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De Aelin à Bryce: por que amamos as protagonistas de Sarah J. Maas?

Sarah J. Maas é uma autora estadunidense conhecida por suas duas principais obras, as sagas Trono de Vidro, de 2012, e Corte de Espinhos e Rosas, de 2015, ambas inspiradas em clássicos dos contos de fadas — Cinderela e A Bela e a Fera, respectivamente. De queridinha à odiada pelos aficionados por fantasia young adult, a popularidade de Maas é inegável. Uma de suas publicações mais recentes, Casa de Terra e Sangue, primeiro volume da trilogia Cidade da Lua Crescente, ganhou a categoria Melhor Livro de Fantasia do Goodreads 2020, e o novo volume de Corte de Espinhos e Rosas, Corte de Chamas Prateadas, é um dos livros mais esperados de 2021, principalmente pelo público feminino adolescente e jovem adulto.

O hype feérico, como gosto de chamar (feéricos são os novos vampiros e Corte de Espinhos e Rosas é o novo Crepúsculo), é fenômeno de duas redes sociais em específico: Twitter e TikTok. Ambas possuem comunidades fervorosas de leitores, que usam 140 caracteres e 1 minuto de vídeo para exporem suas opiniões, lágrimas e surtos por livros e, assim, impulsionar a venda de tais obras pelo mundo — fenômeno explicado na matériaHow Crying on TikTok Sells Books” (“Como Chorar no TikTok Vende Livros” em tradução livre), do The New York Times.

Os livros de Sarah marcam presença entre os mais vendidos de ficção infantojuvenil atualmente, e a demanda por continuações é cada vez maior. O anúncio de uma adaptação televisiva de Corte de Espinhos e Rosas colocou nomes de personagens da saga no top 10 dos trending topics do Brasil, demonstrando todo o apelo da série fantástica aos jovens. Mas de onde vem essa explosão feérica?

O início de tudo: Trono de Vidro e a saga da Assassina de Adarlan

Sarah J. Maas

Sarah começou a escrever Trono de Vidro aos 16 anos de idade no FictionPress e passou 10 anos idealizando a obra até que enfim pudesse ser publicada. A história nasceu como uma reinvenção do conto da Gata Borralheira que sonha em ir ao baile, só que, nessa narrativa, Cinderela é uma assassina chamada Celaena Sardothien, que vai ao baile não para dançar, mas para matar o príncipe. O enredo logo sofreu ajustes e deu origem ao livro que conhecemos hoje, no qual a assassina é liberta de um campo de escravos e tem sua liberdade oferecida em troca da participação em um torneio para escolher o campeão do rei. É claro que a premissa evolui, dando forma a uma série de oito livros cheios de magia, batalhas, demônios, romances e muito sacrifício (palavra que define a saga).

Lançado em 2012 — mesmo ano de grandes obras da fantasia e distopia YA, como Sombra e Ossos e Estilhaça-meTrono de Vidro inovou ao trazer uma protagonista em um papel não de mocinha deslumbrada e confusa em um mundo de monstros e magia, mas uma personagem mortal e, principalmente, consciente de sua letalidade desde o princípio. Celaena é extremamente arrogante, cínica, irônica e destemida, interpretando um papel geralmente atribuído a personagens masculinos e rejeitado por parte do público (vide a recepção de Brie Larson como Capitã Marvel em seu filme solo e Vingadores: Ultimato). A dicotomia da personagem é refletida nas relações que ela estabelece com os outros dois protagonistas da série: Dorian e Chaol. Enquanto o príncipe herdeiro de Adarlan fica encantado com a personalidade da assassina, o capitão da guarda vive o conflito interno de sentir atração e repulsa por Celaena, desaprovando seu comportamento e sua personalidade volátil, ao mesmo tempo que a admira.

Enquanto outras protagonistas da época reforçavam o arquétipo da garota introspectiva, sem gosto para moda e tímida (uma forma de conquistar o público leitor jovem pela identificação, já que somos todos meio outsiders por dentro), Maas criou a protagonista que ela queria ser. Não à toa que a autora sempre deixa clara sua preferência por Celaena em entrevistas. Uma vez que a indústria do entretenimento nos ensinou a odiar meninas girlycomo explicado no vídeo “Why the Girly Trope is Misundertood” de Maia C — , Sarah J. Maas abraça esse conceito e o reinventa. Celaena é a típica mean girl dos anos 2000: extremamente vaidosa e materialista, não se importa com a opinião alheia e guarda secretamente um coração de ouro por baixo da cabeleira loira e das respostas ácidas. Ela conversa com o lado nosso que teme exibições e feminilidade por atrelá-las a fraqueza e futilidade, e reforça a ideia de que o nosso passado ou os nossos gostos não definem nosso valor. Celaena se permite ser quem é e expõe suas facetas, mas não sem lutas internas e externas constantes. Ela cai, levanta, cai de novo, entra em espirais de depressão e luto, se reergue e encontra a força para salvar a si e ao mundo ao seu redor, mostrando que todas nós podemos estremecer as estrelas se assim ousarmos.

