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Daughter: líquido, etéreo e feito para sentir

A primeira vez que cruzei com a banda inglesa Daughter foi por meio da mais conhecida de suas canções, “Youth”. Como e quando isso aconteceu me escapa da memória; a música já foi parte da trilha sonora de diversas séries que acompanhei ou ainda acompanho — Skins, Grey’s Anatomy, Lovesick e The Vampire Diaries são alguns exemplos — e, na época, se tornou uma favorita por dizer tanto. Hoje não é diferente; “Youth” continua sendo atual. Porque Daughter, afinal, canta sobre sentir. E sentir nunca fica datado.

Elena Tonra cresceu em Londres, na Inglaterra. Quando nova, ela ouvia música irlandesa por influência de seu avô, e o álbum Grace, do cantor americano Jeff Buckley, que ganhou de presente, teve grande impacto na sua vida. Aos 12 anos, ela mudou de escola e, durante esse período, sofreu bullying, sentindo-se solitária e deixada de lado, podendo contar apenas com os livros. Elena escrevia para processar a sua realidade e aprendeu sozinha a tocar guitarra e baixo. Quando, aos 20 anos, e utilizando seu próprio nome, ela começou a tocar em pubs de Londres, a sensação que tinha era de que aquilo não combinava com ela e suas habilidades estavam engessadas.

Nascido na Suíça, Igor Haefeli não tinha o costume de assistir bandas internacionais ao vivo, mas, ao comparecer a um dos shows de Elena, ficou muito admirado com as pessoas que simplesmente não se calavam para escutar a música. Contudo, o espanto inicial logo evoluiu para admiração, pois, segundo ele, a atmosfera mudou e foi cativada pela cantora. Igor havia se mudado da Suíça a fim de encontrar parceiros musicais com ideias parecidas às dele. Ele estudava no Institute of Contemporary Music Performance, mesmo instituto onde Elena fazia um curso de escrita musical, e foi aí que eles se tornaram colegas. Elena havia recém construído a música “Tomorrow”, mas sentia que faltava alguma “merda atmosférica” para que a música ficasse do jeito que queria. Igor era entusiasta de tech music [música tecnológica] e entrou contribuindo, principalmente, com sua guitarra elétrica. Assim, eles encontraram um no outro a parceria necessária para fazer com que o Daughter saísse do mundo das ideias. E, por acaso, se envolveram romanticamente.

Em 2011, após gravarem diretamente do quarto de Igor, o Daughter lançou seu primeiro EP, His Young Heart, que traz na capa uma foto de Elena quando criança e, no conteúdo as composições, “Landfill”, “The Woods”, “Candles” e “Switzerland”. A primeira canção, “Landfill”, já pavimenta bem o que o Daughter vem fazer. Entre a tão desejada “merda atmosférica” e a composição lírica, é impossível não pintar um cenário pouco promissor para a jovem cantora ou para qualquer um que se identifique com a letra. O EP segue curso com “The Woods”, onde uma esperançosa Elena pede a São Cristóvão para encontrar uma irmã perdida nos bosques, e emplaca “Candles” logo em seguida, uma música de parabéns que diz que você está velho demais para ser tão tímido e aqui há uma mente ficando confusa por culpa de um jovem coração. His Young Heart termina em “Switzerland”, uma canção quase sem voz, só som.

Pouco menos de quatro meses depois, o duo lançou seu segundo EP, This Young Heart, dessa vez com o selo da Communion Music. Daughter adicionou um terceiro membro na jogada, Remi Aguilella, um francês, para ser responsável pela bateria e percussão. This Young Heart foi responsável por colocar a banda sob os holofotes. “Home” entrou na trilha de Grey’s Anatomy e do filme How I Live Now e canta “I think I should be a little more confident in myself, in my skin” [“Eu acho que deveria ter um pouco mais de confiança em mim, na minha pele”]. “Medicine” é, honestamente, uma das canções que mais representa o poder que o Daughter tem: ela ricocheteia para todos os lados, não há como não sentir. A terceira música do EP é a primeira versão da mais famosa canção, “Youth”, e é mais seca do que a versão que apareceria mais tarde no primeiro álbum da banda. “Love” é sobre assistir um amor ir embora com outro alguém e ficar para trás, preso em todos os pensamentos pouco dourados que só assistir um amor ir embora com outro alguém pode causar. Em pouco mais de trinta dias do lançamento do segundo EP, Daughter recebeu um convite para se apresentar no programa do David Letterman, nos Estados Unidos.

