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A relação da beleza com o amor no audiovisual

Como qualquer gênero cinematográfico, comédias românticas seguem uma fórmula clássica. Dentro desta existem uma série de ingredientes que podem ou não ser adicionados à mistura. A transformação ou “makeover”, em inglês, é o momento em que a protagonista, antes alguém insignificante ou invisível, muda sua aparência e somente depois desse processo se torna uma opção romântica viável e coerente no enredo. É como se, a partir desse momento, ela mostrasse o seu verdadeiro potencial, e antes não fosse digna de atenção. Dentro disso, podemos refletir sobre o conceito de beleza e estética e como essas se relacionam com a visão do amor no audiovisual.

A análise proposta por Pitágoras sobre a beleza ideal gira em torno da simetria do rosto humano. De acordo com o matemático, a proporção entre as partes e a disposição delas resultam na harmonia e consequentemente na beleza.

A ideia de que o gracioso e o delicado é equivalente ao belo, segundo as categorias da beleza de Aristóteles, é reforçada em algumas comédias românticas. O filme Ela É Demais (1999) é um dos melhores exemplos em que vemos isso acontecer. Zack (Freddie Prinze Jr.) se aproxima da protagonista, Laney (Rachael Leigh Cook), com a intenção de fazê-la rainha do baile por meio de uma aposta feita entre seus amigos. Laney foi escolhida propositalmente por ser uma menina considerada esquisita e não popular. Uma das cenas mais marcantes é quando a irmã de Zack ajuda Lainey a se arrumar para uma festa. Ela abandona o seu jeito tradicional de se vestir e vemos a protagonista transformada (de vestido, salto-alto, maquiagem, um novo corte de cabelo e sem seus óculos) — agora sim para os olhos de Zack e para os do espectador, ela se torna bonita. E é a partir deste ponto na narrativa em que vemos seu par romântico perceber o seu valor e começar a nutrir sentimentos por ela.

beleza e amor no audiovisual

Em Miss Simpatia (2000), outro clássico do gênero, Sandra Bullock desfila de vestido na pista de pouso de um aeroporto depois que sua personagem Gracie, considerada uma tomboy, precisa se infiltrar em um concurso de beleza para impedir um suposto ataque terrorista. Novamente, olhos se direcionam a ela como nunca antes.

É interessante também considerar que essa fórmula parece somente funcionar se uma atriz já convencionalmente bonita (de acordo com a teoria da simetria e dos padrões de beleza) está interpretando a protagonista descrita por todos como “feia” ou “unattractive”. É comum que detalhes estéticos, como o uso de óculos e cabelos cacheados armados, sejam propositalmente incrementados no visual das personagens para que elas sejam consideradas “feias” inicialmente. Até mesmo em casos diferentes isso ocorre. No livro I’ll Have What She’s Having: How Nora Ephron’s Three Iconic Films Saved the Romantic Comedy de Erin Carlson, é citado que a roteirista Nora Ephron pediu que a personagem Sally, interpretada por Meg Ryan na comédia romântica When Harry Met Sally (1989) usasse óculos. O motivo:

Castle Rock recrutou Cheryl Shuman da Starry Eyes Optical Services para fornecer óculos para Meg Ryan. Durante uma reunião de produção, lembra Cheryl, Nora disse que Sally precisava de óculos para corrigir um desequilíbrio visual: ‘Bem, nós precisamos ter óculos para a personagem porque… Meg é muito mais atraente do que Billy.’ Nora solicitou um único par que ‘faz tudo’ e combinava seriedade e apelo sexual. ‘Não pode ser nerd,’ a equipe disse a Cheryl. ‘Não pode diminuir a beleza dela, mas tem que suavizar um pouco.’ (CARLSON, 2017, p. 65).

É sempre necessário que a protagonista continue atraente o suficiente para gerar identificação com o público. É crucial que simpatizem com ela. Ao final da transformação são abandonados todos os pequenos detalhes estéticos propositalmente implementados nela como parte da tentativa de deixá-la não atraente. Agora o público, e seu futuro par romântico, a enxergam com novos olhos, e é a partir desse momento que a protagonista se torna uma opção romântica válida.

Por que não antes? O que a impedia de ser desejada antes disso? Quais pré-requisitos ela não atendia? Esses pré-requisitos existem?

Em O Diário da Princesa (2001), a protagonista Mia (Anne Hathaway) passa por essa repaginada após descobrir que é neta da rainha de Genóvia e precisa passar por diversas aulas de etiqueta para que se comporte adequadamente como parte da realeza. Seu jeito desajeitado de ser prevalece, por mais que tenha havido insistência que ela mudasse, mas o filme também conta com uma cena um tanto icônica, onde Mia realmente se transforma de uma adolescente bagunçada e “feia”, para uma verdadeira princesa. Mesmo nesse caso em que Michael (o mocinho do filme) já tinha sentimentos por Mia antes da transformação, nota-se que ele só teve o “impulso” de agir sobre esses sentimentos após perceber que ela começou a ganhar atenção de outras pessoas pelo status de princesa e pela mudança de sua aparência.

