Categorias: LITERATURA

Interferências: o amor nos tempos das redes sociais

Descrito pelo BookPage como um conto de fadas tecnológico, Interferências é o segundo livro de Connie Willis, ícone da ficção científica, a ser lançado no Brasil pela Suma de Letras. Uma combinação de ficção científica e comédia romântica com pitadas de Black Mirror, Interferências propõe um debate acerca dos perigos da tecnologia, os excessos das redes sociais e como tais excessos podem interferir em nossos relacionamentos, inclusive os românticos.

Em Interferências somos apresentados a Briddey Flannigan, uma jovem empresária que trabalha em uma companhia de tecnologia, a Commspan, e namora o rapaz mais cobiçado do lugar, Trent. O relacionamento entre os dois é relativamente recente, mas Briddey tem certeza de que ele é o homem da sua vida principalmente por ser tão diferente da estridente e confusa família irlandesa de onde vem: na casa dos Flannigan, ninguém tem muita privacidade e com o advento da tecnologia e trocas de mensagens instantâneas, não há nada que as mulheres do clã Flannigan fiquem sem saber umas sobre as outras. Briddey, que sempre prezou por sua independência e privacidade, encontra na aparente tranquilidade da vida organizada de Trent o refúgio que sempre sonhou para si.

“Só que algumas pessoas acabam conectadas demais, entende, principalmente quando se trata de relacionamentos.”

O relacionamento entre os dois parece ser mesmo fadado ao sucesso quando Trent sugere à namorada que eles se submetam ao EED, um tipo de procedimento cirúrgico que promete aumentar a empatia entre os casais e, consequentemente, gerar uma conexão emocional além do comum entre eles, aprimorando seu relacionamento. Impactada com o pedido, Briddey aceita sem pensar duas vezes e tenta manter a cirurgia em segredo de sua família, que é completamente contra o EED, e de seus colegas na Commspan — o que não se mostra uma tarefa simples quando todos estão conectados 24 horas por dia nas redes sociais. As mulheres Flannigan não são as únicas contra o EED, e C.B. Schwartz, visto como o nerd esquisito da Commspan, se aproxima de Briddey para tentar impedi-la de realizar o procedimento, mas sem sucesso.

Mesmo com todos os alertas feitos por C.B., que cerca Briddey com artigos científicos a respeito do EED e do que ele pode causar ao seu cérebro, visivelmente preocupado com o que pode acontecer à Briddey, a moça está decidida: quando Trent consegue uma consulta de última hora com o Dr. Verrick, responsável pela tecnologia que torna o EED possível, Briddey vai de bom grado e se submete a cirurgia. E é a partir daí que sua vida muda para sempre: o que era para ser um procedimento simples capaz de ampliar a empatia entre o casal se transforma em algo muito maior e assustador quando Briddey começa a escutar o que as pessoas ao seu redor estão pensando. E no lugar da voz de Trent na sua cabeça, com quem ela gostaria de se conectar a princípio, está a voz de C.B. Schwartz.

O pavor de Briddey é palpável e verossímil, e ela logo acusa C.B. de estar tramando contra ela e Trent. C.B., no entanto, é o mais paciente e gentil possível, tentando fazer com que Briddey compreenda sua nova situação de leitora de mentes, um mundo assustador por onde ela não consegue navegar sem a ajuda de C.B. Por meio da nova habilidade adquirida — e que, a princípio, apenas C.B. sabe a respeito — Briddey vai aos poucos descobrindo que Trent, seu então namorado perfeito, não é aquilo que parece ser e que o convite para fazer o EED não partiu da necessidade que Trent tinha de se conectar romanticamente com Briddey, mas da urgência que o rapaz tem de encontrar uma tecnologia para a Commspan que supere a Apple, concorrente da empresa, em matéria de telefonia celular. Além de esconder de Briddey o real motivo para se submeter ao EED, Trent a trata de maneira abusiva: ainda que de maneira sutil, Connie Willis consegue inserir traços na personalidade de Trent que evocam os relacionamentos tóxicos, seja quando critica a escolha de Briddey por um vestido ou quando a usa para se beneficiar na empresa.

Mesmo que Interferências seja uma leitura fácil e prazerosa — as mais de 460 páginas são lidas com tranquilidade devido à escrita primorosa de Connie Willis —, Briddey, enquanto protagonista, é um pouco cansativa quando se recusa a ver a verdade que está diante de seus olhos, principalmente com relação ao caráter de Trent e a maneira como trata sua família. É certo que as mulheres Flannigan não são fáceis — tia Oona é invasiva, Mary Clare, controladora —, mas o que fazem é por conta do amor que sentem umas pelas outras, um zelo exacerbado, em alguns momentos, mas que tem o único intuito de cuidar e proteger. Ainda que Briddey soe mimada e dramática em mais de um momento durante a leitura, sua parceria com C.B. Schwartz a faz crescer enquanto personagem, suavizando um pouco de sua rabugice.

“E você sabe para quem as pessoas mais mentem? Para si mesmas.
São mestres absolutas da auto-ilusão.” 

Além de Briddey, as personagens femininas da trama têm seus bons momentos, principalmente a sobrinha da protagonista, Maeve. Ela é uma criança inteligente e divertida, apaixonada por filmes de zumbis e Enrolados, e que compartilha com Briddey muito mais do que o sobrenome e os cabelos ruivos. A interação entre as duas, e com C.B., fazem a trama de Interferências ainda mais divertida de se acompanhar, aliando a inocência e sabedoria de uma criança prodígio à tumultuada descoberta da telepatia de Briddey. Do relacionamento de Maeve e sua mãe, Mary Clare, ainda é possível levantar o debate do cuidado que é preciso ter com crianças acessando redes sociais e como é necessário desenvolver um laço de afeto e confiança, e não estabelecer um sentimento de paranoia, como acontece com Mary Clare — a mulher tem medo de que Maeve se alie a terroristas pelo computador, enquanto tudo o que a menina deseja é espaço para assistir seus filmes de zumbis.

Em Interferências, a autora demonstra mais uma vez sua capacidade de contar histórias e reúne em uma mesma trama críticas contundentes a geração que vive conectada o tempo todo nas redes sociais, e como tais tecnologias devem ser usadas com sabedoria, e uma história de amor digna das melhores comédias românticas. Ainda que as mensagens instantâneas e redes sociais sirvam para nos aproximar uns dos outros, o uso em excesso é capaz de se transformar em vício e desencadear um sem número de doenças mentais. A trama é tratada de maneira leve, mas ainda é possível resgatar a crítica da autora a respeito da dependência gerada pelas redes sociais, evocando também o episódio Nosedive da terceira temporada de Black Mirror. Em um mundo cada vez mais globalizado e conectado, é preciso estar atento aos limites do uso das redes, e ainda que em Interferências a tecnologia apareça apenas como meio para um fim — contar as desventuras de Briddey e C.B., envoltos em uma comédia romântica tecnológica — fica o aviso da autora de que menos, nesse caso, é sempre mais.

O exemplar foi cedido para resenha por meio de parceria com a Editora Companhia das Letras.


** A arte do topo do texto é de autoria da nossa colaboradora Clara Browne

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