No Paramount+, a minissérie George & Tammy se apresenta como uma joia, que passou pelas últimas estreias do streaming de forma pouco expressiva. Na produção do Showtime, Jessica Chastain e Michael Shannon adentram a vida pessoal e profissional do casal real do country, Tammy Wynette e George Jones, verdadeiros expoentes do gênero com vidas tão interessantes quanto qualquer estrela de cinema da antiga Hollywood.
Baseada no livro The Three of Us: Growing Up with Tammy and George, escrito pela única filha do casal, Georgette Jones, a série traça um retrato íntimo e sem filtros do relacionamento que se estendeu para os palcos, em uma parceria de sucesso que ditava o tom do drama nos bastidores.
Trata-se de um novo passo de Jessica Chastain rumo à excelência na atuação, após a aclamação por seu papel no remake de Cenas de Um Casamento (HBO), ao lado de Oscar Isaac, e de receber o Oscar de Melhor Atriz pela interpretação de Tammy Faye em Os Olhos de Tammy Faye (2021), uma vez que a atriz volta a receber o reconhecimento de seus pares no SAG Awards com a vitória na categoria de Melhor Atriz.
Aqui, mais uma vez, a atriz se molda a uma personagem da vida real e de forma ainda mais profunda do que no filme que lhe concedeu a maior honraria da Indústria. Se, como Tommy Faye, sua interpretação parecia caricata, pesada e até desconfortável, especialmente por conta da maquiagem, como Tammy Wynette, Chastain acerta todas as notas, tanto as mais altas, como uma estrela dos palcos, quando as mais baixas, quando explora a vulnerabilidade e o desgaste físico e mental da estrela country.
Sem se preocupar em ser super fiel à realidade, a série se atenta mais aos anos e eventos-chave da vida de Tammy e George, os quais parecem se conectar rapidamente dentro e fora dos palcos logo no primeiro episódio. Todas as histórias de amor entre pessoas super famosas soam assim: como se estivessem destinados a criar algo tão grande e tão idealizado, mas tão frágil que um mero empurrão fosse capaz de quebrar, especialmente quando tão intensas, íntima e publicamente.
George & Tammy, provavelmente tanto quanto o livro que a origina, é bastante cuidadosa em não pintar lados vilanescos. Apesar de mostrar Tammy Wynette como uma mulher leal, com ética profissional e moral muito firme, também deixa claro como o problema de George Jones eram seus vícios, não o homem em si. Pois este, talvez, seja o ponto de vista de Georgette Jones e, apesar da decepção com o pai por conta de suas constantes ausências após o divórcio com a mãe, soa como se, em certo momento, tivesse compreendido seu lado da história e o perdoado por más escolhas.
Embora a dependência do álcool e, posteriormente, das drogas, o tornassem um homem diferente de quando sóbrio, quando fazia planos para o futuro com sua família, é importante frisar como o senso de Jones já estava apurado para os meandros da indústria da música quando, já uma referência do country — embora em decadência — conheceu aquela que estava se tornando a lenda Tammy Wynette e, assim, continuou durante toda a produção. Pouco apegado ao dinheiro e ao luxo, o cantor aponta frequentemente para a esposa como a fama e os negócios seriam o motivo do fim de seu relacionamento. Na série, George Jones é um homem que parece estar a todo o instante punindo a si mesmo pela própria felicidade, incapaz de aceitar a estabilidade de uma vida tranquila em razão de um passado conturbado, traduzida para Tammy na chance de subir aos palcos, apresentar as canções que acreditava e, finalmente, poder conferir segurança financeira às três filhas. Para ela, poder conciliar o profissional e, ao mesmo tempo, manter a família unida seria o bastante, pois, a todo o momento, fica claro como a casa é um ambiente essencial para Tammy, a estrela, ser quem é de verdade.
Em meados de 1967, quando o casal se conhece efetivamente, a cantora é assumidamente uma fã da música de George Jones, mantendo um caderno escrito à mão com as letras de todas as canções do músico, por isso, o efeito que ele tem sobre ela soa tão arrebatador, pessoal e profissionalmente. Para Tammy, viver esta vida e poder ter acesso ao homem sobre o qual, por tanto tempo, fantasiou, soa como a realização de um sonho.
