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Cozinhar nos tempos de pandemia e o que podemos aprender com chefs profissionais

Você se lembra de quando o Carnaval terminou e brincamos que o ano finalmente começaria? Parece que já se passaram duas décadas desde então, mas foram quase quatro meses. Desde que o coronavírus chegou ao Brasil, e muito rapidamente começou a infectar a população, a rotina de quem pode se dar ao luxo de trabalhar em casa sofreu uma grande mudança. Nós fomos, e estamos sendo (pois ninguém realmente se adaptou ao estado atual das coisas e espero que nem cheguemos ao ponto de achar isso normal) forçados a mudar nossa rotina diariamente devido à pandemia. Entender o que se encaixa dentro do nosso dia a dia, do que é necessário para nossa sobrevivência e o que não é. Tenho plena certeza que cada pessoa com quem conversarmos tem muito a falar sobre o assunto e como as coisas mudaram em suas vidas nos últimos meses, mas uma das coisas que temos em comum é a cozinha. Todos começamos a cozinhar mais. Cozinhar deixou de ser um hobby, um luxo e voltou a ser uma necessidade — pelo menos para parte da sociedade que podia se dar ao luxo de tratá-la como tal.

Minha rotina com a comida sempre foi muito diferente da maioria das pessoas que conheço. Minha mãe odeia cozinhar e não fazia questão nenhuma de ensinar. Cresci comendo pão de queijo, lasanha e pão, tudo congelado. No almoço, a comida era o que tinha, mas nada além do básico. Não era por falta de dinheiro, mas por falta de interesse até porque não precisa gastar muito pra fazer algo gostoso, o macarrão com molho de tomate ou um prato de arroz com feijão podem comprovar isso. Finalmente, quando conquistei meu primeiro estágio e comecei a ganhar meu próprio dinheiro, fiz o que muita gente que conheço faz: sair para comer o tempo inteiro. Era uma delícia, óbvio, mas foi muito dinheiro gasto porque não queria, novamente, comer lasanha congelada. Minha relação com comida mudou quando aprendi a cozinhar. Comecei testando receitas pequenas como abobrinha assada, macarrão a bolonhesa, carne com batata e, aos poucos, fui aprendendo a fazer risoto (que achava tão complicado e chique), peixes e algumas sobremesas. Cozinhar se tornou terapêutico porque era algo sobre o qual eu tinha total controle e era fácil na maior parte do tempo. Quando você começa a ter confiança na cozinha, entende qual tempero funciona com o que, a quantidade de sal que você gosta e ganha confiança para modificar uma coisa ou outra deixando tudo ainda mais gostoso. Além da sensação de criar algo tão importante como a comida. Sim, é verdade que ninguém está inventando a roda, mas o importante é como nos sentimos durante, e após, a experiência.

Quando me mudei pra São Paulo, e consequentemente tive menos tempo, isso se perdeu. É muito fácil se acomodar com a vida de delivery: promoções que parecem ter um bom custo benefício, um menu inteiro com as mais diversas opções de pratos ou apenas uma maneira de não perder tempo indo até o mercado ou ficando de pé na cozinha, os aplicativos de entrega parecem ter chegado para ficar. É por meio dos serviços de entrega que muitos restaurantes estão se sustentando na pandemia e se torna mais do que necessário ajudar esses locais que tiveram sua clientela reduzida durante a quarentena. O problema é que qualquer coisa em excesso é ruim e nem sempre sabemos do que é feito aquilo que está sendo entregue em nossas casas para além do prato pedido. Qual é a procedência dos ingredientes? Eles são de qualidade, feitos na hora, ou são industrializados, repletos de substâncias cujos nomes não fazemos ideia de como pronunciar? A realidade é clara: ninguém sobrevive pedindo delivery. Prejudica nossa saúde e nosso bolso e se torna uma opção inviável e, por isso, todo mundo está indo para cozinha, até aqueles que sempre odiaram cozinhar.

Cozinhar é a maneira que encontrei para relaxar que não seja olhando para uma tela ou monitor, o que acaba sendo um contraste bem interessante se pensarmos que alguns anos atrás a única função da mulher era cozinhar e cuidar da casa. A boa esposa era quem esperava o marido com o jantar pronto, com mesa farta e look impecável. Claro que estamos falando, em sua maioria, de mulheres brancas de classe média que podiam ficar em casa. Não podemos esquecer que até hoje os ricos não cozinham para si mesmos pois contam com uma funcionária, em sua maioria negra, para cuidar da casa. Em meados dos anos 1960, quando as mulheres começam a trabalhar fora como consequência da Segunda Guerra Mundial e redução da mão-de-obra dos homens, e, depois, com a primeira onda do movimento feminista, cozinhar se tornou algo ainda mais chato e cansativo, algo de que, inclusive, quem podia, se desvencilhava. O momento das refeições ficou cada vez mais simplificado e rápido, com comidas congeladas mantidas no freezer que iam direto para o micro-ondas. Nossos hábitos foram mudando assim como nossas prioridades. Comer é uma necessidade mas às vezes nossa rotina nos faz sentir como se fosse uma forma de atrapalhar o que estamos fazendo.