“Throw me in the landfill/ don’t think about the consequences
Throw me in the dirt pit/ don’t think about the choices that you make
[…]
‘Cause this is torturous/ electricity between both of us
And this is dangerous/ ‘cause I want you so much
but I hate your guts/ I hate you”

“Jogue-me no aterro/ não pense sobre as consequências
Jogue-me na cova de terra/ não pense sobre as escolhas que você faz
[…]
Porque isso é torturante/ a eletricidade entre nós dois
E isso é perigoso/ porque eu te quero tanto
mas eu te detesto/ eu te odeio”

Nas entrevistas da banda no período entre 2011 e 2013 — ano em que o primeiro álbum, If You Leave, foi lançado — é possível averiguar algo que Igor e Elena sempre mantiveram em mente: a necessidade de deixar o relacionamento deles e a banda em esferas separadas. Sendo Elena a responsável pelas letras, Igor não queria que ela se contivesse por medo ou receio, ou deixasse de ser o mais pessoal e aberta possível em suas composições. Uma característica muito marcante do Daughter é que suas letras não são obscuras; não é necessário dar voltas e giros para entender o que está sendo cantado. É tudo muito honesto, muito direto, sem meias palavras. Com Elena condensando suas próprias experiências nas composições, há, também, muito sobre o papel da mulher dentro de um relacionamento heteroafetivo — e a solidão que isso pode causar. If You Leave foi oficialmente lançado em março de 2013 e a banda entrou em turnê por dois anos após o lançamento do trabalho. Só que, entre um fato e outro, o relacionamento amoroso de Elena e Igor acabou.

“Aquele estranho álbum ‘antes de tudo ir pra merda’” foi a forma que Elena, anos mais tarde, encontrou para classificar If You Leave. O primeiro álbum da banda, que desde então é assinado pela 4AD, não se trata de um trabalho sobre o término de um relacionamento tanto quanto se trata daquele sentimento esquisito de “o fim está próximo”. É um álbum curto, com apenas dez músicas, mas muito denso, muito emocional, e que teve uma recepção positiva. Entre a já conhecida técnica de misturar efeitos de voz com elementos eletrônicos, também se mantém o alto nível das letras. “Smother”, a segunda faixa, chega tímida, procurando seu lugar, e cresce até se tornar uma das melhores canções da banda, enquanto serve como pedido de desculpas a alguém que foi sufocado pelo peso do eu (ou de você) — “I want all that is not mine/ I want him but we’re not right/ In the darkness I Will meet my creators/ And they will all agree, that I’m a suffocator” [“Eu quero tudo que não é meu/ Eu o quero, mas nós não somos certos/ Na escuridão, eu encontrarei meus criadores/ E todos eles irão concordar, que eu sou uma sufocadora”].

Uma versão mais lapidada de “Youth” vem na sequência; um retrato amargo sobre pessoas imprudentes, de uma juventude selvagem, que correm atrás de uma versão do futuro que pode nem existir. Quando “Still” chega, é possível ouvir a realidade de um relacionamento que já não é o que deveria — “hate is spitting out each others mouths/ but we’re still sleeping like we’re lovers” [“Ódio é cuspido de nossas bocas/ mas ainda estamos dormindo como se fôssemos amantes”]. Avançando um pouco, temos “Tomorrow”, a versão final da primeira parceria de Elena e Igor. Em “Human” a batida acelera; quem canta, canta que, acima de tudo, apesar de tudo, por causa de tudo, eu ainda sou (só) humana. Para encerrar, em quase sete minutos de música, “Shallows” cria uma atmosfera calma, leve, pertinente para observar estrelas, para então terminar tudo com uma sobreposição de batidas, acordes e cantorias.

