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Agora Que Ele Se Foi, uma viagem pelo Caribe real

Agora Que Ele Se Foi é um livro young adult  escrito por Elizabeth Acevedo, ganhadora do National Book Award e best seller do New York Times, e lançado no Brasil em junho de 2021. Elizabeth Acevedo é uma escritora americana-dominicana e é reconhecida por escrever histórias que refletem sua descendência.

A escolha de ler esse livro não foi por acaso. Já fazem quase dois anos que saí da República Dominicana no meio de uma pandemia mundial e quando eu vi que esse livro se passava na ilha caribenha eu não hesitei em compra-lo. Em 2018 resolvi que trabalharia e moraria em outro país. A história é longa, mas por motivos completamente aleatórios eu escolhi (ou me escolheram, fica a critério) a República Dominicana. Quando comecei a contar para os amigos e familiares para onde iria, pouquíssimas pessoas sabiam dizer alguma coisa sobre esse país. Encontrá-lo no mapa, então, nem se fala. Algumas pessoas até acertavam ao dizer que é o país em que a gente passa quando quer ir para Punta Cana.

Tenho que confessar que também não conhecia muito da ilha caribenha. Sou formada em Relações Internacionais, o que não diz nada quando a gente sabe que o nosso ensino é quase todo eurocêntrico. O fato mais importante para o meu pouco, porém existente, conhecimento, é que sempre fui muito nerd. Era nerd no tempo em que ser nerd não era hype, sabe? Minha adolescência foi regada de muita programação do canal Futura (porque além de nerd também era pobre, sem Discovery Channel por aqui) e um dos meus programas preferidos era o Passagem Para do Luis Nachbin, um jornalista que rodava o mundo trazendo histórias alternativas dos países que visitava. Posso facilmente creditar o Nachbin, seus programas  Passagem Para e Entre Fronteiras como peças chaves para a escolha da minha profissão e minha obsessão por conhecer o mundo. Mas, naquela época, o máximo que eu conseguia era passar as noites vivendo o mundo através da televisão.

“Talvez a raiva seja como um rio,
Talves destrua tudo ao seu redor, talvez esconda
Muitos esqueletos debaixo de sua superfície ondulante”

Quando fiquei sabendo que ia para República Dominicana por um ano (que acabou virando dois anos), um episódio de Passagem Para veio imediatamente à cabeça. Parecia que eu tinha assistido ontem, embora já tivesse se passado quase dez anos. Por conta disso eu sabia algumas coisas: 1) que o esporte favorito dos dominicanos é o beisebol; 2) que existe uma grande rivalidade baseada em preconceito com os imigrantes haitianos; 3) que Santo Domingo, a capital do país, foi a primeira cidade no caribe com sistema de metrô, e 4) que uma grande parte da população da dominicana imigra ou quer imigrar para os Estados Unidos.

Munida dessas informações eu parti para a ilha de hispaniola. Segundo a Wikipédia, a República Dominicana é o segundo maior país do Caribe (depois de Cuba). Cristóvão Colombo desembarcou na ilha em 1492 fazendo, na base de muita exploração e genocídio dos povos indígenas, o primeiro assentamento europeu permanente na América. Muita coisa mudou desde que Colombo chegou na ilha, mas quando eu cheguei lá em 2018 ainda consegui ver primeira catedral das Américas, a primeira Universidade, o primeiro centro urbano.

Mas o que isso tudo tem a ver com Agora Que Ele Se Foi Eu? Acho que nunca teria parado para ler o livro de Elizabeth Acevedo se não fosse minha proximidade com a nação caribenha. Acevedo nasceu nos Estados Unidos, mas é filha única de um casal de imigrantes dominicanos. Como muitos outros filhos de imigrantes, Acevedo foi criada em meio a dois mundos muito distintos — em casa, com a cultura dominica, e fora dela, na sociedade americana. Seu segundo romance — A Poeta X é o livro de estreia de Acevedo — é um young adult e embora ainda me considere uma jovem adulta, geralmente não chego muito perto dessa categoria na hora de escolher um livro para ler.

Talvez seja besteira minha, já que YA é cada dia mais popular entre as pessoas da minha faixa etária. Mas o que é considerado um livro young adult? Para ser um YA, o romance precisa ter com protagonistas entre 14 a 17 anos e é geralmente destinado ao público de 12 a 18 anos. Segundo a YALSA (The Young Adult Library Services Association), os young adults na verdade são jovens de 15 a 29 anos. Não existe consenso em relação às idades, mas sabemos que esse é uma categoria extremamente popular entre diversas idades. YA não é exatamente um gênero literário porque as obras possuem diferentes gêneros em si. Um livro young adult pode ser um romance, terror, fantasia, suspense, entre outros. A literatura YA é diversa e acessível e acho que é isso que a torna tão popular.

Como estive fora do mundo de YA por algum tempo (desde 2007, lá no lançamento do último Harry Potter) fiquei de fora de muitas mudanças importantes, principalmente na questão da visibilidade queer. Na última década, não houve só um aumento no número de livros YA queer sendo lançados, mas também houveram mudanças nos tipos de histórias que essas obras narram. Atualmente não temos apenas o realismo contemporâneo clássico da década passada, mas ficção científica e fantasia. Não apenas contos de amor não correspondido e sofrimento queer, mas comédias românticas ou histórias leves.

