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Santuário dos Ventos: uma garota pode mudar o mundo

O sonho de voar persegue a humanidade há séculos. A história de Ícaro, figura mítica da Antiguidade, vem facilmente à memória quando pensamos naqueles que tentaram conquistar os céus, mas não tiveram sorte em sua empreitada. Utilizando as asas projetadas pelo pai, Dédalo, para fugir do labirinto do Minotauro, Ícaro ignora os conselhos do patriarca e voa muito próximo do Sol, o que faz com que as asas, construídas com cera de mel de abelhas e penas de gaivotas, derretam em instantes. O sonho de voar termina em tragédia e Ícaro encontra a morte nas águas frias do mar Egeu.

Ainda na Grécia antiga, o filósofo Arquitas de Tarento, em 400 a.C., idealizou uma máquina voadora, enquanto na metade do século XV Leonardo da Vinci realizou diversos estudos de observação do voo dos pássaros, criando, na sequência, artefatos que tentavam simular a aerodinâmica dos animais, como o ornitóptero e, depois, um tipo primitivo de helicóptero. No século XIX, aparecem os primeiros balões, além dos protótipos de asa-delta e planadores. Entre zepelins e voos catapultados, foi somente em 1906 que o brasileiro Alberto Santos Dumont conquistou os céus ao realizar um voo completo no campo de Bagattelle, nos arredores de Paris, com seu aeroplano, o icônico 14-bis. Triunfar sobre as terras e os mares não parecia o suficiente para o ser humano, e conquistar os céus logo se tornou um sonho e uma necessidade.

É esse o mesmo tipo de paixão que move Maris, protagonista de Santuário dos Ventos, livro escrito em parceria por George R. R. Martin e Lisa Tuttle, publicado originalmente em 1981 e recentemente no Brasil pela editora LeYa. No livro de pouco mais de 400 páginas, descobrimos um mundo em que, como os pássaros, seres humanos conseguem domar os ventos e constroem toda uma sociedade com base nessa habilidade de transpor os céus. Após um desastre espacial, os tripulantes de uma nave intergaláctica passam a habitar o Santuário dos Ventos, um lugar de clima difícil e mares infestados de cilas, criaturas monstruosas que tornam as viagens marítimas arriscadas e praticamente impossíveis. Com a ajuda de asas construídas a partir de um metal especial, leve e resistente, os voadores, como são chamadas as pessoas capazes de voar com esse equipamento, cruzam os céus entre as inúmeras ilhas que formam o arquipélago levando e trazendo informações para os pontos mais longínquos da região.

“Apertou as tiras em torno do corpo, checou as asas uma última vez e envolveu com as mãos as alças tão familiares. Com dois passos rápidos atirou-se do rochedo como fizera incontáveis vezes antes. O vento era seu velho e verdadeiro amor. Acomodou-se no seu abraço e voou”. 

Os voadores enfrentam ventos cortantes, tempestades perigosas e cruzam oceanos inteiros, o que os transformam em figuras de valor dentro da sociedade que floresce no Santuário dos Ventos. E é dentro desse contexto em que cresce Maris, uma menina filha de pescadores que sonha, mais do que tudo, ser, também, parte dos voadores. O empecilho para que o sonho de Maris se torne realidade, no entanto, vem na forma da tradição que rege o Santuário dos Ventos: as asas de um voador só podem passar de pais para filhos legítimos e Maris não faz parte de uma família de voadores, ainda que tenha sido criada por um deles após ter sido abandonada pela mãe. Por um certo período, Maris acredita que Russ, seu pai adotivo, permitirá que ela use as asas da família, mas quando nasce Coll, filho biológico de Russ, a jovem vê seus sonhos se desmancharem tão rapidamente quanto Ícaro vê suas asas derretendo ao chegar muito perto do Sol.

No entanto, ainda que Coll esteja sendo treinado para continuar o legado da família, tornando-se um voador, o menino não quer saber de nada além de cantar. Sua verdadeira paixão reside na música na mesma medida em que a paixão de Maris está no céu e no ar e, se dependesse apenas de Coll, sua irmã de criação poderia ficar com as asas de bom grado. Mas não é assim que funciona a sociedade no Santuário dos Ventos, então Maris decide que esse é o melhor momento para mudar as coisas — mesmo que, a princípio, suas ações sirvam apenas ao seu propósito pessoal de voar, a revolução a que Maris dá início mudará para sempre a relação que os habitantes do Santuário dos Ventos têm com os voadores, a elite daquele arquipélago, e toda a sua tradição, e os confinados à terra, assim chamados aqueles que não podem voar.

