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Rebecca: o tormento da memória

Publicado em 1938, Rebecca começou a ser escrito em 1937 por Daphne du Maurier quando ela se mudou para o Egito com o marido, à época comandante de um batalhão do Exército Britânico. Deixando as duas filhas na Inglaterra com a avó, o papel de Daphne em sua nova morada era o de organizar recepções e entreter os convidados do marido, mas essa não era uma atividade de que gostava, como descreve Nilsen Silva no prefácio da edição do livro publicada pela DarkSide Books com tradução de Regiane Winarski.

Daphne, de personalidade mais introvertida e quieta, não gostava da vida social agitada que vinha atrelada ao fato de ser casada com um comandante do Exército Britânico; tudo o que ela queria era escrever. E assim, insatisfeita com sua nova realidade e sentindo saudades de seu lar na Cornualha, os primeiros esboços de Rebecca começaram a surgir. Para relembrá-la de sua terra natal, Daphne du Maurier decidiu ambientar sua trama em um lugar onde a bruma cobrisse o gramado durante as manhãs, mas que também pudesse ser belo e aconchegante à luz do sol, e de onde se podia ouvir o som do mar. Aos poucos, a escritora — já bem estabelecida em seu ofício com seis livros publicados — teceu a trama de Rebecca, um enredo produzido em um momento conturbado de sua vida e que se transformou em seu mais célebre romance, mais tarde transformado em filme pelas mãos de Alfred Hitchcock, em 1940.

“Conviver com o diabo não estimula a sanidade.”

Um livro tão renomado não fugiria também das polêmicas, e no encalço de sua publicação e sucesso vieram também as comparações com o clássico de Carolina Nabuco, A Sucessora, publicado no Brasil em 1934. De fato, a premissa das duas obras é bastante similar, e Carolina havia vertido seu livro para o inglês e o enviado a editoras no exterior, tanto nos Estados Unidos quanto para a Inglaterra, com o intuito de publicá-lo, porém sem sucesso. A questão do plágio nunca foi comentada por du Maurier, e Nabuco, ainda que consternada com as similaridades entre as obras e a reprodução de diálogos inteiros de A Sucessora em Rebecca, decidiu não ir adiante com o processo. O The New York Times escreveu uma matéria a respeito do plágio e aqui no Brasil o primeiro a levantar as semelhanças entre as obras foi Álvaro Lins — advogado, jornalista, professor e crítico literário brasileiro, membro da Academia Brasileira de Letras —, em 1939. Carolina Nabuco, inclusive, foi contatada pela equipe de Alfred Hitchcock com o intuito de comprar seu silêncio a respeito do caso de plágio, mas a escritora brasileira se recusou a aceitar os termos de que as semelhanças entre Rebecca e A Sucessora eram fruto de uma simples coincidência. Não é como se fosse realmente uma novidade ver estrangeiros “bebendo” em fontes brasileiras.

Rebecca tem início em Monte Carlo, um dos distritos do principado de Mônaco, onde a narradora se encanta com Maxim de Winter, um rico viúvo que se hospeda no mesmo hotel em que ela e a Srª Van Hopper, de quem é dama de companhia, estão. Não sabemos o nome da narradora em nenhum momento da trama e é por meio de seus olhos que vemos todo o enredo se desenrolar. É a Srª Van Hopper que encurrala Maxim de Winter para que ele tome chá com as duas, mas é a jovem, ingênua e inocente órfã que capta a sua atenção. Quando uma inesperada doença deixa a Srª Van Hopper incapacitada de frequentar o salão do hotel, a menina se vê na presença de Maxim de Winter durante o jantar e, a partir de então, também durante todos os outros dias de convalescência de Van Hopper.

O relacionamento entre eles não faz sentido na cabeça da jovem, que não entende o que Maxim, um homem mais velho e rico, pode ter visto em sua figura tão comum. E é com muita surpresa, quando está prestes a atravessar o oceano para viver com a Srª Van Hopper nos Estados Unidos, que a menina aceita o seu inesperado pedido de casamento e passa ser a nova Senhora de Winter. O que parecia um sonho começa a tomar contornos de pesadelo quando ela chega a Manderley, a residência de Maxim na Inglaterra, e precisa lidar com todas as lembranças de Rebecca, a falecida primeira esposa de de Winter, que emanam pelas paredes e jardins da enorme propriedade.

Mesmo após sua trágica morte, Rebecca é vista em todos os detalhes de Manderley, da posição dos vasos de flores, do arranjo dos móveis, do padrão dos jardins e na ponta da língua dos empregados que sempre se referem aos costumes e preferências da falecida madame de Winter. E ninguém parece mais devoto à primeira Srª de Winter do que a Srª Danvers, governanta da mansão, que não perde a oportunidade de espezinhar a segunda esposa, sempre apontando como Rebecca era quem organizava as mais inesquecíveis festas e bailes de Manderley, como Rebecca era impecável em tudo o que fazia e encantava a todos que a conheciam.

“Ele era homem; eu, sua mulher e moça, mais nada. Maxim não me pertencia, absolutamente. Pertencia a Rebecca. Ainda pensava em Rebecca. Nunca poderia amar-me por causa de Rebecca.”

