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Estão matando essa(s) moça(s) todos dias: Ângela Diniz e o Praia dos Ossos

Em 30 de dezembro de 1976, Ângela Diniz foi assassinada em sua casa de praia em Búzios. Seu parceiro, conhecido como Doca Street, atirou três vezes em seu rosto e uma vez na cabeça. Após o incidente, Doca deixou a arma ao lado de seu corpo e fugiu da cena.

Enquanto Doca era considerado um mártir nacional, a memória de Ângela continuava sendo violada diariamente. “Aquela moça continua sendo assassinada todos os dias e de diferentes maneiras”, de acordo com uma crônica escrita por Carlos Drummond de Andrade.

Durante a década de 1960, Brigitte Bardot era regular em Búzios. Então, na véspera de Ano Novo de 1977, ocorreu um crime violento na área, especificamente, na Praia dos Ossos. “Essa é a história de uma mulher, da morte dela, e de tudo o que veio depois” narra Branca Vianna, fornecendo um vislumbre do que está por vir na forma de uma frase sumária. Este é um prelúdio para o que deve ser desenvolvido na série de oito episódios, Praia dos Ossos, que é produzida e distribuída pela Rádio Novelo. A história se concentra no uso e queda da “legítima defesa da honra”. Sobre o podcast, Vianna explica aos seus ouvintes.

“Esse caso virou um divisor de águas na vida de muitas mulheres. E foi por isso que eu quis voltar a ele, mais de quarenta anos depois. Essa não é só uma história de coluna social. Mas não deixa de ser uma história sobre a imprensa. A história é também sobre o sistema judiciário brasileiro. Sobre como nasce uma mobilização. Sobre como as mulheres viviam e morriam neste país. E como elas continuam vivendo e morrendo.”

Um dos episódios se concentra no julgamento de Doca Street. Sua equipe de defesa, liderada por Evandro Lins, um advogado criminal brasileiro conhecido por seu machismo, constrói uma imagem de um jovem e bonito que foi facilmente seduzido pela natureza sedutora da “femme fatale“, uma “prostituta de luxo”. Houve 24 horas de escrutínio moral sobre a vida de Ângela Diniz, que era uma mulher desquitada (termo da época para divorciada) e que aceitou viver sua liberdade sexual, o que era chocante à época (e ainda hoje para alguns puritanos). Em depoimento no segundo episódio do podcast, a feminista Jacqueline Pitanguy resume o caso:

“Ela morreu duas vezes. Porque ela morreu quando o Doca a assassinou, e ela morreu no primeiro julgamento. Porque foi ela que foi julgada, foi a Ângela que foi julgada. Porque uma mulher como ela não traz simpatia. As pessoas não gostam de uma mulher bonita demais, sedutora demais, livre demais. Então ameaça! Ameaça mulheres, ameaça homens.”

Os casos de amor e a separação da “Pantera de Minas”, como Ângela era referida nas colunas da sociedade, desempenharam um papel crucial na defesa construída por Evandro Lins. “Não, não sustentamos o direito de matar. Não. Não suponha ninguém que eu vim aqui sustentar o direito que tenha alguém de matar. Não! Tenho o direito de… explicar, de compreender um gesto de desespero, uma explosão incontida de um homem ofendido na sua dignidade masculina. Compreende-se, desculpa-se, escusa-se. Isto o Júri faz não é só no Brasil, não, mas no mundo inteiro. Quando há razões, quando há motivos”, afirmou Evandro, no que antecederia o ápice da sua tese de defesa.

“Ela provocou, ela levou a este estado de espírito, este homem que era um rapagão, um mancebo bonito, um exemplar humano belo, que se encantou pela beleza e pela sedução de uma mulher fatal, de uma Vênus lasciva”. Em sua declaração de abertura, Evandro argumentou “excesso culposo de legítima defesa da honra” , com a intenção de convencer o júri popular em relação ao “direito” que Doca Street teria de assassinar Ângela Diniz, pelas provocações e ofensas provocadas a sua honra. O argumento funcionou e o júri chegou a um veredito de apenas dois anos de prisão (uma pena branda) a Doca Street, que saiu pela porta da frente, visto que era réu primário. Doca, que era réu, se converteu em vítima, colocando Ângela, aos olhos do público, como causadora da própria morte.

O caso motivou os movimentos feministas durante as décadas de 1970 e 1980 a lutar contra a violência contra as mulheres e, também, contra o conceito machista de “legítima defesa da honra”.

Na época, os “encontros feministas”, se chamavam “grupos de reflexão”. Eram reuniões onde as mulheres discutiram várias questões pessoais e políticas. Elas também conversavam sobre sexo, maternidade, casamento e amizade, além de várias literaturas feminista de diferentes países. Durante esse período, a ditadura militar estava no auge e as pessoas tinham medo de sair nas ruas. Após o julgamento do Doca, que resultou em uma sentença leve, outros feminicídios também ocorreram (e ocorrem). Isso deu um impulso à causa feminista, que começou a se organizar como movimento social. Não era fácil estabelecer uma organização nacional, além de organizar demonstrações e protestos em diferentes cidades. Formar um partido político ou estabelecer uma rede de indivíduos com ideias semelhantes também eram tarefas desafiadoras. Foi um ponto de virada no movimento feminista, nesse sentido.

Durante a ditadura militar, o povo do país participou de manifestações contra o feminicídio, sob os gritos de “Quem ama não mata”, que se tornou o slogan da campanha. Eles ajudaram a enviar o réu para a prisão por 15 anos, o que é um marco significativo no movimento. Ainda assim, embora o Código Penal Brasileiro não indique explicitamente o uso do conceito de “legítima defesa de honra”, ele ainda está sendo usado em julgamentos de júri para casos de feminicídio. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, houve 699 casos de feminicídio nos primeiros seis meses de 2022 (em média, quatro mulheres mortas  por dia). Desde 2019, o país experimentou um ano recorde quando houve mais de 600 casos.

Quem ama mata.