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O olhar de Miss Simpatia para a feminilidade

G. Hart é agente do FBI e não mede esforços pelo seu trabalho e o seu maior desejo é provar a sua competência solucionando casos complexos. Porém, depois de atrapalhar uma operação, sobra para ela o trabalho burocrático de escritório. Então, Hart vê o seu sonho se tornar cada vez mais distante até que recebe a oportunidade de se infiltrar em um concurso e provar para os seus superiores que o que aconteceu naquela primeira operação foi apenas um infortúnio.

Essa poderia ser a sinopse de qualquer filme de ação genérico lançado nos últimos 30 anos. Os elementos estão postos: o policial casado com o trabalho, a oportunidade única, o perigo e a necessidade de se provar valoroso — o que abre a possibilidade para uma sequência com ainda mais desafios e explosões de tirar o fôlego. Entretanto, não estamos falando sobre esse universo.

G. Hart é, na verdade, Grace Hart (Sandra Bullock), uma policial subestimada pelos seus pares masculinos. O concurso é o Miss Estados Unidos. A agente somente recebe a oportunidade de se infiltrar após um software mostrar como ela ficaria usando um biquíni. E o longa-metragem em questão é a comédia Miss Simpatia.

Miss Simpatia

Embora esses pontos praticamente justifiquem a decisão de começar este texto com uma sinopse, acredito que seja importante esclarecer essa escolha, que não se deu ao acaso. A intenção por trás das palavras é demonstrar como o mesmo universo pode ser percebido de maneira distinta quando a feminilidade é retirada. É como se, por se despir desses aspectos, automaticamente ele merecesse ser levado a sério — como G. Hart merecia apesar dos seus erros, mas Grace Hart talvez não recebesse a mesma cortesia se tivesse outra aparência em trajes de banho.

Ainda que Miss Simpatia não deseje mais do que arrancar risadas, o filme serve para levantar algumas discussões e a primeira delas está ligada ao fato de que, para serem levadas a sério e consideradas competentes em ambientes majoritariamente masculinos, especialmente no âmbito do trabalho, as mulheres precisam abrir mão das suas características femininas. Caso contrário, elas são vistas como fúteis e incapazes de avançar em suas carreiras. Sabendo disso de antemão, Grace Hart se despe de qualquer vaidade para ser lida como “um dos caras”, mas essa posição de igualdade não extrapola as aparências.

Dessa forma, ainda que ela possa ouvir as piadas sexistas e participar dos comentários coletivos sobre outras mulheres, Grace não é verdadeiramente enxergada como parte do clube. As suas ideias não são aceitas e ela é sempre percebida como uma agente de segunda classe, ainda que a incompetência dos demais seja gritante. Porém, apesar de receber este tratamento, Hart não assimila que o desnível entre ela e os seus colegas está ligado ao gênero e isso reflete nas suas relações com outras mulheres.

Miss Simpatia

Logo, a oportunidade de se infiltrar no Miss Estados Unidos é encarada como uma espécie de punição. Afinal, ela precisaria ficar cercada de toda aquela futilidade e feminilidade para conseguir provar que poderia ser “um dos caras”. Devido aos seus esforços para construir uma imagem de durona e capaz de ser tão boa quanto qualquer homem, Grace aprendeu a desprezar tudo o que lhe transmitia a sensação de fragilidade. Portanto, vestidos, saltos altos, maquiagens e discursos sobre a paz mundial para ela eram sinônimos de mulheres que não tinham ambições e estavam confortáveis em ser objetificadas. Então, ainda que ela não esteja errada ao atacar a ideia dos concursos de Miss e a forma como as mulheres são comparadas nessas situações, Hart deixa o patriarcado direcionar o seu olhar para aquelas mulheres e, antes mesmo de conhecê-las, acredita que sabe exatamente quem elas são.

Conforme a sua relação com as inscritas no concurso se torna mais próxima, Grace passa a percebê-las como seres tridimensionais e a compreender que ela compartilha mais dúvidas com elas do que poderia imaginar. O que se diferencia é somente como as inscritas e a policial respondem à estrutura machista. Logo, enquanto as misses se mantêm como boas garotas desejáveis para conseguir atingir os seus objetivos, Grace prefere romper com essa lógica e atacar o feminino, seja por meio do seu vestuário ou das suas falas sarcásticas. Ainda assim, tanto as moças do concurso quanto a agente seguem sendo fruto de uma mesma lógica e são colocadas nessa posição de rivalidade e desdém pelos homens.

Outro aspecto curioso a respeito de Grace Hart é que pouco muda na sua personalidade após o makeover para o Miss Estados Unidos. Ela continua nutrindo as mesmas convicções. Os vestidos apertados e a maquiagem, no entanto, fazem com que ela seja notada e cogitada enquanto parceira por Eric Matthews (Benjamin Bratt), o seu colega de trabalho que estava sempre pronto para ataca-la pela sua aparência. Isso serve para revelar como a feminilidade não pode ser associada à competência, mas ela precisa estar presente para que as mulheres sejam dignas de afeto.

Miss Simpatia

O mais intrigante nessa questão é que Grace também não se percebe desejável antes da transformação. Somente quando os elementos femininos da sua aparência assumem o primeiro plano é que ela passa a enxergar o desejo como possibilidade para a sua vida, o que serve para reforçar a ideia de que uma mulher digna de respeito não é uma mulher digna de afeto e vice-versa. Assim, aquelas que têm grandes ambições precisam se contentar com uma vida de solidão e aquelas que desejam ser amadas precisam se encolher para caber em possibilidades menos ameaçadoras para a masculinidade.

Então, o que Miss Simpatia mostra com eficiência é que feminilidade, ambição e afeto podem caminhar lado a lado. Mulheres podem ser femininas se desejarem, mas isso não deve ser visto como uma obrigatoriedade ou como algo que determina o seu valor e dita o afeto que elas merecem. Grace soluciona o caso do Miss Estados Unidos enquanto usa um vestido longo e uma tiara pesada. Além disso, ela “conquista” Eric com o mesmo tipo de piada que faz ao longo do restante da projeção.

Por fim, o filme também demonstra que é possível que mulheres nutram relações saudáveis entre si. Mas para que tudo isso aconteça é preciso afastar a lógica do patriarcado, os estereótipos perpetuados ao longo dos séculos e os papéis socialmente impostos. Quando todas essas coisas se tornam distantes, é viável pensar sob uma ótica que coloca as mulheres e os seus desejos no centro, sem condiciona-los ao olhar masculino e às suas expectativas.