Não demora para que a jovem narradora se sinta oprimida em Manderley, alimentando fantasias de não ser suficiente para Maxim, sempre se comparando com o fantasma onipresente de Rebecca. A falta de experiência dela é escancarada durante as recepções à convidados e no trato com a administração da propriedade onde a presença de Rebecca está em todos os lugares, dos cardápios das refeições à caneta tinteiro e as pastas etiquetadas com sua caligrafia inclinada e pontiaguda. É nesse cenário sufocante em que a narradora se encontra, tentando decifrar o mistério que é Rebecca enquanto tenta colher informações de todos ao seu redor, mas ninguém parece disposto a tocar no assunto do falecimento da Srª de Winter sem um pouco de insistência.

A cada virar de página, somos instigados a continuar a leitura para desvendar o mistério junto da narradora, sentindo seu sofrimento diante da perspectiva de não ser suficiente ou especial como Rebecca, uma prisioneira na casa decorada com esmero por uma mulher que parecia ter todo o mundo aos seus pés. O que gosto da construção da narrativa de Daphne du Maurier é que ela consegue passar, por meio dos pensamentos da narradora, todo o conflito e angústia que existem dentro dela ao tentar competir por atenção com um fantasma onipresente. Rebecca está em todo lugar, firmemente alicerçada nas lembranças das pessoas, e não há nada que a narradora possa fazer a respeito além de tentar encontrar um lugar para si em Manderley.

“Talvez eu a assombrasse da mesma forma como ela me assombrava. Ela olhava pra mim da galeria, como a Srª Danvers dissera, sentava-se ao meu lado quando eu escrevia cartas à escrivaninha dela. A capa que vesti, o lenço que usei. Eram dela.”

Manderley, inclusive, atua como um personagem tão onipresente quanto a própria Rebecca. A enorme propriedade dos de Winter é descrita com esmero por du Maurier, das suas janelas, aos jardins e móveis. Manderley é encantadora quando ensolarada, mas pode despertar tremores nos desavisados que vão parar na ala oeste sem perceber, com suas inúmeras portas fechadas e ambientes intocados. Uma das características das tramas góticas é justamente ter um casarão envolto por brumas que parecem guardar segredos em cada canto, um personagem tão importante quanto os que se movem pro entre suas paredes — basta lembrar de títulos clássicos como O Morro dos Ventos Uivantes, de Emily Brontë, Jane Eyre, de Charlotte Brontë, A Assombração da Casa da Colina, de Shirley Jackson, e títulos mais recentes, como O Iluminado, de Stephen King, Gótico Mexicano, de Silvia Moreno-Garcia, e O Silêncio da Casa Fria, de Laura Purcell, só para citar alguns.

Outro viés interessante de Rebecca é o quanto a narrativa deixa margem para diversos estudos e análises, seja no que tange a psicologia e os papéis de gênero, ou a respeito dos motivos que levaram Daphne du Maurier a manter a narradora sem nome durante todo o livro. Rebecca, enquanto isso, é mais identificável pelo primeiro nome do que pelo sobrenome do marido, o que fica marcante também na maneira como assina seus papéis, com o ‘R’ muito mais pronunciado e forte do que o ‘W’. Muito se fala que a ausência de nome próprio para a narradora se deve ao fato de que Daphne du Maurier mesclou sua própria história à dela, inclusive criando Rebecca como a mulher livre e extrovertida que gostaria de ser em algum ponto de sua vida. Enquanto a narradora era a realidade de du Maurier, comum e sem graça, em suas próprias palavras, Rebecca recebe as características que a autora gostaria de ter para si.

“Eu podia enfrentar os vivos, mas não os mortos.”

A maneira como du Maurier constrói a narrativa, entregando aos poucos os detalhes a respeito da morte de Rebecca e como a narradora encara a reviravolta na história é muito interessante de acompanhar. A trama, lenta em alguns momentos, com muitos devaneios internos da narradora — ela gosta especialmente de imaginar cenas inteiras do que outras pessoas estão fazendo, em outros lugares, e de se comparar com Rebecca, o que pode se tornar maçante em alguns momentos — fica mais intensa e ágil ao final do livro, com os desdobramentos a respeito do falecimento de Rebecca arrebentando em todos como uma onda na enseada de Manderley em uma noite de chuva intensa. A presença de Rebecca está em todas as páginas, em todos os cantos, e não há nada que a narradora possa fazer a respeito além de aceitar o fato — ou tentar contorná-lo.

Daphne du Maurier escreveu seu nome na história da literatura com uma caligrafia tão marcante quanto a de Rebecca, embora, para mim, seja difícil desvincular seu livro do provável plágio de A Sucessora. Inspirando novas tramas ao redor do mundo, inclusive a canção “tolerate it”, faixa de número cinco do álbum evermore, lançado em 2020, de Taylor Swift, Rebecca permanece intocável pelo tempo. Rebecca, a mulher inesquecível, como batizada por Hitchcock, cravou suas garras, tão afiadas quanto sua caligrafia, na história da literatura, vivendo e assombrando como poucas conseguem fazer.

“Eu conhecia o seu rosto também, de oval perfeito, a pele acetinada e branca, moldura de cabelos negros. Sabia qual o perfume que usava, podia adivinhar-lhe o riso e o sorriso. E se entre centenas de outras eu ouvisse sua voz, saberia reconhecê-la. Rebecca, sempre Rebecca! Eu nunca me libertaria de Rebecca.”

O exemplar foi cedido para resenha por meio de parceria com a Editora DarkSide Books.


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