Lançado em 2017 na França e traduzido para o português no ano seguinte, em Fominismo — Quando o Machismo se Senta à Mesa (Editora Quintal) a jornalista e pesquisadora francesa Nora Bouazzouni analisa e comenta a relação paradoxal da mulher com a comida. Apesar de sermos as responsáveis por cozinhar e garantir a comida na mesa ao longo dos séculos, nós ainda não temos o reconhecimento necessário. “Seja pela divisão do trabalho, pela segregação alimentar ou pela orientação das práticas de consumo por meio de proibições, discriminações ou ditames estéticos, a comida serve para manter as mulheres no lugar que lhes foi designado, há milênios, no espaço ou na sociedade”, comenta a autora. Por que, afinal, somos coadjuvantes em um lugar onde historicamente exercemos o papel principal?

Muito por conta da pandemia e a quarentena que nos obrigada a permanecer dentro de casa, estamos voltando a velhos hábitos. A Vox comentou sobre como algumas plataformas estão sendo usadas novamente, como o Tumblr que era imensamente popular no início dos anos 2000, e ouvindo bandas que há anos não colocávamos pra tocar e até o New York Times resolveu criar o Quarantine Recipe Club, uma newsletter e arquivo no Google Docs para receber e trocar receitas simples e acessíveis. Esse senso de comunidade veio um pouco antes quando, em diversas partes do mundo, mulheres — em sua maioria — começaram a compartilhar com amigos próximos receitas práticas para o dia a dia. Esse processo se tornou tão popular que essas mulheres viram suas listas de receitas sendo compartilhadas, e alimentadas, por centenas de pessoas que elas não faziam ideia de quem eram. Nem todo mundo sabe cozinhar ou tem paciência para procurar receitas, e é claro que uma receita recomendada por uma amiga explicado o passo a passo é muito mais provável de ser feita do que uma receita encontrada em um blog desconhecido visto que não são todos que tem paciência, ou interesse, em ler tudo para só então colocar em prática.

Faz tempo que a cozinha virou protagonista na televisão. Nigella Lawson — uma celebridade das panelas — foi o primeiro exemplo mundial de uma personalidade na cozinha. No final da década de 1990, Nigella lançou seu primeiro livro, How To Eat, focado em dicas culinárias e em como ganhar tempo na cozinha. O livro vendeu rapidamente 300 mil cópias fazendo um sucesso estrondoso na Inglaterra. Um pouco depois, Nigella lançou seu segundo livro e um programa de televisão, onde seu nome explodiu e virou uma referência para culinária caseira mundial. Atualmente, é autora de diversos livros de culinária, além de ter sido apresentadora e jurada de programas de televisão e competições gastronômicas mundiais. Já faz anos que Nigella virou uma celebridade e referência quando falamos de cozinha fácil.

Não vou comparar porque acho que cada uma dessas mulheres traçou seu próprio caminho, mas aqui no Brasil temos uma referência que percorreu uma jornada parecida com a de Nigella e conseguiu expandir sua marca para diversas áreas. Rita Lobo, uma modelo — quem lembra disso? — que virou chef e hoje em dia é um dos maiores nomes relacionados a gastronomia e cozinha prática no país. Rita está em todo canto: em seu programa no canal por assinatura GNT, em seu canal no YouTube, em seu site Panelinha e em seus diversos livros lançados. O que a Rita está fazendo nessas duas últimas décadas é ensinar como fazer comida simples, saborosa e acessível para quem quiser aprender. Foi com a Rita que aprendi a cozinhar: desde carnes, peixes, macarrão, bolos até um simples arroz. No seu site, Panelinha, tem um arquivo de receitas imenso; com sua série O que tem na geladeira? Rita ensina a usar os ingredientes que geralmente ficam esquecidos na geladeira de uma forma nova e impossibilitando o desperdício; em seus livros você pode aprender a cozinhar sozinha com Só para um: alimentação saudável para quem mora sozinho, a dois com Cozinha a Quatro Mãos ou em Receitas que Funcionam. O que faz da Rita uma das mulheres mais conhecidas na gastronomia brasileira é exatamente englobar todo mundo. Absolutamente todos podem aprender a cozinhar, seja por vídeo, livro ou lendo uma receita on-line. É informação democrática assim como sua gastronomia.

