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“Sair do armário” no YouTube: a breve história sobre influência e exposição quando se é LGBTQIA+

O ano era 2015 e uma das maiores influenciadoras do ramo de beleza da época, Ingrid Nilsen, posta um vídeo que em menos de oito horas recebeu mais de 900 mil visualizações. Esse é um daqueles momentos que, se você estava envolvido de alguma maneira, consegue se lembrar exatamente o que estava fazendo quando se deparou com o vídeo em questão. No vídeo, Ingrid Nilsen compartilha com seus seguidores a sua jornada de aceitação, rejeição e descoberta de ser gay.

O vídeo de Ingrid não foi o primeiro, mas o formato e o impacto que teve iniciou um novo movimento na internet. De acordo com o Think With Google, o primeiro vídeo de coming-out do YouTube foi publicado em 2006, quando a plataforma não havia completado mais de um ano de existência; e até 2018 mais de 25 mil criadores de conteúdo já publicaram vídeos sobre suas sexualidades e identidades de gênero.

Logo, o YouTube se viu recheado de vídeos confessionais de pessoas de todos os lugares do mundo transbordando sentimentos, lágrimas e segredos que antes estavam contidos em um pequeno grupo ou em forma de pensamentos em páginas de diários. Junto com esse movimento, no final dos anos 2010, os vídeos, que nunca passava dos dez minutos e mostravam, normalmente, apenas uma pessoa sentada em frente à câmera, com sua fragilidade, se transformaram em grandes produções com mais de 25 minutos. Tais vídeos tinham como objetivo não apenas revelar o interlocutor para o mundo, mas também demonstrar a expressão artística daqueles jovens e crianças que cresceram na internet.

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Em 2017, a criadora de conteúdo Elle Mills bateu recordes de visualizações e ganhou reconhecimento internacional ao publicar um vídeo com o seu mais novo plano infalível: decorar a sua casa com papel de presente para se assumir para a sua família. Em certo momento do vídeo, Elle aparece chorando e fala sobre como sente medo de contar às pessoas sobre sua bissexualidade e o receio que tem de que suas conexões mudem devido a sua orientação sexual. Essa parte do vídeo se transforma em mero detalhe em comparação a trilha sonora alegre e aos sorrisos e abraços espalhados por todos os quase cinco minutos de vídeo.

Os últimos vídeos desse gênero que pararam a internet foram publicados em 2019. Durante o Mês do Orgulho, Eugene Lee Young, influenciador que já fez parte do Buzzfeed, publicou um vídeo de cinco minutos que está longe de ser a coisa mais simples já feita na internet. Com danças e figurinos complexos, ele conta a história de sua vida e como foi lidar com a sua sexualidade em uma comunidade que ainda é muito rígida. Na mesma época, Dan Howell, da dupla Dan & Phil, como é conhecido pela internet, publicou um vídeo de mais de 45 minutos onde explica detalhadamente sobre a sua história de descoberta, negação, sucesso e depressão que lhe levou a este momento em que está pronto para se assumir ao mundo após anos vivendo e transformando a internet em seu trabalho.

Desde o final dos anos 2000, a internet tem evoluído para se tornar parte de nossas vidas, onde virtual e real se fundiram de maneira que o on-line não parecesse um universo paralelo, separado. As novas formas de compartilhamento por meio das redes sociais se tornaram uma forma de nos conectarmos com pessoas iguais a nós sem a necessidade de estarmos fisicamente perto. Ao estarmos dentro de um cenário de minorias, esse espaço acolhedor e livre é ainda mais necessário ao pensarmos nos diferentes contextos em que somos silenciados naqueles anos cruciais em que estamos desenvolvendo a nossa identidade.

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Pensando no cenário em que a onda de vídeos de coming-out se tornaram altamente populares, o mundo estava passando por um momento crucial: a vocalização dos movimentos de minorias sociais, protestos, tragédias motivadas por crimes de ódio e a ascensão de políticas e políticos que possuem visões odiosas e fascistas. O que se tornou um movimento para se conectar com outras pessoas do mundo inteiro e expressar um orgulho de ser quem é, se tornou um ato político onde aqueles que estão em uma posição de influenciador e, consequentemente, privilegiado de ser ouvido, se sentia na obrigação de vocalizar partes de sua vida pessoal para levar conscientização para o cenário mundial atual.

