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Gourmet Makes: o escapismo necessário das maratonas e do entretenimento despretensioso

No dia 11 de março de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou que estamos vivendo uma pandemia. O coronavírus, uma doença que vinha se espalhando desde novembro de 2019, foi reconhecida pela gravidade, rápido contágio e infecção, levando a óbito milhares de pessoas com velocidade alarmante. Na mesma semana, boa parte do Brasil começa sua quarentena, com uma das medidas preventivas contra a disseminação do vírus sendo a adoção de trabalho remoto.

Seis meses depois, o mundo já contabiliza mais de 28 milhões de casos, com mais de 920 mil mortes. Além de todo o impacto de, dia após dia, assistir o número de mortos crescer, governos que tratam a situação levianamente, as taxas de desemprego crescerem e pessoas que se recusam a obedecer um contrato social de usar uma simples máscara para tentar frear a contaminação, milhões de pessoas ao redor do mundo precisaram aprender a ficar em casa, afastados de sua usual rotina e de todas as pessoas que amam e convivem.

Já em maio o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, em coletiva de imprensa, chamava a atenção para todo o impacto na saúde mental das pessoas durante o isolamento social e como a tendência é que as taxas de depressão e ansiedade cresçam ainda mais por conta disso. Na Etiópia, por exemplo, em um estudo conduzido em abril de 2020 e divulgado pelas Nações Unidas já foi possível identificar um aumento de três vezes na prevalência de sintomas de depressão se comparado com os números antes da pandemia.

Gourmet Makes

Todo este contexto social-histórico calamitoso, extremamente dolorido e triste que estamos vivendo, fez com que cada um de nós precisasse encontrar maneiras de lidar com a situação, buscando mais do que nunca meios de aliviar o estresse e que proporcionassem um escapismo que nos levasse para longe de todos os problemas e angústias que estar presos dentro de casa — ou precisando sair para trabalhar — em meio a tantas mortes provoca. Com cinemas fechados, parques e outras formas de entretenimento restritas como medida preventiva, os serviços de streamings, já mais fortes do que nunca, e a televisão, que sempre teve um papel muito forte em distrair e atuar como uma forma de alienação, ganharam um espaço cativo ainda maior nesta nova rotina, sendo para alguns a única forma de manter um mínimo de controle, sanidade mental e ajuda em tentar processar aos poucos o fluxo ininterrupto de informações e acontecimentos a cada novo dia.

Séries, filmes e programas de TV conhecidos como “comfort shows”, com seu entretenimento despretensioso e sem grande profundidade ganham espaço e um papel ainda mais contundente. Aliado as maratonas — ato de assistir um episódio após o outro por horas a fio —, é a oportunidade perfeita de fingir por um tempo que não existe uma pandemia acontecendo lá fora, com mais de mil pessoas morrendo por dia em nosso país. A fuga é necessária e um dos pilares do entretenimento sempre foi proporcionar esse escape.

O escapismo, também conhecido como Síndrome de Houdini, é um termo usado na psicologia para designar um mecanismo de defesa que leva as pessoas a se afastarem do real, das angústias da vida e do que as cerca quando não se sentem capazes ou preparadas emocionalmente para enfrentar problemas e desafios. Induzidos pela necessidade de escapar da existência atual, o indivíduo mergulha em um mundo fácil e confortável, onde é possível ignorar os próprios problemas. No caso em que a fuga é realizada por meio do consumo de entretenimento, pode ocorrer a transferência da preocupação com os conflitos de outras pessoa, ficando investido neles, mas sem realmente precisar tomar atitudes para resolvê-los ou ser afetados por eles. Além disso, no caso de produções que são marcadas pela previsibilidade e pelos finais felizes, em que se sabe mesmo antes de se dar o play ou ler a primeira página que o herói irá derrotar o vilão e o mocinho ficará com a garota, há um certo tipo de alento e esperança que isso possa também ser a solução/final para aquilo que o espectador enfrenta em sua realidade. Ademais, o entretenimento também funciona como uma forma de vivenciar aquilo que não se pode ter e suprir a manifestação dos seus desejos.

