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Como Matei Minha Querida Família: por que é tão bom ver mulheres se comportando mal?

No posfácio de A Pianista, romance da austríaca Elfriede Jelinek, existe um trecho no qual a autora reflete sobre a literatura feminina. Nele, Jelinek afirma que o fato de as mulheres não usarem uma linguagem mais agressiva nas suas obras é algo que a deixa admirada. Para ela, a educação recebida desde a infância, sempre em ambientes culturalmente masculinos, deveria ser suficiente para que a violência se fizesse presente nas narrativas de um número mais expressivo de autoras. Então, essa percepção é algo que a impulsiona a criar textos incômodos e que desafiam os seus leitores a continuar encarando as páginas.

Curiosamente, o que encanta em A Pianista é aquilo que causa repulsa: não existe redenção para nada que é humano. Elfriede Jelinek escreve Erika Kohut, a protagonista, de uma maneira impiedosa. Ela tem algo de furioso e frágil. Essa dualidade está presente na forma como Erika vive e também na sua expressão do desejo, seja ele sexual ou não, o que constitui um tipo de literatura raro porque não está comprometido com a beleza ou com a criação de um mundo que seja, em alguma medida, melhor do que aquele em que vivemos.

Guardadas as devidas proporções, de alguns anos para cá várias autoras, em especial no horror, têm adotado uma linguagem mais impetuosa. Cada vez mais, a raiva se faz presente na sua literatura e serve para impulsionar as personagens a buscar rumos diferentes. Ao mesmo tempo, esses “sentimentos negativos” parecem segurar um espelho diante do leitor: ao olhar para aquilo que enfurece as protagonistas dessas obras, ele olha também para si mesmo e para o mundo em que vive. Esse mundo que, como acertadamente disse Jelinek, é culturalmente masculino. Um mundo que, por não ter sido estruturado para acomodar mulheres que sejam capazes de sentir mais do que amor e compaixão, se surpreende quando recebe uma reação agressiva de pessoas constantemente empurradas para a margem.

De Gillian Flynn a Maria Fernanda Ampuero, as autoras que usam o horror como veículo para as suas ideias não têm medo da ironia ou de evocar imagens sujas — em um sentido dicionarizado da palavra. Na contracapa de Rinha de Galos, o primeiro livro de contos de Ampuero, é possível encontrar o seguinte trecho:

“Certa noite, a barriga de um galo estourou enquanto eu o carregava nos braços como se fosse uma boneca, e descobri que aqueles homens tão machos que gritavam e atiçavam para que um galo rasgasse o outro de cima a baixo tinham nojo da merda, do sangue e das vísceras do galo morto. Assim, eu passava essa mistura nas mãos, nos joelhos e no rosto, e eles paravam de me importunar com beijos e outras idiotices.

Diziam ao meu pai:

— A sua filha é um monstro”.

Essa passagem impacta pelo que tem de reconhecível para qualquer mulher que existe em um espaço no qual precisa encontrar formas de se manter afastada das expectativas colocadas sobre o seu corpo. Se despir de beleza para se cobrir de sangue e vísceras, embora pareça um caminho extremo, na verdade, é algo que nós fazemos diariamente para afastar esse olhar indesejado, perigoso e essencialmente masculino.

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Indo em uma direção diferente de Maria Fernanda Ampuero, Gillian Flynn brinca com a ideia de que existem mulheres que aprenderam a manipular essas expectativas a seu favor no clássico monólogo da cool girl em Garota Exemplar. Esse trecho serve para revelar coisas importantes a respeito de como algumas mulheres se moldam ao olhar masculino em busca de validação e afeto. É possível perceber a exaustão gerada pela invenção dessa persona, definida por Flynn como “uma mulher que assistiu a muitos filmes escritos por homens socialmente desajeitados que gostariam de acreditar que este tipo de mulher existe e poderia beijá-los”. Afinal, as cool girls só são o ideal masculino porque nunca reclamam e “apenas sorriem de maneira amorosa e envergonhada e deixam os seus homens fazerem o que quiserem”. Ou seja, elas não aprenderam a dobrar as circunstâncias. Elas apenas pegam um caminho mais longo em uma estrada que leva ao mesmo destino: a raiva.

