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Ursinho Pooh: Sangue e Mel se recusa a assumir a sua veia trash e é risível pelos motivos errados

O trash é um subgênero conhecido pelo seu caráter absurdo, exagerado e que flerta com o humor involuntário. Associado a um cinema de baixo orçamento, esse estilo foi responsável pelo surgimento de nomes atualmente consolidados e sempre foi um terreno fértil para estreantes mostrarem as suas ideias. Peter Jackson e Sam Raimi são exemplos de diretores que começaram as suas carreiras no trash e conseguiram marcar o seu nome na história do horror com, respectivamente, Fome Animal (Braindead, 1992) e Uma Noite Alucinante: A Morte do Demônio (The Evil Dead, 1981), ambos feitos durante o boom do home video.

Esse crescimento do VHS nas décadas de 1980 e 1990 também abriu as portas para produtoras menores, como a Troma Entertainment. Lloyd Kaufman e Michael Herz, os fundadores, começaram o projeto com o objetivo de reunir profissionais do audiovisual com pouca experiência para produzir e distribuir longas independentes. Se valendo do contexto favorável ao lançamento em mídia física, a Troma conseguiu se destacar gradualmente e em 1984 lançou o seu maior sucesso: Vingador Tóxico (The Toxic Avenger, 1984), um filme que misturava super-heróis com mortes absurdas e tinha a despretensão como marca registrada. Dirigido por Kaufman e Herz, ele conquistou o status de cult ao longo dos anos e se tornou um sinônimo de tudo o que a produtora representa até hoje para o cinema underground.

Ursinho Pooh: Sangue e Mel

O trabalho da Troma é tão significativo que empresas como a The Asylum e o Canal Syfy tentam se valer da ideia que impulsionou Lloyd Kauffman e Michael Herz. Assim, ambas produzem longa-metragens trashs diretamente para a TV e todos eles têm como ponto de partida uma ideia que parece ridícula demais para funcionar. Entretanto, para quem acompanha e admira o subgênero, algo parece fora do lugar. Isso porque os títulos da The Asylum e do Syfy tentam reproduzir a “precariedade estética” do “horror de home video“, mas fazem isso de um modo pouco genuíno.

A franquia Sharknado, co-produção mais popular da “dupla”, é um exemplo claro. Quando somado, o orçamento dos seus seis capítulos é, em média, 18 milhões, o que pode parecer pouco quando comparado às cifras hollywoodianas, mas certamente extrapola muito os 3,5 milhões gastos pela Troma na produção dos quatro títulos de Vingador Tóxico. Mesmo se considerarmos a distância temporal e adaptar os valores para a realidade atual, a franquia da Troma ainda seria 10 milhões mais barata. Essa distância orçamentária serve para deixar claro que, na verdade, o “mal feito” em Sharknado é algo cuidadosamente pensado. Afinal, como disse a Dolly Parton, custa muito dinheiro parecer tão barato.

Além dos aspectos financeiros, a tentativa de provocar o riso está presente em cada detalhe de Sharknado, o que a torna inorgânica e bem distante das raízes do trash. Outro ponto que deve ser mencionado é que muitas vezes a The Asylum e o Syfy pecam pelo excesso de autoconsciência. Quando usada de forma inteligente, essa característica serve para inserir o público na piada e denuncia que a produção não se leva a sério. Porém, quando a autoconsciência surge como uma cobrança, quase como se alguém estivesse dizendo “eu sou engraçado, ria!”, o efeito é desastroso.

Ursinho Pooh: Sangue e Mel

Apesar de todas as críticas, nesse ponto, é preciso ser advogada do diabo. Isso porque tanto a The Asylum quanto o Syfy pelo menos manifestam um desejo de que o público se divirta com as suas propostas esdrúxulas. Além disso, não dá para dizer que as suas tentativas são desonestas porque, no fim, qualquer um que tenha um contato mais estreito com o horror sabe o que esperar de ambas as empresas, para o bem e para o mal. E isso é mais do que se pode dizer a respeito de algumas produções recentes, como Ursinho Pooh: Sangue e Mel (Winnie The Pooh: Blood and Honey, 2023), o tipo de filme que só pode ser descrito como lamentável por usar o trash para se vender, mas entregar algo que vai na contramão do subgênero.