No entanto, ao mesmo tempo em que George Jones é o responsável por constantemente avisá-la sobre as armadilhas da fama, o lado escuro desta lua tão resplandecente, instigante e sedutora, também é ele a pessoa a quebrar primeiro e mais profundamente as expectativas dela — e o compreender disso é, talvez, a beleza de George & Tammy.
Com um texto caprichado, a série sabe intrincar os momentos dúbios de seus protagonistas como casal e oscila em suas camadas, principalmente se tratando de George Jones. Às vezes, ele é o vilão da tragédia de Tammy Wynette, mas, muito mais frequentemente, ele é o vilão da própria história. Isso porque é muito por conta dele que as coisas se desenrolam na produção. Atordoado pelos vícios, o cantor não consegue ser um bom pai, um bom amigo, um bom profissional e, principalmente, um bom marido.
Enquanto Tammy representa a alma da produção, com sua voz afinada, emoção pungente e postura condescendente, é como se representasse também a alma de George Jones — o homem, não o artista — e também tudo o que ele perde quando não consegue se afastar de seus demônios esmagadores; ou seja, não apenas o vício, mas a própria mente delirante em certos momentos.
Sempre que chega a este ponto, a atuação de Michael Shannon se mostra brilhante. O ator deixa que o lado escuro de Jones tome conta em uma progressão natural de quem o roteiro o encaminha para ser, e Jessica Chastain o permite crescer em suas cenas conjuntas, especialmente por conta de um texto tão atento aos pequenos detalhes.
Na canção “Breaking Up Slowly”, do álbum Chemtrails Over the Country Club, Lana Del Rey e a cantora country Nikki Lane fazem referência à Tammy, que, para além de sua música, ficou retratada por uma vida de dores e relacionamentos fracassados, já que passou por quatro casamentos e findou sua vida em um duvidoso: “Terminar devagar é algo difícil de se fazer / Eu amo apenas você, mas está me deixando triste / Então não me mande flores, como você sempre faz/ […] Eu não quero viver uma vida de arrependimentos / Eu não quero terminar como Tammy Wynette”, cantam.
A canção parece fazer uma referência direta a alguns dos diálogos da produção, onde Tammy reforça para George que seus atos estão “matando o amor dela por ele”, algo que ela acredita ser de propósito, enquanto o cantor insiste em dizer que irá mudar seu comportamento. No contexto da série, presenciando o retrato íntimo e afunilado deste homem na direção do vício, trata-se de uma mentira conveniente em que ambos decidem acreditar em nome de seus sentimentos até certo ponto.
Por conta da dependência de George, contudo, assim como na canção de Del Rey, durante todo este breve e intenso relacionamento, Tammy e ele parecem estar “terminando lentamente”, ainda que tentem constantemente se agarrar à música para manter este elo muito delicado.
Foi o que fizeram em 1980, quando voltaram a se reunir para um novo álbum de duetos, onde, na faixa “Two Story House”, cantam sobre um casal que conseguiu fama e fortuna, mas atualmente vive em uma “casa de duas histórias”, em que, apesar da beleza, não existe amor. O título faz uma brincadeira com o fato de “two-story house” também significar “casa de dois andares”, ou seja, uma casa mais luxuosa, o que também pode ser uma referência à vida pessoal de Tammy e George.
De certa forma, ainda que separados e voltados para momentos diferentes de suas vidas, na canção coescrita por Wynette, os dois parecem declarar que seguem vivendo, metaforicamente, sob o mesmo teto e estarão sempre entrelaçados (sendo prova disso a própria série), apesar de terem suas versões diferentes sobre o casamento:
“Agora vivemos em uma casa de duas histórias
Oh, que esplendor
Mas não há amor sobre isso
Eu tenho minha história
E eu tenho a minha também
Quão triste é, nós agora vivemos em uma casa de duas histórias”
Todavia, embora se trate de um amor embalado pelo melhor cabelo e maquiagem da época, criado à imagem e semelhança de Johnny Cash e June Carter, também um casal turbulento do country, além da trilha-sonora mais bem composta possível, nas vozes de Chastain e Shannon, a série não se preocupa em mascarar a toxidade do casamento e a dependência emocional de Tammy, a qual, mesmo conhecendo a violência de George, está mais disposta a compreendê-lo do que condená-lo e lutar pela própria independência.
