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Estamos sozinhas?: o que a cultura pop tem a dizer sobre o papel da mulher em relacionamentos heteroafetivos

Lembro ainda, muito vividamente, a primeira vez que senti uma mágoa estilo coração partido tomando conta de mim. Eu estava na sexta série, no auge dos 11 anos, e o mocinho com quem eu tinha, um ano antes, trocado meu primeiro beijo — inocente, sem língua — me zoava com o melhor amigo porque eu não tinha o tênis da moda. Na hora, eu não soube o que dizer, portanto, não disse nada, só aceitei. Depois de algumas experiências ruins no ensino fundamental, aprendi que era melhor engolir os perrengues e lidar com eles em casa.

Hoje em dia, quando penso nisso, já consigo entender melhor o que leva um garoto pré-adolescente ou adolescente a mudar tanto de comportamento em um período curto de tempo — ou a mudar tanto de comportamento conforme o grupo em que está inserido. Em The Mask You Live In, documentário de Jennifer Siebel Newsom, disponível na Netflix, um grupo de educadores e especialistas relata que a forma como garotos são criados e socializados impacta diretamente na forma como esses mesmos garotos se relacionarão com outras pessoas quando se tornarem homens — e na forma como tratarão as mulheres. No documentário de pouco mais de uma hora e meia conhecemos alguns desses homens, que confessam de forma emocional como se tornaram pessoas mais frias, raivosas, desconexas da realidade e, acima de tudo, inábeis em se comunicar. Há a perda da empatia e a perda da capacidade de mostrar vulnerabilidade. Em conseqüência disso, reforça-se a ideia de que tudo que é emocional e sentimental é feminino, fraco, inferior e, por isso, “não é coisa de homem”. The Mask You Live In é permeado de informações que comprovam seu ponto de vista: estatísticas, relatos, notícias e também a personificação da entidade “homem” na cultura, na música, na televisão e no cinema. O objetivo final é provar a masculinidade, “ser homem”, aplicar o “bro code”, entre outros.

Sem muito esforço, é fácil enxergar que os resultados da hipermasculinização são desastrosos e prejudiciais, apodrecem garotos de dentro pra fora e refletem diretamente na opressão diária que mulheres sofrem todos os dias — a cultura do estupro é um exemplo disso. O espaço “dos homens”, o seu grupo, é enaltecido, cultivado, criando um acordo tácito de bros before whos (o personagem Barney Stinson, interpretado por Neil Patrick Harris, da série How I Met Your Mother, não me deixa mentir), mesmo que isso signifique colocar valores éticos e morais de lado. Está aí, está explícito, e muito se fala disso. O que não se fala tanto, ou que não é tão óbvio — embora talvez seja ainda mais óbvio — é como essa distribuição de papéis mina os relacionamentos entre homens e mulheres, especialmente os românticos e heteroafetivos, bem lá no fundinho do âmago. Não é porque mulheres são de Vênus e homens de Marte; é porque somos da Terra e socializados de maneiras diferentes, e cabe a nós, mulheres, uma parcela muito grande do segurar, junto, seguro e íntegro, nossos relacionamentos.

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Quando reflito sobre isso, penso que é o reflexo de um relacionamento fracassado; a visão está embaçada, em túnel, enxergando apenas uma verdade. Aí penso em tudo o que já vi amigas passarem, em tudo que já ouvi mulheres cantarem e em toda representação de relacionamentos na cultura que já consumi. Há muitas nuances, muitas dificuldades, mas algumas características que marcam grande presença: estamos sozinhas e ocupando, por vezes, papéis que nem nos cabem.

“A assimetria que eu enxergo nos relacionamentos heterossexuais é perversa: os homens são socializados pra independência, pra manipulação e pro abuso; e as mulheres, pra dependência, pra carência e pro perdão, assim os dois lados se completam em prol da manutenção do domínio masculino. Essa assimetria é cruel porque faz com que as mulheres se deem muito fácil, faz com que perdoem sempre tudo e que sempre carreguem sozinhas o fardo da manutenção do relacionamento. Ao mesmo tempo faz com que os homens ocupem a posição de conformidade, de “errei de novo, mas me desculpa, sou homem, estou tentando”, o homem se sentirá suficiente, sentirá que já está fazendo muito por apenas tentar e nos manipulará todo o tempo para acreditar que nós é que somos muito difíceis e exigentes”. (Por Laura Elisa, Os Homens que Não Amavam as Mulheres)

