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A arte em RuPaul’s Drag Race

Atualmente em sua décima quinta temporada, o reality show estadunidense RuPaul’s Drag Race não foi o meu primeiro contato com a arte drag, mas com certeza foi um reforço positivo de tudo que eu achava que sabia sobre esse universo. Neste ano, a competição segue inovando nos formatos, provas e integrantes, sempre no movimento de atualizar o que o público sabe sobre a arte drag e sobre a produção do programa.

Mais do que uma série isolada nos Estados Unidos, a franquia Drag Race se espalhou por 13 países, ascendendo personalidades anônimas à fama e erguendo histórias de vida ao olhar do público. Como um multiverso, considerando também os spin-offs, conteúdo multimídia e presença nas redes sociais, RuPaul’s Drag Race segue liderando os índices de audiência e mantendo-se como uma marca global.

Diante do primeiro olhar, o programa parece um grande aglomerado de glamour, cores, gírias e chavões da comunidade LGBTQIA+. Ainda que também seja composto por esses elementos, o coração do reality show está localizado nas pessoas que fazem tudo acontecer. Desde os jurados até o pit crew, existe toda uma espinha dorsal e estrutura que sustentam os mais de 190 episódios da edição original nos Estados Unidos, e que permite uma constante expansão para outras regiões do globo. Frente a essa base, estão os participantes e a figura da RuPaul mantendo a magia no ar.

RuPaul’s Drag Race

O que é RuPaul’s Drag Race?

Com assinatura da companhia World of Wonder, o reality show Rupaul’s Drag Race é um programa do gênero competição. Neste sentido, tem o formato de um concurso de beleza, e se inspira em produções semelhantes, como America’s Next Top Model. Entretanto, Drag Race coroa uma drag queen carismática, singular, talentosa, corajosa (Charisma, Uniqueness, Nerve and Talent)  para representar o rosto da America’s Next Drag Superstar. Sendo assim, o programa atua como uma plataforma de lançamento de drag queens que são conhecidas em seus nichos de conteúdo e regiões de origem para o mundo, principalmente quando se considera os altos índices de audiência de cada temporada.

Em relação ao formato, são selecionados números diversos de candidatos, com base nos vídeos de inscrição enviados para a produção durante o período de inscrição. Nesse sentido, é analisada principalmente a drag queen adotada pela pessoa no momento da apresentação, independente da orientação sexual ou identidade de gênero. Entre os casos mais populares tem-se a sexta temporada de All Stars, a primeira a ter uma participante abertamente trans; a décima terceira de RuPaul’s Drag Race US teve o primeiro homem transexual e a décima quarta teve um participante cis heterossexual.

Já em sua décima quinta temporada, o programa trouxe 16 novas participantes (e aqui serão tratadas no artigo feminino, considerando-as enquanto drag queens). Semanalmente, as competidoras devem realizar provas, competições e desafios para provar suas habilidades enquanto drag queens. As etapas avaliam aspectos como canto, dança, costura, talento, atuação, performance, personalidade e até mesmo como reagem a situações inesperadas. Entre os mini challenges, que são provas pequenas, e maxi challenges, que são mais elaboradas, uma candidata é eliminada a cada semana. Ao chegar em uma quantidade reduzida, as etapas de semifinal e final são organizadas para definir quem será a próxima drag queen a representar a América. Entretanto, as eliminações podem variar de acordo com a dinâmica do programa, pois em algumas franquias ocorrem eliminações duplas ou um período maior sem eliminações.

RuPaul’s Drag Race

Como funcionam as provas?

Por um lado, os mini challenges são desafios curtos que garantem vantagens para as competidoras em outras etapas da competição. Este é o caso do ensaio fotográfico com o fotógrafo Mike Ruiz, em que as candidatas devem entregar a melhor pose e desempenho para vencer, mesmo que envolva um banho de água ou um ventilador imenso soprando até as perucas mais resistentes. Em contrapartida, os maxi challenges podem variar de acordo com o tema da semana. No geral, um dos mais aguardados pelos fãs é o Snatch Game, quando as queens são testadas em sua atuação e humor ao personificar uma pessoa famosa. Curiosamente, esse desafio tem o nome e formato inspirado no programa The Match Game, popular na década de 60 e 70 nos Estados Unidos.

Além disso, existem segmentos intermediários, mas igualmente importantes para a continuidade da trajetória das drag queens no reality. Por meio dos desfiles temáticos, as participantes devem apresentar um visual que transmita personalidade, estilo e força para uma mesa de jurados. Em alguns casos, celebridades também são convidadas para contribuir nas avaliações semanais, acompanhando RuPaul, Michelle Visage, Ross Matthews e Carson Kressley. Dessa forma, nomes como Nicki Minaj, Michelle Williams, Adam Lambert, Miley Cyrus, Lizzo, Demi Lovato, entre outras personalidades, já passaram pelo programa.

Em resumo, existem três níveis de desempenho para as competidoras no final de um maxi challenge, são eles seguro (safe), alto (top) ou baixo (bottom). As participantes que estão seguras ou a salvo são aquelas que tiveram um desempenho entre de mediano a bom. Por sua vez, quem fica entre os altos e baixos recebe a crítica dos jurados, e podem tanto ganhar o desafio, no caso dos altos, quanto enfrentar a eliminação. Dentre os pontos altos de RuPaul’s Drag Race está o lipsync battle na etapa de eliminação. Basicamente, as duas candidatas que tiveram o pior desempenho na temporada regular devem performar uma batalha de dublagem ao vivo, apresentando uma performance para impressionar os jurados, mas principalmente a RuPaul. Neste momento, toda arte drag grita por meio das participantes, que encarnam as canções de corpo e alma a fim de garantir uma vaga nas próximas etapas da competição. Ainda que seja emocionante ver a criatividade e genialidade em interpretar canções, é também um importante balizador saber quem esteve no ponto alto, baixo e seguro.