A estreia de Bella Mackie na ficção é uma herdeira direta de todas essas questões. Em Como Matei Minha Querida Família, lançado no Brasil em 2023, a autora narra a história de vingança de Grace Bernard, uma jovem na casa dos 20 anos que decide assassinar a sua família paterna. Criada por uma mãe solteira e sobrecarregada, Grace passou os primeiros anos da sua vida afastada de qualquer privilégio e vendo Marie definhar enquanto trabalhava em subempregos para garantir alguma dignidade às duas. Na adolescência, ao descobrir que o seu pai é um milionário, ela é consumida pela raiva e começa a planejar a morte de Simon Artemis. Mas, antes de chegar àquele que seria o seu objetivo, a personagem quer tirar do pai todas as pessoas que, supostamente, são importantes para ele.

A trajetória de Grace é narrada em primeira pessoa e sempre com um tom ferino. Inteligente e perspicaz, ela é uma mulher que está quebrada em vários pontos, mas não deixa de ser implacável e determinada, uma escolha inteligente de Bella Mackie, que se inspirou em Cassandra Thomas, de Bela Vingança (Promising Young Woman, 2021), e Villanelle, de Killing Eve, para escrever a sua protagonista. Grace Bernard é, na essência, uma anti-heroína. As suas falhas estão todas expostas desde o primeiro capítulo de Como Matei Minha Querida Família e conforme a obra avança, nós convivemos com outras ainda mais profundas, que causam estranhamento em um primeiro momento.

Ao mesmo tempo, todas nós temos pensamentos pouco generosos no dia a dia. A diferença é que eles são interrompidos pela nossa certeza de que tais ideias não deveriam estar ali. Afinal, elas são injustas. Algumas vezes horríveis. Então, afastá-las e questionar a sua razão de ser parece uma via mais adequada, sensata até. Grace, por outro lado, sustenta esses pensamentos e não se sente culpada por tê-los. Ela é uma personagem que não está preocupada em ganhar a simpatia do leitor, mas que consegue despertá-la porque é impossível não se reconhecer em toda a raiva represada no seu interior. Mulheres passam tanto tempo tentando ser compreensivas, atenciosas e cuidadosas que esbarrar com uma protagonista que não é nenhuma dessas coisas ressoa em um lugar bastante íntimo e escuro. Nós gostamos de ver Grace sendo terrível porque não temos permissão para ser.

Dessa forma, a protagonista acaba conseguindo a nossa torcida mesmo olhando todas as pessoas que fazem parte da sua vida de cima. Nós queremos que ela vença porque, enquanto Grace conta todos os passos necessários para a sua vingança, sempre costurando-os a episódios da sua infância e adolescência, ela acaba revelando muito do mundo em que vivemos. Especialmente sobre o que é ser uma mulher que habita esse ambiente inóspito.

Em uma das entrevistas de divulgação do livro, Bella Mackie chegou a declarar que quando começou a escrever não sabia que essa seria uma história alimentada pela raiva que ela mesma direcionava para os homens. Porém, isso acabou fazendo sentido porque a trajetória de Grace é marcada por todo o tipo de mau comportamento masculino: bullying, assédio sexual, traições, abandonos… E todos eles simplesmente ficam impunes. Assim, Como Matei Minha Querida Família é também a respeito de como nós vivemos em um sistema que continua nos manipulando para permitir que os homens saiam na frente — daí o desfecho amargo, que parece dizer que não importa as distâncias que uma mulher esteja disposta a percorrer para conquistar os seus objetivos, ela sempre vai encontrar pelo caminho um cara disposto a usá-la como escada e todo o seu trabalho terá sido em vão.