Mas não faz muito tempo que a gastronomia voltou a estar em alta para toda nossa população, e um dos responsáveis por isso foi a estreia do Masterchef, a versão brasileira da competição gastronômica na Band. Desde 2014, o reality tem sido um dos responsáveis por acender o interesse do brasileiro médio pela gastronomia além de projetar a um alcance nacional chefs importantes do país. Além de tudo isso, foi por meio do programa que fomos apresentados — e caímos de amores — pela única chef do júri, Paola Carosella. Paola é chef, mãe, ativista, escritora e uma profissional muito talentosa. Seu jeito de falar com os participantes do programa — olhando bem fundo nos olhos enquanto faz perguntas pontuais sobre os pratos apresentados, além do constante sorriso — mostram como ela é calorosa e acessível mesmo para os que estão mais nervosos e a admiram. Mas, para mim, a parte mais importante da visibilidade da Paola, além de ser uma mulher comandando dois restaurantes respeitados em São Paulo, é a sua relação com os alimentos visto que a chef é defensora da alimentação orgânica e acessível para todos. Faz questão de relembrar que nada deve ser desperdiçado e da necessidade de respeitar e conhecer a procedência dos alimentos que estamos ingerindo. Paola também é responsável pelo projeto “Cozinha A Voz” que possibilita o acesso de minorias a aulas de culinária, o que proporciona a seus alunos o aumento das chances de conquistar um trabalho e autonomia financeira. Atualmente, Paola conta com um canal no YouTube onde ela ensina receitas e, entre elas, uma série chamada Dia do Refugiado onde em cada episódio é preparada uma receita do país de origem de um convidado enquanto o mesmo conta sua história.

O Masterchef não nos presenteou apenas com Paola entre mulheres que fazem a diferença em sua área de trabalho: podemos citar as participantes Elisa Fernandes e Irina Cordeiro, entre tantas outras que passaram pelo programa, como chefs que traçaram caminhos inspiradores em meio a culinária. Elisa foi a vencedora da primeira edição do programa, em 2017, estudou na renomada escola de gastronomia Le Cordon Bleu, na França, e trabalhou com alguns dos chefs mais respeitados do mundo. Três anos após sua vitória, Elisa voltou ao Brasil para mostrar o que aprendeu, suas preferências e sua forma de trabalhar. Em uma entrevista para Marie Claire comentou: “(…) senti que era hora de arriscar no Brasil uma cozinha simples e verdadeira, modelada pelo aprendizado dos últimos anos. Uma cozinha que privilegia os vegetais e cereais cozinhados de maneira natural, porém técnica e refinada”. Em seu canal no YouTube, Elisa ensina uma mistura perfeita entre cozinha simples e alta gastronomia, passeando por receitas que vão desde o omelete até o prato que a fez vencer o Masterchef. Todas as receitas são explicadas de forma fácil e didática ensinando não somente a como prepará-las, mas também a entender o porque de seus preparos e como alguns ingredientes são capazes de mudar por completo o sabor ou a textura de um prato — é uma forma de dar um passo a mais da cozinha que costumamos fazer no dia a dia para algo mais refinado, porém ainda acessível.

Na cozinha e no canal da Irina Cordeiro, sua prioridade é humanizar o ambiente. Antes de participar da segunda edição do Masterchef Profissionais, em 2017, Irina era sommelier e morava em Natal, no Rio Grande do Norte. Após ser semifinalista da sua edição, mudou-se de vez para São Paulo e começou a investir na carreira de chef, influenciadora e youtuber. O que mais gosto no canal da Irina é sua naturalidade e simplicidade: ela é engraçada e faz questão de misturar receitas que todos conhecem (como carbonara), com receitas típicas do Nordeste e dicas de vinho, além de falar muito sobre saúde mental. O foco da sua cozinha, e também do seu canal, é ensinar as pessoas a comprarem melhor os alimentos, valorizarem os que estão na estação, utilizá-los por completo. Irina também faz com que seu público passe a questionar de onde vem os alimentos que estão consumindo, priorizando sempre a compra do pequeno produtor. São receitas simples, baratas e acessíveis em sua maioria, além de divertidas porque a personalidade de Irina brilha de maneira fácil.

A cozinha tem diversos nichos, seja na técnica de cozinhar, no preço dos produtos, nos tipos dos alimentos ou simplesmente nos sabores dos pratos. A internet, agora mais do que nunca, está expandindo esse conhecimento de graça para quem quiser a aprender sobre como usar ao máximo do que compramos, desperdiçar menos, fazer comidas diferentes com ingredientes populares ou começar entender que comida também é afeto para nosso corpo e mente. Quando começar nosso “novo normal”, sabemos que não iremos continuar cozinhando como hoje em dia, até porque não estaremos o tempo todo em casa, mas certos hábitos no meio desse caos podem, e devem, ser levados para a vida toda. Existe uma herança na nossa comida e é preciso relembrá-la.


** A arte em destaque é de autoria da editora Thayrine Gualberto.
** As fotografias de pratos no corpo do texto são de autoria da colaboradora Tany Monteiro.