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Stumptown: Cobie Smulders em jaquetas legais e muito Pearl Jam

Sempre fui fã de seriados policiais. Não por causa dos policiais em si, ou tanto dos mistérios que eles se propunham a resolver, mas simplesmente porque a dinâmica entre alguns protagonistas era tão leve e divertida de assistir que valia a pena aguentar 22 episódios por temporada. Foi o que aconteceu com Arquivo X, Castle e até mesmo Bones, séries que dentro das suas limitações consideram se sobressair dentro do gênero. Mas a verdade é que com a chegada da era do Peak TV, esses tipos de produções foram cada vez mais deixadas para escanteio, e a necessidade de fazer obras com menos capítulos e com narrativas mais serializadas dominou o mercado. O que, de certa forma, foi muito bom. Essa fase rendeu preciosidades na broadcasting TV (a TV aberta norte-americana) como The Good Place, Hannibal ou até mesmo a mais recente Zoey’s Extraordinary Playlist. Mesmo assim, ficou um buraco no gênero do drama policial, que durante anos foi preenchido apenas com shows que já estavam há anos no ar — ou simplesmente não eram interessante o suficiente para serem mencionados. Stumptown, estrelada por Cobie Smulders, veio para mudar um pouco o status quo

A série é ambientada em Portland, nos EUA, e é baseada nos quadrinhos homônimos criados por Greg Rucka, Matthew Southworth e Justin Greenwood, que acompanha Dex Parios (Smulders). Complicada, difícil e uma mulher completamente única, a história aborda sua trajetória em dois momentos diferentes: quando ela era uma veterana do exército norte-americano, e quando volta para viver a vida normal ao lado do seu irmão Ansel (vivido por Cole Sibus, que tem Síndrome de Down). No ponto de partida da trama, Dex está perdida e sem direção nenhuma, mas por causa da sua habilidade como ex-militar, ela consegue trabalhos como private investigator (P.I ou detetive particular), resolvendo casos de pequeno porte na cidade onde vive. Sua maior motivação, no entanto, é tentar achar uma espécie de redenção pela morte de Benny (Lee McHale), seu namorado da adolescência que, mesmo casado e com um filho, a seguiu até a guerra para tentar reconquistá-la.

Quanto mais começa a explorar sua profissão recém descoberta e finalmente encontra uma maneira de viver sua em Portland, a protagonista conta com a ajuda de Grey (Jake Johnson), um amigo de longa data que é um ex-convicto e agora é dono de um bar chamado Bad Alibi; e do policial Miles (Michael Ealy), com quem ela desenvolve um pequeno caso ao longo de alguns episódios.

Stumptown

No primeiro momento, Stumptown parece ser exatamente como todas as outras séries e dramas policiais que já passaram pela TV aberta, misturando pequenas doses da vida pessoal da protagonista em episódios que são mais voltados para os casos que ela tem que resolver do que qualquer outra coisa. Afinal, a fórmula para uma produção como essa dar certo é relativamente simples, com personagens atraentes o suficientes e situações familiares capazes de proporcionar conforto para o telespectador. Mas, em uma reviravolta surpreendente, esse não é nem um pouco o caso. Seja por causa da força de Dex e a forma como ela é retratada na trama, ou porque tudo na narrativa parece ser uma forma de desenvolver os personagens e a dinâmica entre eles, a obra se torna algo que não só é entretenimento puro e divertido, como também subverte um pouco o que os roteiristas, diretores e até mesmo showrunners estão acostumados a explorar dentro do gênero.

Atenção: este texto contém spoilers!

Depois de participar de How I Met Your Mother como a jornalista independente e resiliente Robin Scherbatsky ou conseguir um papel na maior franquia do mundo como a agente da SHIELD Maria Hill na Marvel, Smulders se encaixa perfeitamente no seu papel como Dex. E quando todos os pontos positivos são colocados na balança, sua atuação com certeza é o fator que mais se destaca, algo que fica claro desde a sua primeira cena, onde ela aparece lutando com dois caras completamente aleatórios dentro do seu carro velho enquanto “Sweet Caroline” do Neil Diamond toca no rádio quebrado. Isso dita muito a essência da série, que se apoia tanto na sua personalidade para funcionar, e tanto o carro velho quanto o gosto musical (que tem bastante rock clássico e Pearl Jam) e as jaquetas cheias de estilo são partes fundamentais da mistura.