Acevedo escreve de maneira leve e a estrutura do livro pode até estranhar no inicio: parece muito com poemas, muito provavelmente pelo fato da autora ser também uma poetisa. Mas a narrativa é cativante e nem percebemos que estamos lendo poesia. A cultura dominicana e a cultura do imigrante dominicano enchem as páginas de Agora Que Ele Se Foi junto com temas como romance, sexualidade queer, luto, problemas familiares, desigualdade social e  preconceito. Temas universais coloridos com muita dominicanidade — que para nós brasileiros pode soar muito parecido com a nossa cultura.

” — Permita-se ficar de luto, querida.
Você não pode fugir do que te machuca,
ou, como um cão que fareja o medo,
o luto vai continuar te perseguindo para sempre.”

Agora Que Ele Se Foi tem como premissa a história real do acidente da queda do voo 587 que aconteceu apenas dois meses após o colapso do World Trade Center em 2001. O avião da American Airlines estava indo de Nova York para Santo Domingo, capital da República Dominicana, com 260 passageiros a bordo — com mais de 90% deles sendo de ascendência dominicana. Ninguém no avião sobreviveu, deixando muitos dominicanos de luto por familiares e amigos. No livro Agora Que Ele Se Foi , autora dominicana-americana aborda o acidente que a grande mídia optou por ignorar, mas que a comunidade dominicana nunca esqueceu.

O livro é narrador por duas meninas, Camino e Yahaira . Camino Rios mora em Sosúa, no norte da  República Dominicana, com sua tia. As duas são conhecidas de todo bairro já que a tia de Camino é uma curandeira respeitada. A jovem acompanha a tia nos afazeres espirituais e domésticos, mas Camino também tem seus sonhos. Ela é uma jovem ambiciosa e como muitos jovens dominicanos, sonha em estudar medicina nos Estados Unidos onde seu pai mora. Todo verão, Camino aguarda ansiosa pela visita do seu pai durante seu aniversário.

Em Nova York, cidade que abriga a maior comunidade de dominicanos fora da ilha, Yahaira Rios é uma ex-campeã de xadrez que gosta de passar os dias assistindo vídeos no Youtube e de observar a namorada cuidar de plantas. Desde que Yahaira nasceu, seu pai sempre passa o verão na República Dominicana a negócios. Com a queda do voo  587, os dois mundos que Rios pai manteve separado durante anos se encontram quando Yahaira e Camino descobrem que são irmãs. Pode parecer coisa de novela, mas um homem ter duas famílias é extremamente comum na sociedade dominicana. Não é necessariamente uma situação aceita, mas é comum.

Visitei Sosua, a cidade de uma das personagens e onde a história encontra seu clímax, em 2019. Fiquei hospedada em uma casa que ficava em uma colina, do lado de um castelo que também era um museu que além de ter peças de inspiração haitiana misturada com bastante visuais alienígenas (é complicado explicar!) também abrigava imigrantes haitianos. Só por essa informação já entendi que essa não seria uma experiência comum. Passei um final de semana olhando casas num vilarejo ao lado porque tinha acabado de aceitar uma vaga de emprego de professora por lá. Depois daquele final de semana em Sosúa, quase desisti do emprego.

Sosúa não é para amadores, especialmente se você for uma mulher negra, latina e solteira. O centro de Sosúa, banhado pelo oceano Atlantico, com praias lindas e resorts de luxo  é conhecido mundialmente pelo turismo sexual — boa parte desse, com menores de idade. Fora do centro, muita pobreza, muita desigualdade, falta da presença do Estado e a explicação de porque o turismo sexual é tão presente. Em Sosúa, conheci muitas Caminos e Yahairas.  Passei quase dois anos na República Dominicana, metade desse tempo bem perto de onde a história é narrada e, sinceramente, não consigo dizer se eu amo ou odeio aquele país. As desigualdades, o racismo e a violência contra as pessoas mais pobres deixaram um gosto amargo e assim que saí do país, bem no começo de uma pandemia mundial(!), realmente achava que não sentiria falta. Engano meu. Dentro de tanta tristeza também existe muita beleza. Conheci pessoas incríveis, vivi histórias mágicas. Assim como qualquer outro canto do mundo, o bem e o mal convivem no dia a dia. Talvez por ser o país uma ilha tão pequena é tudo mais evidente. Talvez os olhos de um imigrante sejam diferentes.

No livro Acevedo expõe toda essa ambiguidade. A  ilha é um misto de experiências supernaturais, de tias que curam, de bairros que te acolhem. Mas também é onde os homens traem e tiram proveito de pessoas inocentes, de um Estado que oprime os mais vulneráveis e que exclui quem lutou para construir a nação. Não parece com um certo país da América Latina? Mesmo que você  não tenha uma conexão direta com a ilha caribenha, tenho certeza que você vai encontrar semelhanças com as histórias de Camino e Yahaira. Acevedo expõe a complexidade da sociedade dominicana e te deixa por vezes  desconfortável. Mas o mais importante é que essa é uma narrativa de esperança e de força feminina.  Agora Que Ele Se Foi me transportou de volta para a ilha que eu aprendi a amar, onde eu deixei tantas Caminos e Yahairas para trás na esperança que elas também possam ser donas de suas narrativas.


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