Apesar do pessimismo (ou excesso de realismo) de algumas passagens da obra, Como Matei Minha Querida Família é um livro que tem no humor um aliado poderoso. Para além das análises ácidas e certeiras da protagonista, Bella Mackie fez uma boa escolha ao transformar todas as sequências de morte em uma piada de mau gosto. A autora chegou a declarar que ficou estranhamente obcecada por assassinatos quando tinha 8 anos de idade e recebeu de presente de aniversário a assinatura de uma revista de true crime, então conhecia bem o território em que estava adentrando. Apesar disso, Mackie afirmou que não queria escrever um torture porn ou um livro que fizesse os seus leitores se sentirem “sujos” ao terminar. Assim, o caminho que encontrou foi transformar os assassinatos de Grace em algo que à primeira vista parece ridículo demais para acontecer mas, depois, acaba soando plausível. Isso acontece porque a personagem é alguém que está matando pela primeira vez e não tem a menor ideia dos aspectos práticos envolvidos em tirar a vida de uma pessoa, muito menos do que é preciso para fazer isso de um jeito sangrento e físico.

Nesse sentido, a morte que mais se destaca é a de Bryony Artemis. Depois de passar algum tempo observando o comportamento da meia-irmã em restaurantes e baladas, bem como o seu trabalho como influenciadora, Grace decide enviar a ela um kit de produtos de beleza fabricado especialmente para atacar a sua alergia severa a pêssegos, algo que Bryony alardeava nas redes sociais como se fosse um grande desafio no seu dia a dia. Não sobra muito para o leitor depois de ler essa passagem a não ser rir, porque a vaidade e o descuido são os verdadeiros assassinos. Além desse trecho, a morte de Janine Artemis, a esposa de Simon, também é hilária por deixar claro o excesso de confiança que depositamos diariamente na tecnologia, especialmente no que diz respeito à segurança.

As passagens que relatam o fim de Janine também servem para expor aspectos relativos ao sistema de classe social da Inglaterra, algo que vinha sendo trabalhado por Bella Mackie através da família Latimer, que adota Grace depois da morte de Marie. Os Latimer pertencem à classe média alta e como muitas pessoas do tipo, parecem sentir vergonha dos seus privilégios. Entretanto, eles usufruem de tudo o que o dinheiro pode comprar, de comidas orgânicas a vinhos caros. Porque a contradição nunca é demais para o burguês “socialmente engajado”, Nicole, a matriarca, faz questão que os seus filhos frequentem uma escola pública e é exatamente neste ambiente que Grace conhece Jimmy, o seu único amigo e passaporte para dentro da rotina dos Latimer. A relação entre os dois é o respiro de normalidade que a personagem tem em toda a sua vida e o único afeto que ela faz questão de cultivar. Ironicamente, é também esse relacionamento que leva Grace a ser presa por um crime que não cometeu e o depoimento de Jimmy é fundamental para que isso aconteça. Esse episódio funciona como prova de que Bella Mackie é tão implacável quanto a sua protagonista e qualquer coisa pode acontecer em Como Matei Minha Querida Família. O caráter imprevisível da obra mantém o leitor atento e cada vez mais interessado, ainda que o verbo no passado do título deixe claro que Grace conseguiu concretizar o seu projeto.

Entre tantas obras de horror lançadas nos últimos anos, inclusive por mulheres, Como Matei Minha Querida Família consegue se destacar pela despretensão. Ao mesmo tempo em que o livro não quer se firmar como uma análise brilhante da sociedade, ele aponta o dedo para a hipocrisia de vários segmentos e, por vezes, faz com que o leitor seja obrigado a se reconhecer nas páginas. Entretanto, o maior mérito de Bella Mackie é construir uma anti-heroína completamente sem filtros e sem o menor medo de deixar todos os seus defeitos expostos. Esqueça luz e sombra e nem pense sobre arrependimentos. Não há espaço para nada disso no livro. Grace é uma personagem que funciona para qualquer mulher que tenha contato com Como Matei Minha Querida Família porque dá voz àquilo que nós temos vontade de gritar em diversas situações, ainda que a gente não consiga admitir que quer. Mas, lá no fundo, naquele cantinho remoto da mente, com certeza nós adoraríamos nos comportar tão mal quanto ela por algumas horas.


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