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Skam Austin: das terras frias da Noruega para as terras quentes de Trump

Conheci as duas versões (americana e norueguesa) de Skam juntas. Embora ainda não tenha assistido a versão original, norueguesa, sempre tive um preconceito com a mania da indústria audiovisual dos Estados Unidos de fazer as próprias versões para boas produções que surgem em países não anglófonos. Muitas vezes, não se trata nem mesmo de uma releitura, mas apenas uma reencenação para seu público aparentemente incapaz de ler legendas.

Em norueguês, Skam quer dizer vergonha, título que é mantido em sua versão estadunidense, Skam Austin. A presença da criadora da versão original, Julie Andem — que também assina a adaptação, sendo responsável tanto pelo roteiro quanto pela direção dos episódios —, ajuda a explicar o porquê da opção, ainda que a versão norte-americana não seja a única lançada desde então. Fenômeno mundial, a série ganhou adaptações em vários países, muitas das quais também mantiveram o nome original, como a versão francesa, enquanto outras preferiram alterá-lo, como a adaptação alemã, transformada em Druck (que quer dizer pressão), todas lançadas este ano. Mais do que a referência à série de origem, contudo, o interesse pela adaptação local não é tanto uma questão de língua quanto é sobre identidade. A versão norueguesa é 100% baseada na cultura local, e por mais que certos dilemas e dores, além do amadurecimento, sejam questões universais, a série continua a retratar a rotina e comportamento de jovens em uma realidade muito específica.

Exibida em uma emissora estatal, a NRK, seus episódios inovaram na questão da interatividade, sendo um programa postado inteiramente on-line. Com episódios divididos em vídeos publicados diariamente, sempre nos horários em que as cenas supostamente haviam ocorrido, a série trouxe uma proximidade inédita para o público, principalmente em relação ao uso de redes sociais, já que seus personagens ganharam perfis pessoais que eram atualizados como o de pessoas reais — proposta implementada também pelas adaptações, que seguiram o modelo norueguês originalmente proposto.

skam austin

Skam Austin foi exibida pela plataforma Facebook Watch, novo empreendimento de Mark Zuckerberg. A plataforma de VOD [video on demand] exibe na própria página do programa na rede social os vídeos diários e episódios condensados; oito no total, que vão de trinta a quase cinquenta minutos. Muitas das conversas que os personagens trocam durante os episódios aparecem na própria tela durante a cena e muitas vezes a página oficial também posta diálogos trocados entre eles sobre o que aconteceu em algum momento, possibilitando uma proximidade ainda maior entre público e personagens (por ter assistido mais tarde, no entanto, perdi essa parcela de interação).

A proposta da série é, a cada temporada, seguir um de seus personagens e mostrar seus dilemas, sempre voltados para o crescimento pessoal. Nos Estados Unidos, a primeira temporada de Skam Austin foi centrada em Megan (Julie Rocha), uma adolescente introspectiva de 16 anos que, de início, não tem muitos amigos e vive às sombras do namorado, Marlon (Till Simon). Além disso, seus pais estão passando por uma crise no casamento e a jovem não consegue estabelecer qualquer tipo de diálogo com eles. Logo no primeiro episódio, no entanto, ela conhece outras meninas, com quem acaba desenvolvendo uma amizade, a partir da criação de um novo grupo de dança na escola. Grace (Kennedy Hermansen), Kelsey (Sherman Surdam), Josefina (Valeria Vera) e Zoya (Aaliyah Muhammad) são meninas completamente diferentes entre si, mas que juntas provarão que são mais fortes e que as diferenças não as afastam, mas as complementam.

Atenção: este texto contém spoilers!

Julie Andem mantém a mesma estrutura da trama na versão norte-americana, apenas adaptando-a ao contexto local. As meninas, como todo o elenco, trazem uma pluralidade étnica e racial, também vista em seu original. Tanto Megan quanto Josefina são de origem latina, por exemplo, ao passo que Zoya, além de negra, é também muçulmana — o que fará dela, como na versão de origem, uma personagem a se tornar o centro da trama em uma temporada futura. Como ela mesma coloca em uma cena brilhante, ser “uma muçulmana negra em um dos estados mais republicanos dos Estados Unidos” é uma experiência bastante particular e também muito interessante, que somada a sua personalidade sagaz e firme, tem tudo para dar origem a uma história especial.

skam austin

A temporada não mostra apenas o desenvolvimento da amizade entre essas jovens, mas também o relacionamento entre Megan e Marlon, que, por mais apaixonado, sofre com os dilemas e inseguranças da namorada. À medida que se desenvolve, a trama de Skam Austin revela o porquê da solidão e inseguranças da personagem principal: parte das Kittens no passado, um grupo de líderes de torcida da escola, é por causa de Marlon que ela se afasta do grupo, assim como da sua antiga amiga, Abby (Sophia Hopkins), com quem o namorado ainda mantinha um relacionamento quando passou a se envolver com Megan.

O relacionamento dos dois é um assunto muito interessante, pois mostra um jovem casal desenvolvendo um relacionamento em uma fase um tanto quanto complicada de suas vidas. Megan se sente insegura por ter sido a “outra”, ainda que por um breve período, o que a leva a pensar que Marlon pode fazer o mesmo novamente. Marlon, por sua vez, sofre com as pressões dos pais, que não entendem a vontade do jovem de seguir carreira na música e não se formar em um curso de prestígio na faculdade. Julie Andem trabalha, a partir do relacionamento dos dois, problemas muito comuns nessa fase da vida, mas que podem surgir em muitas outras, sempre em cenas repletas de diálogos verossímeis e bem escritos, como quando Marlon diz que a namorada precisa procurar novas amizades, que ele não pode estar ao seu lado o tempo todo.

Se na versão norueguesa o elenco foi base para o desenvolvimento dos personagens, o elenco da versão estadunidense é composto por jovens locais, desconhecidos ou com poucos trabalhos feitos, e com idade aproximada de seus personagens. A fisionomia tão real proporciona uma identificação profunda, e não é difícil, por exemplo, que as personagens apareçam com espinhas no rosto — tudo para tornar a série o mais realista possível. Além disso, o total desconhecimento dos atores em trabalhos anteriores faz com que o público se torne mais próximo e os tomem como jovens reais, com presença ativa nas redes sociais e cujas histórias são permitidos acompanhar.

Skam Austin pode não ser um produto inédito, mas a escolha de sua criadora pela cidade de Austin, capital de um estado de maioria republicana, em detrimento de qualquer outra, tem seu motivo especial. Principalmente com um elenco que promove diversidade e pluralidade. Talvez a versão estadunidense, em uma realidade totalmente diferente da Noruega, leve Julie Andem a explorar outros caminhos, tocar em outras questões e surpreender mais uma vez, assim como fez com a sua cria original. É esperar para ver.

Lívia Maria Rocha é mezzo aquariana com ascendente em câncer (dizem que isso é bem complicado)/mezzo inadequada para sociedade. Tem yorkshire de 2,5 kg que compensa o baixo peso com excesso de personalidade. Perde boas horas do seu dia vendo vídeos de bichinhos e tem uma memória de peixinho dourado. Ah, e também é uma pesquisadora em formação, em constante gerúndio, sempre pesquisando.