“Expressar suas emoções não é uma fraqueza, mas uma força real”, confessa a vocalista, quando afirma que no segundo álbum da banda há menos esconderijos, uma sinceridade ainda mais crua e direta do que no seu já muito sincero antecessor. Três anos mais tarde, em 2016, era vez de Not to Disappear ser lançado. Todas as questões do primeiro álbum reaparecem, em conjunto com a solidão de uma forma mais profunda, do coração partido, do sexo e das relações familiares. Durante a turnê de If You Leave, a banda sentia que os shows estavam cada vez mais urgentes, pesados, rockier. Parte disso é replicada no segundo álbum de Daughter. Procurar novos caminhos, novos modos de gastar o tempo, tentando não desaparecer — é esse o tom de “New Ways”, música que abre o álbum. “Numbers” é o eco de um adormecimento. “Doing The Right Thing”, o primeiro single de Not to Disappear, é sobre uma relação entre mãe e filha. “Alone/With You” confidencia ao ouvinte odiar fazer algo sozinho, mas também odiar fazer esse mesmo algo com alguém, e como isso é difícil. Dançar enquanto a mente vira geleia é a sensação que tenho quando ouço “No Care”. “I don’t want to belong, to you, to anyone” [“Não quero pertencer a você, a ninguém”] vem no refrão de “To Belong”, a antepenúltima música do álbum (que também tem apenas dez faixas). Parecendo repetir a mesma fórmula de “Shallows”, “Fossa” tem quase sete minutos, começa calma e contida apenas para terminar exasperada. No entanto, a mágica de Elena Tonra atinge um patamar altíssimo na composição da música, e encanta de uma maneira que me faz arriscar marcar “Fossa” como a melhor canção do segundo álbum. Terminar com “Made of Stone” faz Not to Disappear atingir uma calmaria dura, mas necessária.

Menos de um ano após o lançamento de Not to Disappear, o trio foi convidado pela Deck Nine, produtora de games, para produzir a trilha sonora do jogo Life is Strange: Before the Storm. A maioria das composições se sustenta sozinha, como era o intuito de Tonra, e muitas não possuem vocal. A trilha recebeu o nome de Music From Before the Storm e captura com maestria tanto a atmosfera do jogo quanto a aura da nossa muito conhecida Chloe Price.

Em novembro do ano passado, por meio da plataforma Queremos!, a banda passou pelo Brasil com três shows, que aconteceram no Circo Voador, no Rio de Janeiro, e no Theatro São Pedro, em Porto Alegre, além da participação no festival Popload, em São Paulo. Tive o prazer de comparecer ao show de Porto Alegre, pequeno e intimista, emoldurado pela beleza do teatro da capital gaúcha. Se já gostava da banda antes da apresentação, foi com ela que fui total e completamente cativada. A experiência toda foi muito mágica, realmente encantadora. Daughter tem uma maneira muito peculiar de fazer música, como se utilizasse um amplificador que faz com que quem a ouça, escute muito e tudo. A banda preenche o ambiente, de todas as formas. Os momentos de silêncio entre uma frase e outra, a sobreposição de sons, a crueza e honestidade de suas composições inundam o ouvinte, para então escoar para todos os lados. Vindo de uma fã, tenho a sensação simbólica de estar sendo fundida à música quando escuto certas canções da banda, sendo diluída por ela. Algo que observei e achei interessante é que, naquele show, ao menos, os três integrantes da banda, mais uma integrante que dava apoio nos teclados, formavam um retângulo em palco. Não era a vocal na frente e os demais integrantes no plano de fundo. Achei interessante.

Ainda que Daughter se trate de uma banda intrinsecamente melancólica, que fala muito sobre questões difíceis — solidão, medo, tristeza, insegurança etc. —, a sua sonoridade é realmente bela, memorável. É uma forma expansiva, original e direta de fazer música. Classificada entre o nu folk e o indie, a banda experimenta e está cada vez mais brilhante. A jovialidade dos integrantes, presente nos seus primeiros trabalhos, vem abrindo espaço para o crescimento e o processo se tornar adultos, dando lugar para a aspereza que essa transição pode ter. Rebecca Bunch (Rachel Bloom) nos diz que é importante sentir sentimentos; eu digo que Daughter nos dá a trilha para fazer isso.


** A arte de destaque é de autoria da editora Ana Vieira.