Santuário dos Ventos é um livro com início, meio e fim, ou seja, não é preciso se preocupar em esperar anos por novas sequências. Dividido em três partes — “Tempestades”, “Uma Asa” e “A Queda” —, Santuário dos Ventos acompanha toda a trajetória de Maris em direção ao sonho de voar, as mudanças que ela promove naquela sociedade e o que isso significará para voadores e confinados à terra com o passar dos anos. Em sua protagonista, Martin e Tuttle constroem uma mulher intensa, corajosa e contestadora na mesma medida em que é orgulhosa, teimosa e cabeça dura, traços que a fazem tão real quanto possível. Maris vê a negativa de receber as asas como um obstáculo em seu caminho, mas um obstáculo que ela fará de tudo para transpor, ainda que isso mude toda a dinâmica do meio em que vive.

“Pelo tempo em que essa canção for cantada eles saberão de você, a menina que queria tanto suas asas que acabou mudando o mundo”.

Ainda que não conheça o trabalho solo de Lisa Tuttle, é possível ver em Santuário dos Ventos muito da essência das histórias de George R. R. Martin. Há uma reunião amigável entre o fantástico e a ficção científica no mundo criado pela dupla, algo que evoca os melhores aspectos da Westeros que conhecemos em As Crônicas de Gelo e Fogo, com descrições minuciosas a respeito da cultura do arquipélago, dos cenários e dos momentos em que os voadores se jogam em direção às correntes de ar, preparando-se para seus voos. É fácil se deixar levar pelo mundo composto pelas ilhas, mares perigosos e ventos cortantes, e acompanhar a jornada de Maris é interessante e divertida. Toda a trama de Santuário dos Ventos se desenvolve ao redor de Maris e suas ações, e tudo o que acontece nas ilhas tem relação direta com suas decisões, transformando-a na força motriz da narrativa.

Martin e Tuttle costuram a vida de Maris às mudanças que ocorrem no Santuário dos Ventos, embutindo luta de classes, questionando tradições e fazendo da protagonista o norte para a trama. Muitos personagens passam pela vida de Maris ao longo dos anos, mas é apenas ela quem recebe o maior tempo de narrativa e desenvolvimento — o que às vezes é bom, mas nem sempre. Ler Santuário dos Ventos após ter mergulhado por anos no mundo de As Crônicas de Gelo e Fogo pode ser um pouco frustrante para o leitor que busca encontrar o mesmo nível de minúcias com relação às personalidades dos personagens da história, visto que aqui não há tantas camadas ou nuances como há na série mais famosa de Martin. Muito se dá, provavelmente, pelo aprimoramento da escrita do autor: como dito anteriormente, Santuário dos Ventos foi publicado pela primeira vez em 1981, e apenas anos depois, em 1996, seria publicado A Guerra dos Tronos, primeiro livro da aclamada série que viria a se transformar em show da HBO.

Em Santuário dos Ventos é possível ver todo o potencial de contador de histórias de Martin — e Tuttle —, mas a trama parece nunca atingir seu ápice, ficando sempre no quase. Maris é uma protagonista interessante, determinada e contestadora, mas a narrativa dá muitas voltas antes de nos entregar alguma ação. Como um livro que reúne fantasia e ficção científica, Santuário dos Ventos é, sim, uma boa pedida, mas deixa a desejar em aspectos importantes como o desenvolvimento dos personagens que orbitam ao redor de Maris, como S’Rella e Coll, apenas para citar alguns. O mundo criado por Martin e Tuttle é tão fascinante que eu queria mais do que aquilo que foi entregue, queria poder ver além do que Maris podia proporcionar. Um aspecto positivo, no entanto, é que a história não termina quando a revolução é conquistada, mas mostra, também, o reflexo disso nos anos vindouros — o que seria, em outros livros, o final, é, em Santuário dos Ventos, apenas o começo. Por meio dessa narrativa, Martin e Tuttle buscam mostrar também o que vem depois da vitória e das mudanças, e como é preciso continuar lutando por igualdade sem esmorecer.

O exemplar foi cedido para resenha por meio de parceria com a Editora LeYa.


*A arte em destaque é de autoria da nossa colaboradora Carol Nazatto. Para conhecer melhor seu trabalho, clique aqui!

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