Gourmet Makes

Alguns estudos tentam encontrar respostas para o que acontece com nosso cérebro quando escapamos por horas a fio para o mundo da grande e pequena tela. Um dos motivos que tornam o ato de maratonar algo tão prazeroso, de acordo com o psicólogo clínico Renee Carr, além de proporcionar um escape, é a liberação de dopamina em nosso cérebro, uma vez que estamos engajados em uma atividade que gostamos, consequentemente nos fazendo sentir bem. Assim, nosso cérebro envia mensagens para nosso corpo com o intuito de nos fazer continuar na atividade que está provocando tal descarga de dopamina.

É claro que, quando o indivíduo atinge um grau profundo de desprendimento e negação da realidade, temos um problema. Mas em um ano como 2020, que parece ser a culminação das consequências de muitas decisões que nós coletivamente, como sociedade, viemos tomando há algumas décadas, é impossível encarar cada nova manchete de cabeça erguida, sem a crescente necessidade de gritar, revogar o acesso a qualquer fonte de informação ou simplesmente fingir que determinadas coisas não estão acontecendo.

Depois de passar quase um mês atualizando meu feed do Twitter compulsivamente, esperando pela saída dos boletins com os dados de casos e mortes de coronavírus no Brasil — isto lá no começo da pandemia, quando ainda se mantinha uma fachada de preocupação de transparência com a situação no país —, decidi que não poderia continuar assim se quisesse sair desse período de caos e isolamento com um fiapo de saúde mental que fosse. Foi nesta mesma época que descobri o canal no YouTube da revista Bon Appétit, mantida pelo conglomerado de mídia Condé Nast. Dentro dos diversos quadros do canal, que tem o objetivo de desafiar os chefes de cozinha das mais diversas formas, a série Gourmet Makes, liderada pela confeiteira Claire Saffitz, se tornou minha válvula de escape; um entretenimento despretensioso para qual eu fugia em todos os períodos em que não estivesse trabalhando.

Maratonei cada vídeo feito por ela de forma incansável, como se minha vida dependesse do conhecimento de como reproduzir a receita de Doritos de forma gourmet ou de como fazer a receita mais perfeita de todas de Snickers caseiros. A forma genuína, real, descontraída e “gente como a gente” com a qual Claire conduz seus experimentos nos faz sentir muito próximos dela e de toda a situação, gerando um senso de identificação enorme, mesmo que a maioria de nós não sejamos chefes formados em Harvard trabalhando para uma das maiores revistas de culinária do mundo. Não existe uma tentativa de esconder o fracasso, o estresse, o cansaço e desmotivação pelo qual ela passa para alcançar um ótimo resultado — ou às vezes com um saldo desastroso, afinal a vida é assim. Ficar investido em todo este processo é algo muito fácil, orgânico e antes que você possa perceber já está amando não só ela, mas todos os outros membros da Test Kitchen.

Assistir as interações de todos os chefes e à Claire tentando descobrir como reproduzir fórmulas industriais complexas era como estar presa em uma bolha pré-corona, em que o mundo era ruim, mas não-tão-horrível-assim. Eram quarenta minutos, a média de duração de capa episódio, em que eu podia fingir que todos os problemas — meus e do mundo — não existiam e a minha ansiedade ficava de lado ao voltar minha atenção totalmente para o mundo perfeitamente balanceado do canal de Bon Appétit. E não estou sozinha nesta; para Claire um dos motivos que explica o sucesso do seu quadro — o mais visto do canal da revista — é justamente a possibilidade das pessoas projetarem o próprio estresse no dela.

“There’s some sort of transference from people, they get stress relief from watching my stress. It’s a positive feedback loop because then that makes me feel better. There is service here, it’s just not service about cooking or baking … The service is stress relief.”

“Há uma transferência das pessoas, eles experimentam um alívio do estresse ao assistirem o meu estresse. É um feedback positivo em loop porque então isto faz eu me sentir bem. Há um serviço aqui, não apenas o serviço sobre cozinhar ou confeitar… O serviço é alívio de estresse.”

Mas como estamos falando de 2020, o ano em que nada de bom dura muito tempo, em junho, após um internauta divulgar em sua conta uma foto do editor-chefe da revista, Adam Rapoport, em uma fantasia de Halloween fazendo “brown face”, ao se fantasiar de porto-riquenho, o ambiente de trabalho aparentemente feliz e harmonioso dos integrantes do canal Bon Appetit teve sua toxidade e racismo expostos. Rapoport se demitiu após o ocorrido, mas alguns profissionais, como Sohla El-Waylly e Priya Krishna, aproveitaram a oportunidade para contar em suas plataformas digitais o modo como eram tratadas pela direção da revista como um token de diversidade, sendo empurradas para frente das câmeras com o único objetivo de mostrar ao público que o canal do YouTube da revista era “diverso e contava com representatividade”. Enquanto isso, nos bastidores, elas, juntamente com outros colegas não-brancos, tinham contratos com valores muito abaixo dos profissionais brancos, além de sequer receberem pagamentos pelo trabalho que realizavam em frente as câmeras.