Ao passo em que essa porta aberta possibilita a conscientização e conexão com outras pessoas que ainda estão no processo de descoberta e acolhimento de suas identidades, ela também facilita o acesso aos ataques, além do peso que essas pessoas acabam carregando por serem consideradas porta-voz, e token, de  uma identidade inteira que, muitas vezes, elas próprias estão descobrindo e entendendo o que significa na mesma velocidade que compartilham com o resto do mundo.

É inegável a diferença e bem que esse espaço on-line fez na vida de uma geração inteira, como as nossas vidas e todo esse processo seria diferente se não tivéssemos a internet e aquelas pessoas que compartilhavam sobre suas vidas nela. Uma geração inteira não seria tão aberta e acolhedora com suas diferenças se não fosse pela geração anterior que moldou toda a comunicação feita de forma virtual e acessível. No entanto, o quão benéfico foi para essa geração inteira chegar nos limites (e até ultrapassando o seu limite) de sua saúde mental em nome dessa próxima geração?

O excesso de compartilhamento era, e ainda é, em diferentes plataformas, algo recompensado: quanto mais falamos de nossas vidas, mais pessoas estarão presentes nela. Em entrevista para o podcast Crazy Stupid Girls, dodie, cantora inglesa, fala como esse processo de recompensa e compartilhamento na internet fez parte de um sistema que lhe fazia bem momentaneamente, mas que, a longo prazo, fez mal para a sua saúde mental. Junto com Elle Mills, elas conversam sobre como esse sistema também afetou o seu processo de se assumir, em que, ao passo em que estavam se descobrindo, também estavam aparecendo em entrevistas e sendo a porta-voz de todas as pessoas que se identificavam daquela forma.

“Eu acho que eu me assumi bi muito rápido, porque eu estava tão animada porque eu cresci em um lugar que não era nada legal e de repente eu estava em um lugar que era tão legal que era aplaudido e celebrado. Eu estava ‘Sou bi, sou bi, sou bi! Eu gosto de beijar meninas!’ e não foi tipo ‘eca’ mas sim ‘Eba! Legal!’. Foi incrível e então anos se passaram e eu percebi que toda a bifobia internalizada da minha infância me alcançou e de repente eu estava lidando com tudo isso, mas as pessoas acham que eu sou incrivelmente abertamente orgulhosa bissexual e isso ainda é muito difícil para mim. Então agora eu estou processando isso um pouco mais privado e isso está ajudando ao invés de falar sobre o tempo todo.”dodie em entrevista ao Crazy Stupid Girls

Lentamente, os mesmos criadores que compartilhavam em alta frequência e estavam se tornando o rosto de todo um movimento on-line, começaram a desaparecer sem aviso prévio se tornando para os espectadores apenas uma lembrança de uma geração do YouTube. A pressão de serem essa porta-voz e o rosto de um movimento antes mesmo de processarem toda a fobia internalizada e, muitos, de se assumirem para todo o seu círculo social e familiar, levou diversos criadores a temerem a internet e suas vidas enquanto sua saúde mental foi se deteriorando em contramão a sua popularidade crescente.

Por mais que tenhamos lembranças muito boas e aconchegantes desse momento inicial de uma era inteira, é importante lembrarmos da importância da representatividade, da necessidade de termos uma gama de diferentes faces e retratos de uma mesma identidade, porque a verdade é que nenhuma é igual a outra e quando temos essas pequenas partes sendo retratadas em diferentes mídias temos o peso do token tirado dos ombros de uma única pessoa, que não precisa ser perfeita e representar milhares que estão sedentos por serem representados.

Logo, o movimento desses vídeos é saírem de tendência, ainda que não tenham desaparecido. Ainda é possível acompanhar pessoas ao redor do mundo falando sobre sua sexualidade e identidade de gênero, mas de uma forma que nunca será igual a essa primeira geração. Atualmente, apesar de termos muito caminho pela frente, os jovens e adolescentes lidam com essas questão de uma forma muito mais aberta e inclusiva do que foi feito dez anos atrás, e isso permite que essa mesma geração não necessite de um grande vídeo contendo seus maiores e profundos medos, mas sim algo que vai surgindo em conversas e tiktoks de poucos segundos.

As consequências desses anos na internet ainda estão sendo vividas e lidadas por essa geração, e aos poucos vamos entendendo o limite entre a nossa saúde mental e esse espaço de acolhimento que a internet consistentemente tem estreitado entre pessoas que não tem o mesmo espaço fisicamente, mas que por meio dessas plataformas conseguem encontrar o caminho para elas.