são aparências, que vão desmoronando a cada minuto passado no barco. Inicialmente, se veem apenas os funcionários perfeitos, uniformizados e… brancos. Para os milionários do iate, os homens e mulheres filipinos que trabalham nas máquinas e na limpeza do barco, um serviço mais precarizado que os outros, não são para servir — e, em sua essência, não existem. Não devem existir, ao menos, nas vistas. Devem existir para fazer o mundo funcionar sem que sejam notados.
Triângulo da Tristeza capricha em uma hipocrisia muito própria, não tirando sarro de si mesmo, mas da realidade do mundo, explorando as disparidades desse ambiente muito pequeno, onde não tem medo de retratar a sociedade como ela realmente é. Apesar de se tratar de um iate de luxo, com pessoas milionárias para potencializar o seu efeito junto ao público, algumas características e padrões são repetidos independentemente da condição financeira das pessoas, bastando um grupo para espelhá-las. Não há escapatória neste ciclo vicioso de virtudes fabricadas em nome de interesses particulares.
O roteiro é ácido, sem medo de colocar no mesmo plano milionários representantes da indústria bélica, da indústria química, da indústria tecnológica com seus criadores de aplicativos, representantes da família tradicional conservadora (que não são conservadores, de fato) e trabalhadores, que devem se submeter àqueles que se acham, naturalmente, os donos do mundo e das vontades de terceiros que não podem ouvir “não”, em um retrato afiado das desigualdades sociais, em maior ou menor grau, presentes em todos os países.
Sim, Triângulo da Tristeza pode ser descrito como um filme que tira sarro dos ricos. Porém não se trata de uma produção que esquece de colocar os pobres sob uma lupa também e é possível questionar: até que ponto é uma sátira se, ao abrir a porta, o mundo é exatamente assim? Se supostos comunistas e supostos capitalistas passam o dia todo nas redes sociais (criados por indústrias que ganham milhões em cima desses usuários) replicando frases feitas de seus ídolos ideológicos, sem exprimir nada de fato, além de palavras vazias, pois o que precisa ser examinado é a realidade em que vivem; ou seja, a ironia e a hipocrisia de suas falas, exatamente como acontece no filme?
Atenção: a partir deste ponto o texto contém spoilers!
Em determinado ponto do filme, os personagens de Woody Harrelson, o Comandante, e o milionário Dimitry (Zlatko Buric), bêbados, se perdem — no tempo e na intenção — em uma discussão política, enquanto os passageiros e tripulantes adentram em um caos completo por conta da maresia. Um reflexo de como, no mundo real — ou virtual — as discussões ganham mais amplitude do que a resolução dos problemas apontados, pois o que importa é se provar. Crenças, de qualquer tipo, mas, especialmente, as crenças políticas servem somente para uma coisa e para cada pessoa de um jeito diferente: crer.
É nessa altura que Triângulo da Tristeza mostra a que veio e prova como é muito bem intrincado em suas ironias. Para aqueles de estômago mais fraco, o filme consegue fazer embrulhar ao, literalmente, mostrar como, por trás de paredes luxuosas, comidas caras e pretensiosas, roupas de grife e joias que valem milhões, há apenas esgoto e vômito. Muito esgoto e vômito. Na tentativa de ostentar o que muitos sonham em possuir, mas poucos podem, essas pessoas saem perdendo, já que não estão acostumadas à maresia — enquanto isso, a tripulação, os trabalhadores do barco, agem para ajudá-los, sem sentir o efeito do mar.
Eles, porém, são impedidos de voltar à normalidade após o episódio escatológico quando o iate afunda e parte dos sobreviventes consegue chegar a uma ilha deserta onde, sem comida, roupas e itens de necessidade pessoal, precisam se organizar em comunidade. Sem surpresas, todos, sem exceção, reproduzem os mesmos comportamentos das sociedades comuns, como se não estivessem em um cenário de exceção, pois este é o método de organização social que conhecem.
A título de exemplo, apesar de se encontrarem em igual situação de náufragos, os ricos acreditam piamente que os funcionários estão ali para servi-los ou que podem comprá-los com coisas sem valor na ilha (relógio, influência, dinheiro). Mas, como bem compreende Abigail (Dolly De Leon), suas necessidades são imediatas e precisam ser supridas na própria ilha. Sendo a chefe de limpeza do iate, quem pensou em sobrevivência primeiro e, perfeitamente capaz de suprir o que essa nova, pequena e muito disfuncional sociedade precisa, uma revolução é feita e Abigail demanda o poder — afinal, como ela mesma aponta, ela fazia parte da limpeza no iate, não na ilha.
As hierarquias são derrubadas pelo naufrágio, mas não a construção deturpada da sociedade em que todos foram criados, independente de serem de locais diferentes do mundo. Abigail cresce como uma das personagens mais interessantes e complexas de todo o filme, em cima da necessidade alheia. E, em essência, por trás dos ideais e palavras bonitas, não são assim todos os líderes? Frutos de demandas de terceiros que não têm coragem, vontade ou talento para estar nessa posição?
Em Triângulo da Tristeza, Östlund recria uma “perfeita sociedade imperfeita” através do retrato desses sobreviventes. Prevalece nesta pequena redoma a segregação, a corrupção, a perversão, a manipulação, a pretensão do intelectualismo, o preconceito de raça e, ao seu próprio modo, a desigualdade social. Como diversos líderes ao redor do mundo, Abigail toma decisões unilaterais, dorme no melhor lugar da Ilha, tem ao seu redor quem a agrada para conseguir regalias, os recompensa, pune quem comete “crimes” e muito mais.
Trata-se de um filme provocante, bem construído em cada uma de suas decisões, inclusive a de não conferir um pano de fundo aprofundado para todos os personagens (afinal, eles são o que são na própria superficialidade), bem-humorado, político e tenso na medida certa para retratar os egoísmos, hipocrisias e ironias que cabem dentro de cada um: nós, os espectadores; e eles, quem estávamos julgando como se não estivéssemos olhando em um espelho.
Triângulo da Tristeza recebeu 3 indicações ao Oscar, nas categorias de: Melhor Filme, Melhor Direção e Melhor Roteiro Original.