Em Encontros e Desencontros, uma solitária Charlotte (Scarlett Johansson) não consegue se aproximar do marido, trabalhador e famoso. Charlotte está perdida em Tóquio, procurando aconchego em outro homem famoso que não consegue, em sua própria casa, se comunicar. Em Ela, anos mais tarde, um desconfortável Theodore (Joaquin Phoenix) contempla um casamento fracassado, suas falhas em estar presente refletindo diretamente em uma mulher que já é, naturalmente, insegura. A ruína se estabelece porque a comunicação não está presente. O primeiro filme é de Sofia Coppola; o segundo, de Spike Jonze. Sofia e Spike foram um casal. É a vida imitando a arte? No filme Closer – Perto Demais, quatro personagens cruzam seus caminhos. Anna (Julia Roberts) é uma fotógrafa bem sucedida e recém-divorciada que conhece Dan (Jude Law), e faíscas são trocadas. Nessa altura, Dan já está envolvido com a stripper Alice (Natalie Portman). Anna se casa com Larry (Clive Owen), médico, mas mantém um relacionamento à parte com Dan. A verdade vem à tona, alguns perdões são trocados. Larry procura Alice, e ela confessa que “a mentira é a melhor coisa que uma mulher pode ter sem que tirem suas roupas”. Então Dan pergunta, e pergunta mais uma vez, até que Alice diga, com todas as letras, que transou com Larry — parece a contragosto, nem sabemos se é verdade. Ele a testa e ela, que já passou por muito, se cansa e manda ele ir embora, em uma das melhores cenas de todo o filme. Dan confessa o seu grande amor. Alice, então, diz que o teria amado para sempre, mas não pode ver, nem tocar, nem sentir esse amor de que ele tanto fala. Pode ouvir algumas palavras, palavras fáceis, mas não pode fazer nada com essas palavras. Tudo acaba. A fita rebobina para começar novamente. O roteiro é simples, mas bate forte.

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Alanis Morissette, no seu atemporal Jagged Little Pill, canta que “I don’t want to be adored for what I merely represent to you/ I don’t want to be to be your babysitter/ You’re a very big boy now/ I don’t want to be you mother/ I didn’t carry you in my womb for nine months” [“Eu não quero ser adorada apenas pelo que represento para você/ Eu não quero ser sua babá, agora você é um menino bem crescidinho/ Eu não quero ser sua mãe, não carreguei você na barriga por nove meses”], porque ela não quer, sob nenhuma circunstância, se tornar a responsável por quem deveria ser parceiro, não filho. Florence Welch, sem entender nada, nos pergunta “what kind of man loves like this?” [“que tipo de homem ama assim?”] em um álbum que fala sobre estar meio dentro, meio fora, sem nunca fechar a porta — How Big, How Blue, How Beautiful é o renascer depois que as coisas dão errado. Pessoalmente uma favorita, a banda inglesa Daughter coloca em letras etéreas a experiência do se sentir sozinha, do esperar um pouco demais, do detestar estar sozinho, mas odiar o estar junto — “Alone/With You”, “Fossa” e “To Belong” são do último álbum, Not To Disappear, e valem a conferida. Já a jovem Lorde, no auge dos seus vinte anos, confessa, em um dos melhores álbuns de 2017, como é ser um fardo: um pouco demais, que sente demais, escreve demais.

Todos esses são exemplos e histórias contadas a nós por mulheres brancas, e ainda que sejam muito reais, cruas, não chegam nem próximo da solidão da mulher negra — a qual a mim, uma interlocutora branca, cabe ler e compreender, jamais assumir. O termo foi cunhado por Claudete Alves da Silva Souza em sua tese de mestrado, em 2008. No trabalho, Claudete fala sobre o preterimento da mulher negra pelo parceiro de mesma etnia. Sobre isso, Djamila Ribeiro didaticamente explica que a mulher negra carrega, há anos, estereótipos, e uma objetificação e hiperssexualização que a mulher branca não recebe da mesma maneira. O próprio homem negro, continua Djamila, enraíza preconceitos, como a beleza branca sendo o padrão de beleza ideal. O site Preta e Nerd lista a Dra. Edwards (Jerrika Hinton), de Grey’s Anatomy, como um dos exemplos que reproduzem a solidão da mulher negra na TV. Na série, Edwards se envolve com Jackson Avery (Jesse Williams), um homem negro, mas acaba sendo preterida por Kepner (Sarah Drew), uma mulher branca. Edwards ganha pouco espaço para desenvolver seus sentimentos depois do acontecido. Na mesma série, a chefe Dra. Bailey (Chandra Wilson) se demonstra surpresa ao perceber que está em um mesmo relacionamento há dez anos. Ainda que a TV e o cinema estejam, aos poucos, inserindo casais interraciais em suas tramas, como aponta Arianna Davis, muitos desses casais são compostos por um homem negro e uma mulher branca — June (Elisabeth Moss) e Luke (O. T. Fagbenle), de The Handmaid’s Tale e Jessica Jones (Krysten Ritter) e Luke Cage (Mike Colter), por exemplo. Porém, no geral, ainda é muito difícil falar sobre a representação da mulher negra e de seus relacionamentos, quando mulheres negras — e pessoas negras — ocupam apenas 4,7% dos escritores da TV gringa, e a representatividade em terras nacionais também não é nada boa.