Mas ela não é a única. Por meio de um extenso grupo de personagens, a autora mostra que a força está em todas as representações. Desde a sanguinária bruxa Manon com sua jornada de abertura emocional, até a guerreira Nehemia e seu sacrifício pela sua nação ou a subestimada humana Elide, Sarah J. Maas faz uma ode a complexidade e pluralidade feminina, gritando bem alto que vulnerabilidade e fragilidade não são sinônimos e mulheres estão além das expectativas, tanto do leitor como da sociedade.

Corte de Espinhos e Rosas e a subversão de A Bela e da Fera

Sarah J. Maas

Inspirado em A Bela e a Fera, Corte de Espinhos e Rosas se tornou um dos maiores fenômenos literários dos últimos anos, abrindo espaço para debates calorosos sobre doenças mentais e como autores devem tratar temáticas delicadas. A série é, provavelmente, a obra com maiores deslizes da autora, de modo que algumas escolhas são problemáticas — especificamente a falta de representatividade e a necessidade de leitura sensível antes da publicação. Mesmo com algumas decisões de escrita questionáveis, Corte de Espinhos e Rosas sustenta o hype por meio de personagens apaixonantes e que, apesar da limitante narração em primeira pessoa, esbanjam carisma e conquistam os leitores ao longo da trilogia.

A série gira em torno da caçadora Feyre que, ao matar um lobo revelado posteriormente um feérico, é obrigada a se mudar para Prythian, lar dos seres mágicos, e pagar pelo crime com a vida. Obviamente, ela se apaixona por seu captor, um feérico atormentado por uma praga que destrói aos poucos as cortes de Prythian e envolve Feyre em uma trama de mistérios, perigos e, claro, romance.

Tanto Corte de Espinhos e Rosas como sua protagonista diferem muito da narrativa e heroína construídas por Maas em Trono de Vidro. Enquanto a história de Celaena é focada na libertação de Erilea, a trilogia de 2015 volta-se para a desconstrução do conto de origem e para a jornada psicológica e amorosa de Feyre. Em uma comparação mais chula, Trono de Vidro está para Game Of Thrones e Corte de Espinhos e Rosas está para Outlander. Ambas têm seus triunfos, mas a preferência vai totalmente do gosto do público.

A coragem e determinação permanecem, mas Sarah dá outros contornos para a heroína dessa história, mantendo a característica fundamental de suas personagens: a multiface. Como a própria autora diz em Corte de Névoa e Fúria, segundo volume da série, Feyre Archeron é a caçadora com alma de artista. É mais introvertida e reservada, e até mesmo se encaixa no padrão “humana deslumbrada em um mundo mágico” descrito anteriormente, mas sem deixar sua intensidade e determinação de lado. Comparando-a com Celaena, parece mais passiva, mas Feyre também tem sua dose de agressividade quando levada ao limite. É uma personagem com visível crescimento ao longo dos livros, e Sarah J. Maas usa o desenvolvimento da humana analfabeta em uma feérica poderosa, que olha para o pior de si mesma e o aceita, como uma forma de conversar e tocar na parte quebrada de cada leitor.

Fora isso, a reinvenção do conto clássico da camponesa que se apaixona pelo príncipe bestial que a captura talvez seja o maior triunfo da autora em Corte de Espinhos e Rosas. É louvável como Maas constrói sutilmente e manipula o leitor através das emoções da protagonista, nos envolvendo no relacionamento abusivo junto de Feyre e nos fazendo suspirar com migalhas afetivas que nos incomodam, mas são relevadas no calor da leitura. É sutil e sorrateiro, como explicitado em “A saga Corte de Espinho e Rosas e a construção sutil de um relacionamento abusivo”.

Além da história de Feyre, Sarah expandiu a trilogia para mais volumes, dentre eles Corte de Chamas Prateadas, que será lançado pela Galera Record ainda no primeiro semestre de 2021, destinado a contar a jornada de cura psicológica da irmã da caçadora, Nestha. Odiada e amada por muitos, Nestha representa o brilhantismo da escrita de Sarah em construir anti-heróis e heroínas, sendo uma personagem conflituosa e de atitudes questionáveis, e que, mesmo por vezes vilanizada, é capaz de gerar empatia e identificação no leitor. Por meio de Feyre, Nestha e até mesmo algumas coadjuvantes como Morrigan, a autora desperta o apego do público a essas figuras e a força para decidir o que nos despedaça em momentos difíceis.