Com isso, a maioria dos integrantes da revista saiu em defesa de seus colegas e prometeram serem agentes da mudança. A responsável pela publicação, Condé Nast, inclusive se disse propensa a corrigir os erros cometidos e aprender com eles, propondo reformulações na estrutura do ambiente de trabalho. No entanto, essa parece ter sido nada mais do que uma promessa vazia. No início de agosto, Sohla e Priya anunciaram que, embora continuem a escrever para a revista, não mais farão parte do canal do YouTube, uma vez que os contratos oferecidos foram insultantes, com uma proposta de pagamento ainda pior que as anteriores. Desde a exposição do racismo estrutural em Bon Appetit, as publicações de vídeos pararam e não parecem tão perto de serem retomadas, com uma direção não reconhecendo sua conduta criminosa e desprezível e piorando ainda mais uma situação já totalmente inaceitável. Confesso que é difícil, no momento, olhar para trás e manter todos os bons sentimentos que as horas passadas no canal me trouxeram.

Outras produções que também engrossaram minha lista de entretenimento de fácil digestão e altamente efetivas em proporcionar uma fuga para um lugar menos difícil de se estar, foram Queer Eye — sempre um ótimo antídoto para qualquer tipo de situação e que nos deixa com o coração quentinho — e um dos filmes originais Netflix mais assistidos da plataforma, a produção de suspense e ação Resgate, com Chris Hemsworth. Afinal, às vezes tudo o que precisamos são algumas explosões, cenas muito bem feitas de perseguições de carros e o dia sendo salvo de forma ridiculamente irreal pelo herói. Ou, ainda, de Jonathan Van Ness com toda sua áurea espontânea e confiante olhando para você e dizendo que você é linda(o).

Shows that are just compelling enough, easily digestible, largely predictable and in which the stakes could barely be lower are proving popular in a time of heightened peril.”

“Programas de TV que são atraentes o suficiente, facilmente digeríveis, muito previsíveis e no qual as apostas são baixas estão se provando populares em uma época de grande risco.”

Neste contexto, o apelo dos realities shows, como Big Brother e MasterChef, cresce ainda mais. É algo que ainda faz parte do nosso mundo, com pessoas reais, mas não tão próximo a ponto de nos causar desconforto nos lembrando de nosso dia a dia. Nos Estados Unidos, por exemplo, desde o início do distanciamento social, as maiores emissoras do país têm registrado aumento de audiência em geral, mas em específico de programas como American Idol e Game Of Games, com os números chegando a crescer mais de 30%.

Entretanto, é inegável que até mesmo neste lugar utópico criado pelo nosso escapismo para um merecido respiro de tudo, a pandemia do coronavírus foi capaz de botar suas garras. Todos nós mudamos como pessoas, e sociedade, com a vivência deste período e a experiência de consumir cultura não poderia passar ilesa. O fardo da realidade atual ser grande demais para nos deixar inalcançáveis mesmo que em um mundo fantasioso. A angústia em ver personagens aglomerados, se tocando frequentemente, causa um arrepio na espinha e um pico de ansiedade que nunca achei que teria ao ver um episódio de uma série ou ao assistir um filme. A sensação errada causada ao se ver um simples aperto de mão na tela é a prova da extensão dos efeitos que este período difícil tem causado em nossa saúde mental e emocional.

“Nenhum homem é uma ilha”, já dizia o filósofo Thomas Morus, e as consequências de um desprendimento e fuga da realidade de forma arbitrária e que anule as vontades e desejos do nosso ser, não deve ser tratado levianamente. Todavia, encontrar formas de escapar por alguns horas têm sido necessário nestes dias turbulentos, em que as notícias ruins parecem se empilhar, e não há nada de mal em se render a um entretenimento de qualidade duvidosa que nos ajudem a “desligar o cérebro”. Saber o limite do que você pode enfrentar e respeitá-lo também é zelar pelo seu bem mental.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana C. Vieira.