Mas Dex é mais do que apenas aparenta na superfície, sendo que a série escolheu mostrar esse aspecto destrinchado-o em partes igualmente importantes. O primeiro deles é, claro, baseado completamente na sua técnica como P.I. Apesar de ter passado uma grande parte do começo da sua vida adulta como veterana no exército, e ter adquirido experiência na parte de inteligência, sua técnica para resolver os casos que lhe são apresentados não são completamente ortodoxas ou comuns. Para começar, ela atende todos os seus clientes no bar de Grey, enquanto tenta se convencer veementemente que só faz o que faz pelo dinheiro. No final das contas, no entanto, ela sempre acaba priorizando seus clientes e os ajudando — independente das consequências pessoais com as quais ela tem que arcar. Essa face extremamente empática da protagonista é perpetuada principalmente por causa da sua relação com Ansel. Ambos foram abandonados pelos pais quando ainda eram adolescentes e, consequentemente, Dex teve que encarar todas as despesas (emocionais e físicas), cuidando de uma criança com Síndrome de Down. Mas ao invés de isso ser algo que a atrapalha, Ansel é uma espécie de gancho direto entre Dex e a realidade, e grande parte do que a transforma em uma protagonista falha e incrível, uma mistura tão comum em seres humanos.

Stumptown

Grande parte de Stumptown se apoia nos sentimentos de luto e culpa que Dex sente por Benny e o mistério das circunstâncias da sua morte — que aconteceu no meio de uma missão em que os dois estavam envolvidos. Um pouco antes dele sair na ocasião em que acabou morto, os dois tiveram uma discussão profunda e complicada, que fez com que ela carregasse anos de remorso. Algo que refletiu, inclusive, na relação da protagonista com a família de Benny. Eles moram em uma aldeia indígena que fica afastada da cidade, sendo que grande parte da dinâmica entre os dois vinha do fato de Dex não tinha descendência indígena e compreendia bem pouco sobre as implicâncias culturais do relacionamento do dois. As complicações e o modo de vida que eles levam são abordados de forma superficial pelo roteiro, mas o que vale mesmo acompanhar é a problemática entre Dex e sua ex-sogra, Sue Lynn (Tantoo Cardinal).

Assim como em outras séries do gênero, nada é exatamente o que parece e Dex logo descobre uma pequena conspiração que levou ao desaparecimento de Benny. No episódio “All Hands on Dex”, o último da primeira temporada, ela expõe que na verdade ele acabou ficando preso em um esquema de corrupção dentro do próprio exército. Mas ao invés da produção simplesmente arrastar o mistério por outras temporadas — ou até mesmo tentar trazer o personagem de volta dos “mortos” —, aqui a protagonista finalmente encontra um pouco de paz e resolução para o trauma, fazendo justiça pela sua vida e encontrando seu assassino. Era muito mais fácil continuarem a explorar o lado machucado dela mas, ao avançar essa parte da trama, Dex é obrigada a organizar sua mente e arranjar uma forma de seguir com sua vida. Ou seja, o roteiro avança o plot, ao mesmo tempo que também modifica todas as relações que ela tem com todos ao seu redor. Sua falta de aptidão e os sentimentos não explorados em relação a Benny afetou sua dinâmica com Miles (que foi amaldiçoada antes mesmo de se desenvolver), sua amizade com Grey e até mesmo a relação com Ansel. Até mesmo sua dinâmica com Sue Lynn parece seguir em frente, sendo sua ex-sogra um ponto importante na sua redenção: ao encontrarem um meio termo, uma acha conforto nos sentimentos que elas nutriam por Benny, antes que fossem muito diferentes entre si.