Bryce Quinlan e o luto em Cidade da Lua Crescente

Sarah J. Maas

Lançando Sarah J. Maas no gênero fantasia urbana, Cidade da Lua Crescente (ou CCity, para os íntimos) foi lançado no Brasil em outubro de 2020, sendo uma das maiores pré-vendas de livro do ano e gerando altas expectativas para a continuação da trilogia, sem previsão por enquanto. A história conta a jornada de Bryce Quinlan, uma semifeérica que, ao lado do anjo Hunt Athalar, deve solucionar o assassinato brutal de seus amigos e o desaparecimento de artefatos mágicos que podem interferir no destino de seu mundo. O livro entrega maior complexidade mitológica e diversidade (ainda que não ideal) do que as outras obras de Maas e é constituído de 896 páginas de muito mistério, reviravoltas e um pouquinho mais de violência. A trama é muito detalhada, como Trono de Vidro, não é tão focada em romance como Corte de Espinhos e Rosas, porém entrega nesse aspecto também.

Quanto à protagonista, Bryce é associada por muitos a Celaena, já que suas personalidades são bem explosivas e semelhantes em determinados momentos. A protagonista de Cidade da Lua Crescente herda da heroína de Trono de Vidro a habilidade de fazer planos mirabolantes e a personalidade sarcástica e patricinha, rendendo cenas ao longo do livro que relembram outras narrativas da autora. De fato, a sensação é que Maas bebeu da mesma fonte para escrever ambas, mas isso não anula as particularidades de Bryce. A autora traz um aspecto inédito em Casa de Terra e Sangue ao apresentar uma protagonista marginalizada. Por ser mestiça, Bryce sofre escrutínio dos diversos grupos sociais de Lunathion. Sua proteção e amparo estão em sua melhor amiga, a metamorfa Danika, e no irmão Ruhn, príncipe dos feéricos, dois membros da elite da cidade. Além da constante inferiorização e do medo de ataques, nos primeiros capítulos Bryce enfrenta o assassinato de seus amigos e entra num estágio de luto profundo.

A dor da heroína é carregada ao longo da obra e Sarah brilha mais uma vez ao trabalhar sensivelmente a psique de suas personagens. Há um pequeno vislumbre dessa dor no terceiro volume de Trono de Vidro, Herdeira do Fogo, mas com Cidade da Lua Crescente a autora dedica quase mil páginas a cura da personagem e prova que, assim como Celaena e Feyre, o romance não é a salvação. As três protagonistas têm sim romances atrelados a sua evolução pessoal, mas sempre como coadjuvantes. A força motriz é o amor — já dizia Danika, “por amor tudo é possível”, em uma frase piegas mas que no contexto ganha significado profundo e emocionante —, mas esse amor não é romântico. É o amor próprio, o amor de um familiar ou mesmo de um amigo, o amor que vem de uma memória ou mesmo do luto. Afinal, como bem disse WandaVision, “o luto é o amor que fica”. E é esse amor que faz Bryce ascender em sua jornada de autodescoberta.

Três protagonistas, uma mulher

Por fim, por que amamos as heroínas de Sarah J. Maas? A resposta é simples: porque não são perfeitas. Não são idealizadas e intocáveis; são mulheres que fogem da dualidade certo e errado e mostram que dá pra errar e, mais importante, se perdoar por seus erros. Sarah escreve mulheres que mesmo diferentes conversam com pequenas e intrínsecas partes nossas. Assim como as personagens, somos plurais, frutos dos nossos laços, famílias, passados, culturas, etnias, dores, vitórias, lutas e luto. Mas também somos todas capazes de escrever nossas próprias histórias e, no final, não é sobre isso a representatividade feminina?


** A arte em destaque é de autoria da editora Thayrine Gualberto.

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2 comentários

  1. Outro dia vi alguém se referir aos livros da Maas como “meu lixinho favorito”. Lixinho por que? O que tem na narrativa dela que incomoda? Sexo? Feéricos sensuais?

    Eu aposto uma jujuba que se fosse Sean J. Maas escrevendo esses livros, ele seria o novo Tolkien, etc. e tal. Mas como é uma mulher escrevendo alta fantasia para um público feminino, de repente ele é lixinho?

    Nem sou uma grande fã de fantasia, mas a saga de Feyre em Corte de Espinhos e Rosas é uma das minhas favoritas e a forma como a autora levou o assunto de relacionamentos abusivos para jovens mulheres que, talvez, como Feyre, estejam vivendo um sem enxergar. Não é que Maas não tenha defeitos, ela tem, mas é inegável sua capacidade imaginativa e seu apelo fantástico com as leitoras.

    1. Concordo muito com a questão da misoginia. Apesar dos defeitos, os livros da Sarah têm grande apelo por conversarem com mulheres jovens e mostrar o que muitas de nós quiseram ver e ler por tanto tempo: mulheres imperfeitas e além de seus interesses amorosos. Não são obras perfeitas, mas quantas obras medianas destinadas ao público masculino são aclamadas todos os dias? Considerar Corte de Espinhos e Rosas como “lixinho” é ignorar a proposta central do livro, que é ser um YA sensual, não uma high fantasy política. Não é a melhor obra que existe, mas cumpre seu papel de entreter e, apesar de erros, tem acertos de sobra pra conquistar os leitores e valer a leitura.

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