Beira o ofensivo que o longa de Rhys Frake-Waterfield queira se levar a sério enquanto fala sobre animais falantes transformados em assassinos sangrentos pela solidão. Essa tentativa de drama fica clara desde a animação que abre a projeção. Porém, a sensação de seriedade é potencializada pela primeira perseguição do longa. Nela, vemos uma jovem correndo por uma floresta enquanto tenta escapar de uma versão enfurecida de Pooh (Craig David Dowsett). O diretor opta por focar a câmera nas pernas dos personagens, como se estivesse tentando dissimular o fato de que nós estamos assistindo a um homem com uma máscara de látex correndo atrás de uma atriz pouco convincente, uma escolha que gradualmente se torna constrangedora. Infelizmente, a cena é eficaz em determinar o tom do restante do filme.

As demais sequências de morte seguem um caminho similar. Por vezes, o sangue parece inserido na pós-produção, como se as quantidades disponíveis no set não fossem suficientes para alcançar o efeito desejado e alguém tivesse sugerido que o público não perceberia a manipulação das imagens. Essa decisão dá a Sangue e Mel o ar de “coisa barata” que a direção se recusa a assumir. O tempo todo existe uma tentativa de negar o que está diante dos nossos olhos: esse é um longa de baixo orçamento feito por uma pessoa sem experiência que provavelmente estava mais preocupada em se provar competente do que em entender o material que tinha em mãos. Inclusive, muito do que faz com que o filme dê completamente errado vem dessa incompreensão.

Pooh e os seus amigos foram criados com base nos brinquedos do filho de Alan Alexander Maine, autor responsável pelas primeiras publicações com os personagens em 1925. Portanto, independente de se tratar de um longa de horror, eles deveriam conservar a sua característica lúdica em alguma medida, fosse através de uma caracterização mais puxada para o fofo do que para o macabro ou da maneira de se comunicar, que por si só é uma característica marcante do urso amarelo desde que ele ocupava somente as páginas de livros. Inclusive, o próprio roteiro de Sangue e Mel chega a fazer referência ao fato de que Christopher Robin (Nikolai Leon) mantinha diálogos com os animais da floresta. Então, ainda que Rhys Frake-Waterfield pareça comprometido com a ideia de que Pooh e Leitão (Chris Cordell) retornaram às suas formas “primitivas” e por isso pararam de falar, abrir mão do que solidificou estes personagens no imaginário popular é desistir do que chamou a atenção do público desde que o trailer do filme apareceu na internet.

Ursinho Pooh: Sangue e Mel

Não faz o menor sentido transformar Pooh em uma espécie de Michael Myers. Nem se escolhêssemos comprar a proposta do diretor e falar a respeito de coisas como motivação. Isso porque um assassino com um motivo está sempre ansioso para expor as suas razões. Não por acaso já assistimos diversas vezes ao clássico monólogo no qual ele explica como elaborou o seu plano. Esse tipo de cena é comum especialmente no slasher, um subgênero do qual Frake-Waterfield parece interessado em aproximar Sangue e Mel, mas não parece ter conhecimento suficiente a respeito das suas convenções para que o diálogo seja efetivo. Não se faz um slasher somente com armas brancas e atrizes de biquíni, especialmente em um contexto no qual cada vez mais essa vertente do horror se esforça para criar outros códigos e se modernizar.

Assim, todas as tentativas de esquiva do trash acabam voltando para o mesmo lugar: Ursinho Pooh é um filme que poderia se beneficiar do mero reconhecimento de que ninguém conseguiria levar a sua premissa a sério e, portanto, ela seria melhor aproveitada em um subgênero que essencialmente irreverente. Isso poderia servir para justificar até mesmo o fato de que a produção não podia fazer referência à versão de Pooh e Leitão com a qual o público está mais acostumado já que ela surgiu em 1932 e o que está em domínio público é a versão de 1925, na qual a blusa vermelha do urso ainda não existia e os seus traços eram ligeiramente diferentes, mais próximos de uma pelúcia.

De certa forma, soa preconceituoso preferir apostar em um filme sério com altas chances de dar errado ao invés de simplesmente abraçar o absurdo da ideia de ver Pooh com sede de sangue. Ao mesmo tempo, vivemos em tempos de “horror elevado” e o próprio contexto parece ditar que somente um tipo de produção tem valor estético e artístico. Porém, vários diretores já se rebelaram contra essa ideia, inclusive entre os grandes do gênero — basta pensar no que James Wan fez em Maligno (Malignant, 2021). E é aí que está a beleza do horror: ele existe para desafiar e abrir novas possibilidades para contar histórias. Então, é impossível pensar em uma defesa para alguém que prefere fazer um filme risível por todos os motivos errados ao invés de se divertir com uma premissa que é visivelmente caricata e eventualmente acharia o seu caminho para o público certo.