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Os Brasis possíveis em Medida Provisória, de Lázaro Ramos

Mais de sete anos após a concepção da ideia, Medida Provisória, estreia do ator Lázaro Ramos como diretor, chegou aos cinemas brasileiros em abril após diversas exibições em festivais internacionais, como o SXSW. Com roteiro inspirado na peça Namíbia, não! do dramaturgo Aldri Anunciação, Medida Provisória imagina um Brasil distópico, em um futuro indeterminado, mas que nos soa pouco distante.

Logo em seu início, o filme reforça a falácia da suposta democracia racial com a iniciativa do governo de reparação pelo nosso passado escravocrata. A princípio, a ação visava oferecer uma indenização, o que provoca uma recepção negativa no Congresso Nacional. A solução mais adequada, segundo o corpo legislativo, seria então mandar negros e pardos para a África, isto é, “devolvê-los” para o lugar de onde nunca deveriam ter saído.

Medida Provisória apresenta o horror da política racista com a gravidade que o tema exige, mas sem carregar em cenas de violência e sofrimento, tática comumente utilizada para angariar a compreensão do público branco quanto ao pesadelo que é o racismo. Ao contrário, o filme inicia como uma comédia, na qual acompanhamos a reação de incredulidade a respeito da medida do governo do trio de protagonistas: a médica Capitú (Taís Araújo), o advogado Antonio (Alfred Enoch) e o jornalista André (Seu Jorge).

A comédia, gênero de grande sucesso no Brasil — como a trilogia campeã de bilheteria Minha Mãe é um Peça pode provar — possui grande força no filme pois consegue atrair um público mais amplo para as conversas que Medida Provisória deseja debater e que nosso país insiste em jogar para debaixo do tapete. Também tem função narrativa por articular-se com o descrédito que os protagonistas têm quanto a iniciativa do governo referente às pessoas de melanina acentuada, como são denominados os negros e pardos.

Tudo parece absurdo e fantasioso até que se torna realidade. “Como é que a gente não viu isso? Como é que a gente deixou chegar nesse ponto? Como é que a gente riu disso?”, questiona André. Mas o problema não surgiu de repente. Sempre esteve entre nós. Há os que o ignoram para manter as coisas como estão e os que fecham os olhos por querer acreditar que o pior nunca irá chegar.

O filme avança e se transforma, adicionando à mistura thriller e drama, numa narrativa ágil e que é um alerta para o Brasil de hoje. Medida Provisória se eleva devido a potência do seu discurso e não se envergonha em ser panfletário. O que poderia ser um deslize para alguns, torna-se necessário em um tempo em que questões como a gravidade e existência do racismo são questionados, inclusive, por autoridades. Porém, a obra não se propõe a criticar esse ou aquele governo, mas suscitar discussões sobre nosso país enquanto nação que sempre escondeu seus erros, destinando-nos a nunca os reconhecer e a sempre os repetir.

Na ânsia de tratar de temas complexos que se desdobram das questões de raça e identidade, como colorismo e relacionamentos inter-raciais, o filme, em seus pouco mais de 1h40min, não dá conta de se aprofundar e acaba riscando apenas a superfície até mesmo do seu próprio universo. O público é lançado para dentro desse Brasil sem muito contexto, e quando novos personagens e cenários são inseridos, sobretudo o Afrobunker, fica o desejo de querer saber mais e de que esse futuro distópico daria uma excelente minissérie, na qual a cola que une alguns segmentos poderia funcionar com mais força.

Ainda assim, Medida Provisória é um filme que vale a pena ver e rever. Com incríveis atuações, uma trilha sonora que dialoga perfeitamente com a obra — com destaque para Elza Soares —, diversas participações especiais e referências à figuras negras brasileiras de imensa importância, a obra de estreia de Lázaro Ramos como diretor merece destaque na história do cinema nacional. Além de qualidades técnicas, como ótima fotografia e soluções criativas que contornam limitações orçamentárias, a obra é, até o momento, o filme com mais pessoas negras a frente e atrás das câmeras e por trazer negros como protagonistas de um cinema pop que, não somente levanta discussões, mas também entretém.

Em sua ousadia política, surpreendentemente engraçada, Medida Provisória conta com um grande mérito, para além dos elogios já feitos. Apesar de lidar com um tema tão doloroso e violento, o filme é um grito de esperança, não permitindo que a audiência se deixe abater por uma suposta não solução dos problemas do Brasil. Estamos, há décadas, em estado letárgico devido a uma crença de que estamos fadados a dor, mas Medida Provisória nos quer acordar e dizer que uma mudança e um novo Brasil são possíveis.


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