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Na música, contudo, a mulher negra encontra representantes de alto nível que cantam muito sobre seus relacionamentos afetivos. Beyoncé dedicou um álbum inteiro para falar sobre mulheres negras e suas vivências, especialmente no que tange o aspecto afetivo dessas vidas. Lemonade não só escancarou os erros, dores e perdões de um (presumido) relacionamento da cantora, mas “o álbum se trata da forma em que uma mulher negra encara as várias fases de um relacionamento“. Rihanna canta “the reason I hold on/ oh ‘cause I need this hole gone/ funny you’re the broken one/ but I’m the only one who needed saving” [“o motivo pelo qual me mantenho firme/ oh, porque preciso fazer este buraco desaparecer/ É engraçado, você é quem está destruído/ mas eu sou a única que precisava ser salva”], se segurando em uma relação para poder preencher um vazio — a gente nunca realmente precisa se agarrar a algo que é bom, natural e recíproco: isso só permanece. Já a novata e queridinha SZA, na canção “Supermodel”, que abre seu álbum de estreia, Ctrl, questiona porque não consegue ficar sozinha com ela mesma, desejando que um ex-parceiro de um relacionamento que deu errado veja nela o que ela não vê nela.

“If you see it in me, see it in me, see it in me
I don’t see myself
Why I can’t stay alone just by myself?
Wish I was comfortable just with myself
but I need you, but I need you, but I need you”

“Se você visse isso em mim, visse em mim, visse em mim
O que eu não vejo por mim mesma
Por que não posso ficar sozinha comigo mesma?
Queria me sentir confortável apenas comigo mesma
Mas eu preciso de você, preciso de você, preciso de você”

No ano passado, uma pesquisa feita pelo New York Times revelou que mulheres e homens, quando escrevem ensaios sobre amor, usam linguagens diferentes. Mulheres escrevem sobre sentimentos — palavras como “ressentimento”, “fúria”, “dor” e “sentir” aparecem. Homens, sobre ações — “batalha”, “bater”, “soco”. Mulheres escrevem mais sobre casamento, já homens sobre sexo. Quando falam sobre família, mulheres têm a tendência a falar sobre mães e filhas; homens, sobre pais e filhos. Isso diz muito sobre o papel do homem e da mulher em uma relação, o que é esperado de cada um e — por que não? — do quanto essas expectativas refletem em obras escritas no geral. Enquanto escrevemos sobre sentir, eles escrevem sobre fazer.

Não é que sejamos difíceis de amar, muito intensas, dramáticas, muito. É que a forma como homens e mulheres se relacionam são diferentes, cada um reproduzindo, de certa forma, o que foi condicionado a fazer — ou a não fazer. Entre discursos que normalizam a traição em relacionamentos monogâmicos heteroafetivos, esperando que, para não perder o homem, a mulher mantenha o relacionamento interessante, não rotineiro, cheio de tesão e não tedioso; o apagamento da vontade e necessidade da mulher em detrimento a do homem; e a naturalização de que um homem que faz um pouco já fez muito, é de uma mulher negra que nos é dada a melhor lição: “you’ve got to learn to leave the table when love’s no longer being served” [“você tem de aprender a sair da mesa quando o amor já não está sendo servido”]. Porque, ainda que a masculinidade tóxica seja prejudicial e é preciso que seja desmantelada urgentemente, há um tortuoso caminho para que caia por terra a ideia de que ser amada por um homem é o maior trunfo de uma mulher; é um exercício diário não aceitar qualquer coisa apenas para ter alguma coisa. Amar e ser amada é bom e faz bem pra pele, e é utópico acreditar que o amor é sempre linear e 50/50, mas sem equilíbrio, sem reciprocidade, sem diálogo, sem sentir e expressar, não há chances de que ele vá para a frente. É ruim demais estar com alguém e se sentir sozinha, e nós, como sempre, já não somos obrigadas.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Vieira

5 comentários

  1. Adoro o site de vocês, conteúdos maravilhosos e super relevantes 🙂 Continuem produzindo esse trabalho incrível!

  2. Que coisa maravilhosa! Trabalho de pesquisa maravilhoso, tópico maravilhoso, tudo maravilhoso, amei o texto!

  3. Eu li isso agora e só consigo concordar com cada linha, era lendo esse texto e vendo momentos da minha vida. “Nós aceitamos o amor que achamos que merecemos” A questão é, sempre achamos que merecemos pouco. Mas nós merecemos o melhor e não podemos esquecer disso.

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