Em séries policiais como Criminal Minds — ou até mesmo como Castle ou Bones —, era comum ter episódios vazios com poucos dilemas que levavam os personagens para um lugar fora do comum, ou que simplesmente avançassem sua trajetória de maneira geral. Hoje, é fundamental em uma série de TV que o personagem venha antes da trama, e não o contrário. Felizmente Stumptown entende isso muito bem. Não só isso, como também faz desse o seu maior trunfo, mostrando casos que afetam diretamente Dex e a maneira como ela percebe o mundo ao seu redor e principalmente seus sentimentos sempre tão complexos.

É claro que a série não fica livre de pequenos vícios comuns em produções como essa. O triângulo amoroso entre Grey, Dex e Miles não poderia ser mais datado ou maçante. Existe, inclusive, um episódio onde um dos interesses amorosos de Grey literalmente coloca Dex em uma situação ridícula para tentar fazer ciúmes no seu melhor amigo — algo completamente desnecessário. A responsável por tal ato é Liz (Monica Barbaro). Na ocasião, ela arranja uma desculpa para acabar na cama com Dex, que é bissexual, e fingir que as duas dormiram juntas. Seu objetivo é mostrar para o seu parceiro que, enquanto sua melhor amiga estiver tão presente em sua vida, não existe espaço para outra mulher na dinâmica. Isso é patético não só porque reforça o estereótipo de que homens e mulheres não podem ser amigos para além do consequente interesse amoroso, como também é uma trama machista e que poderia ter saído de uma produção novelesca da pior qualidade. A boa notícia é que essa narrativa não se estende por muitos capítulos e o deslize parece absurdo quando se compara com o resto do seriado.

Como mencionado anteriormente, a complexidade de Dex pode ser explorada em diversos níveis. Não só na forma como ela é retratada como P.I ou ex-militar, mas também na forma como sua sexualidade é abordada. Dex é, claro, uma mulher bissexual. Muitas vezes em obras de audiovisual, quer dizer apenas uma coisa: queer baiting. Essa isca consiste basicamente em falar que tal protagonista é gay, lésbica ou bi e simplesmente não desenvolver esse lado da história. Ou simplesmente colocar relações e insinuar uma possibilidade, mas nunca dar continuidade. Isso não é nem de perto o que acontece aqui, e Dex ganha diversos interesses amorosos que saem da superfície, e se desenvolvem com profundidade e ternura.

Dex é, acima de tudo, uma mulher com questões sérias de abandono. Antes pelos pais, que a deixaram cuidando de Ansel e desapareceram, depois por Benny e finalmente por ela mesma. Existe algo na forma como ela lida com seus relacionamentos (sempre se auto sabotando) que reforça marcas profundas na forma como as pessoas ao seu redor agiram com ela ou como essas situações a levaram até o lugar que se encontra hoje. A primeira temporada é, basicamente, sobre uma jornada de descoberta pessoal onde tenta dar vários passos para trás, entender seu passado e arranjar uma forma de tentar superar. Ela faz isso, claro, enfiando os pés pelas mãos mais vezes do que é possível contar, estragando seus relacionamentos amorosos ou detonando todos os móveis da sua casa durante um ataque de raiva profundo. Apesar de serem assuntos sérios, a atuação de Smulders é tão espontânea que a personalidade cativante (e por vezes problemática) de Dex faz com que seja fácil acompanhar os episódios e ainda deixa com um gostinho agridoce de querer ver mais sobre o mundo criado na série.

Mesmo que a segunda temporada já tivesse sido confirmada pela ABC, Stumptown acabou sendo cancelada devido a epidemia do coronavírus e não terá novos episódios — uma decisão que não é apenas bizarra, mas que também desperdiça a possibilidade de fazer com que a produção se tornasse maior, explorando melhor todas as relações de Dex (inclusive a possibilidade de um romance friends to lovers entre ela e Grey).

Stumptown tinha o potencial para durar vários anos e, mais do que isso, criar uma protagonista profunda e única, com um senso coletivo diferente quando se trata de sua profissão e uma jornada muito divertida de acompanhar. Assim como Wynonna Earp em sua própria série, Dex é falha, complicada e até um pouco solitária. Mas também é humana, alguém que suga todas as atenções para si em qualquer ambiente que entra — e é uma pena saber que não haverá mais sobre ela e o mundo criado pela série para assistir.