Talvez a cena da transformação de Mia, em que o cabeleireiro Paolo consegue alisar os cabelos rebeldes da futura princesa, depois de muito esforços tentando desembaraçá-los (R.I.P escova de madeira), seja uma das mais marcantes dos últimos tempos. Por mais que seja construída com uma trilha sonora agradável, atuações performáticas e seja divertida de assistir, muitas meninas acabam internalizando uma mensagem prejudicial sobre si mesmas a partir dessas cenas, afetando sua autoestima. De repente, se olhar no espelho pesa muito mais do que antes.

beleza e amor no audiovisual

Já em Pretty Woman (1990), observa-se a beleza inicial de Vivian (Julia Roberts) como reflexo de sedução (e consequentemente malícia) pela sua personagem ser uma prostituta. O caráter dela é questionado diversas vezes durante o filme. Em uma cena, Vivian entra em uma loja “chique”, usando uma roupa mais reveladora e sensual. As vendedoras se recusam a atendê-la e Vivian sai da loja extremamente constrangida. Somente depois que a personagem tem a oportunidade de comprar uma imensidão de roupas novas (o equivalente a sua transformação no filme), e consideradas apropriadas para uma mulher elegante, é que ela tem a chance de ser bem recebida na loja. Até em casos como esse conseguem desmerecer a imagem da mulher, seja pelo seu rosto, profissão, jeito de se vestir ou personalidade.

Os padrões estéticos de beleza dominam a representação da mulher na arte e no mundo desde as primeiras teorias sobre o tópico. A ideia de que somente pessoas convencionalmente bonitas (o padrão regente: brancas e magras) têm a chance de vivenciar histórias de amor não condiz com a realidade. A questão nem acaba sendo os personagens se apaixonarem somente depois de um processo que apaga certos aspectos de suas personalidades, mas sim a falta de histórias em que a aparência e a mudança não importam. Histórias em que não há a necessidade de mudar esteticamente quem você é para ser amada. Pessoas que não se encaixam nos padrões convencionais de beleza também vivem histórias de amor e merecem se ver representadas.

Por isso também não vemos comédias românticas de tanto sucesso com atores mais velhos. Umberto Eco, autor de História da Feiura, diz que durante a Idade Média haviam “muitas representações da velha, símbolo da decadência física e moral, em oposição ao elogio canônico da juventude como símbolo de beleza e pureza” (ECO, 2007, p. 159). A repulsa pelo velho, especialmente pela mulher quando envelhece, faz com que o público geral perca o interesse por essas histórias. O público é atraído pelo belo, e seguindo essa teoria, é muito mais provável que queiram assistir atores mais jovens se apaixonando do que mais velhos.

beleza e amor no audiovisual

Ingresso para o Paraíso (2022) vem para bater de frente com essa mentalidade, trazendo de volta duas figuras icônicas do cinema romântico: Julia Roberts e George Clooney. Os dois atores, que têm 55 e 61 anos respectivamente, interpretam um casal divorciado que, ao tentar impedir que o casamento da filha deles aconteça, começam a se reaproximar um do outro. Até o momento em que estou escrevendo esse texto, o filme arrecadou 108.5 milhões de dólares na bilheteria mundial. Talvez essa repulsa ou simples não interesse por histórias românticas que fogem da norma de estética esteja mudando. Ou talvez Julia Roberts e George Clooney (que já se encaixavam nos padrões de beleza) sejam para sempre considerados bonitos pelo público. O ponto é que mais histórias como essa também merecem espaço no cinema e Ingresso Para o Paraíso pode servir de exemplo para futuras produções de que há espaço.

Talvez nunca conseguiremos escapar dos padrões estéticos de beleza, que se modificam de época em época, mas é importante que cada vez mais seja enfatizada a importância de um olhar crítico para detalhes como esses no audiovisual. Fundamentalmente, essa “trope” é usada como um mecanismo de enredo e não reflete a realidade, por mais que os padrões inalcançáveis teimem dizer o contrário. Todos merecemos amor, exatamente por quem e como somos, independentemente se nos parecemos com as protagonistas dos filmes que nos trazem esperança de um dia vivermos algo parecido com seus romances, ou não.

Victoria Bezerra é capricorniana com lua em câncer e vênus em peixes, isso já explica muita coisa. Entusiasta de comédias românticas (seja no cinema ou na literatura), séries originais da Apple TV e Star Wars. Jornalista e… talvez um dia cineasta?”


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza

1 comentário

  1. é mt interessante perceber, dps de crescida e ter desenvolvido o meu pensamento crítico, o quanto a cena da transformação de Mia teve um impacto na nossa internalização dos padrões estéticos de beleza desde q somos crianças. Mt pertinente a reflexão trazida. Parabéns, Vic!!

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