Talvez, muito por conta dos problemas de saúde, com os quais lidou desde os anos 70, principalmente após o nascimento de Georgette, e a própria dependência de analgésicos, a cantora não se sentia forte o bastante para se levantar por si mesma e se colocar em uma posição mais firme em relação aos homens que a cercavam, inclusive o famoso produtor Billy Sherrill, responsável por seus maiores sucessos desde o início de seu contrato com a Epic Records.
Felizmente, ainda que tenha faltado forças à Tammy, a série se posiciona através de um roteiro que rechaça a violência doméstica nas atitudes tácitas de sua protagonista, na reação dos que a cercam e na atuação esplêndida de Jessica Chastain que, com apenas um olhar, demonstra a frustração, a decepção e uma revolta que, no ponto em que se encontra, pela estrela que é e pela personalidade que tem, só consegue ser triste e tragicamente silenciosa.
Contudo, também é importante ressaltar como o cenário da indústria do entretenimento, nos bastidores, sempre colocou as mulheres em constante situação de vulnerabilidade perante homens mais poderosos. De Marilyn Monroe a Britney Spears e, com menos repercussão, Mariah Carey, a qual, em 2020, contou como Tommy Mottola, dono de sua gravadora, a Sony, e seu marido de 1993 a 1998, a mantinha sozinha e controlava todos com quem ela trabalhava, detalhando uma espécie de prisão por conta das restrições e regras que deveria seguir; o “sonho americano” é cercado por histórias de abusos.
Portanto, apesar de o sucesso de Tammy Wynette representar uma virada para as mulheres na música country, colocando a perspectiva feminina em um gênero tão masculinizado, ainda que de forma romântica, idealizada e até conservadora, agora, a partir de uma perspectiva histórica, distante em tempo e cultura, também é o retrato de uma indústria patriarcal, especialmente no que diz respeito ao direcionamento de sua carreira e autonomia pessoal, uma vez que, após o fim do casamento com George Jones em 1975, a cantora engatou um relacionamento duvidoso com o produtor, George Richey.
Se, na série, um não se importava com as carreiras de ambos e se colocava como uma persona facilmente disposta a abandonar todo o negócio para viver uma vida mais pacata, Richey logo se ocupou em gerir o “Negócio Tammy Wynette”, exercendo sobre a cantora uma influência pouco saudável, especialmente sob a perspectiva de Georgette Jones. Sempre retratada de forma retraída e defensiva na produção em relação ao relacionamento da mãe com Richey, a filha de Tammy e George, na vida real, deixou clara sua opinião sobre se tratar de uma “relação emocionalmente abusiva”.
Jessica Chastain, por sua vez, é impressionante ao tacitamente retratar a deterioração de Wynette ao longo dos anos. Vivaz e alegre no início de sua alçada à fama com o single “Stand By Your Man”, além da paixão por Jones, logo os problemas pessoais, a decepção com George, as complicações de saúde e a falta empolgação com a fama, lhe tiram o brilho, que é substituído por um cansaço latente que a acompanha até as últimas cenas da produção — principalmente fora dos palcos —, como se este mundo a estivesse consumindo e ela não tivesse mais nada a dar, apenas um último resquício do que foi a sua música.
George & Tammy é sensível e autêntica, muito por conta das personalidades retratadas. Ainda que explore os bastidores muito comuns na indústria do entretenimento — excessos, drogas, violência e explorações —, são as questões intrinsecamente humanas, permeadas por um texto e por atuações, que compreendem muito bem seus personagens, que mais chamam a atenção.
Sem adentrar demais os detalhes das carreiras quase sempre bem-sucedidas de seus protagonistas, especialmente os espinhosos, como as críticas ao suposto conservadorismo da cantora pelo teor de suas letras românticas em pleno movimento pelos direitos civis e da mulher nos Estados Unidos, a produção abre intimamente as portas da casa de duas histórias de George e Tammy e nada deixa a desejar em relação às cinebiografias cinematográficas.
Com seis episódios, George & Tammy é um primor para os olhos com departamentos de figurinos, maquiagem e direção de arte atentos a todos os detalhes do que se vê em tela, além de dar espaço para Jessica Chastain e Michael Shannon brilharem em interpretações dignas de pessoas reais, cantando todas as canções da produção e colocando suas almas nos dramas e nas canções de George Jones e Tammy Wynette.