RuPaul’s Drag Race

Arte drag para além das telas

Com um humor tipicamente estadunidense, termos próprios que constam até em dicionários de fãs e trocadilhos da comunidade LGBTQIA+ internacional, RuPaul’s Drag Race se propõe a ser o centro de uma arte secular. De acordo com os estudos artísticos e históricos que se tem conhecimento atualmente, os primeiros registros da arte drag surgiram por volta do século V antes de Cristo. Na época, acompanhou o início do teatro em Atenas, na Grécia Antiga. Os artistas precisavam representar mulheres em suas apresentações, mas como a produção cultural e intelectual na Antiguidade era majoritariamente centrada em homens, iniciou-se a tradição de vestir-se com trajes femininos.

Sobretudo, os adolescentes das trupes e grupos artísticos passavam por esse processo, pois tinham traços mais delicados que os homens adultos. Curiosamente, a arte se difundiu para outras partes do mundo por meio das navegações e transações comerciais entre diferentes culturas. No Oriente, durante o século XVII, o teatro japonês Kabuki trabalhava com a representação de atrizes em papéis masculinos e femininos. Em suas performances, as mulheres utilizavam maquiagens, roupas e acessórios para encarnar os personagens da maneira mais dramática possível.

Os princípios do gênero, entre os anos de 1603 e 1629, trabalhavam com encenações cômicas e dramatizadas sobre a vida cotidiana. Rapidamente, o teatro Kabuki tornou-se popular e parte da cultura regional, sendo considerada pela Corte Imperial como uma das joias do Japão. Com um salto temporal, chegamos até mesmo a passar pela Inglaterra de William Shakespeare, no século XVI, com artistas que eram considerados como transformistas nos ensaios. Como eram encenadas por homens, figuras como Julieta e Ofélia tinham roupas e personalização adaptadas a esses atores.

Contudo, na Era Elisabetana, as vestimentas passaram a representar o status e gênero dos indivíduos. Como consequência, no século XVIII surgiram as primeiras relações entre a arte drag e a homossexualidade, acentuando também a marginalização dos artistas que trabalhavam com essa personificação de figuras em outros gêneros. A partir do século XIX, a arte drag tornou-se principalmente associada ao teatro e aos musicais, em especial pela característica cômica. Nessa época, havia um movimento cultural de paródia, sátiras e adaptações de obras clássicas com foco em melodrama e comédia. Apesar disso, o movimento da arte drag passou por diversos altos e baixos, principalmente nos anos 80, quando os estudos sobre a AIDS passaram a atrelar a enfermidade à comunidade LGBTQIA+. Foi durante os anos 90, com o trabalho de RuPaul que a imagem das drag queens foi transformada naquele mesmo glamour que eu trouxe no início do texto.

Yes, Queen

Por meio da figura de RuPaul, e posteriormente de RuPaul’s Drag Race, a arte drag criou autonomia e independência para existir dentro da comunidade LGBTQIA+, mas também ultrapassar os limites estabelecidos por parâmetros de gênero e sexualidade. Ainda que a franquia original dos Estados Unidos não represente toda a diversidade de corpos, estilos e personalidades, foi um dos principais catalisadores do crescimento da arte drag nas últimas décadas.

Mais do que uma competição organizada em temporadas, RuPaul’s Drag Race impulsiona narrativas de pessoas que encontraram na arte drag uma forma de se expressar, para além dos preconceitos de gênero, a LGBTfobia e a própria rejeição familiar. Para quem se baseia em premiações, é por essas e outras particularidades que o reality acumula 12 Emmys, sendo o programa mais premiado da categoria na competição, tanto pela apresentação quanto pela produção que são referências na indústria.

Ao longo dos episódios, temos momentos de conversas entre as participantes em que uma conexão é criada com base na similaridade das experiências individuais. Independente das diferenças entre as drags que personificam quando estão no palco, as histórias de rejeição familiar, superação por meio da arte e a sensação de encontrar um lar nas companheiras de performance conectam indivíduos de diferentes partes do mundo, como acontece na franquia de Vs the World e All Stars.

Ainda que esses relatos pareçam limitados a alguns minutos de tela, são igualmente fundamentais para consolidar RuPaul’s Drag Race como um reality show que vai além da competição e realmente alcança a realidade. Com mais de 738 mil espectadores no episódio de estreia da 15ª temporada, sem contar os que assistem de forma pirata, o alcance da proposta audaciosa, e necessária, que envolve essa produção se estende a diversos membros da comunidade LGBTQIA+ no mundo.

Neste ponto, falo por experiência própria, e não pretendo romantizar um fandom que possui diversos problemas, assim como tantos outros segmentos. Para além das provas semanais e eliminações que fazem o coração doer, RuPaul’s Drag Race mantém viva uma das formas de artes mais tradicionais da história do mundo, e que está diretamente entrelaçada com as narrativas da comunidade LGBTQIA+.

Apesar dos problemas, polêmicas e críticas pertinentes à produção, é um respiro enorme encontrar um reality show que valoriza a autenticidade nas diferenças entre as pessoas. No final de cada episódio, é na identificação com espartilhos coloridos, maquiagens bem feitas e competidoras corajosas que conseguimos encontrar a inspiração para sermos mais autênticos.