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Demi Lovato e a arte de recomeçar

Eu cresci assistindo Disney Channel. Camp Rock 2 era um dos meus filmes preferidos e assistia Sunny Entre Estrelas todos os dias na hora do almoço. Na minha adolescência, algumas das músicas que não saiam das minhas playlists eram “Made In USA”, “Heart Attack”, “Neon Lights” e “Really Don’t Care”. Nunca me considerei uma lovatic, como são conhecidos os fãs de Demi Lovato (ser parte de uma base de fãs é algo raro para mim), mas de alguma forma, Demi sempre esteve presente na vida. Ao longo dos anos, acompanhei sua história enquanto lutava contra distúrbios alimentares, dependência alcoólica e química, e doenças mentais. Me lembro de incontáveis vezes ver Demi ser descrite como “problemática”. Ouvir seu último álbum Dancing with the Devil… The Art of Starting Over, lançado em abril de 2021, me levou em uma jornada pela sua história e suas lutas até chegar a pessoa que elu é hoje. Em julho de 2018, Demi sofreu uma overdose que rapidamente foi parar nos tabloides. Mas, como revelado no documentário produzido pelo YouTube, “Demi Lovato: Dancing With the Devil”, não foi uma “simples” overdose: elu também teve um ataque cardíaco, falência múltipla de órgãos, pneumonia e perda de parte da visão. Demi esteve perto da morte, se o atendimento médico acontecesse cinco minutos mais tarde, talvez não estivesse mais vive.

No novo álbum, Demi compartilha sentimentos de antes, durante e depois da overdose no trabalho mais profundo, verdadeiro e vulnerável de sua carreira. O álbum inicia com “Anyone”, canção escrita  4 dias antes de sofrer a overdose e lançada durante o Grammy de 2020, depois de uma pausa de quase dois anos na carreira para cuidar de sua saúde. A letra mostra como Demi sentia a solidão e não sabia a qual caminho recorrer a não ser a bebida e as drogas. “Dancing With The Devil”, uma das canções que dá título ao álbum, retrata o período não mais sóbrio antes da overdose. Apesar de aparentar estar bem para a família e amigos e de tentar se convencer que estava no controle da situação, Demi usa a analogia de que estava dançando com o diabo para descrever a perda de controle sobre sua vida, sua dependência alcoólica e química e de como isso quase lhe custou a vida.

“ICU (Madison’s Lullabye)” foi escrita para a irmã mais nova de Demi, Madison. As duas sempre foram próximas. Um dos motivos que fizeram Demi procurar a reabilitação pela primeira vez, em 2009, foi a condição imposta por sua mãe, quando determinou que Demi só poderia ver Madison se estivesse bem. Em 2018, quando acordou da overdose, um dos efeitos colaterais é que Demi perdeu parte da visão e não reconheceu a irmã que estava ao seu lado. “ICU” é uma mensagem de Demi para Madison, em como sente muito pela irmã a ter visto no seu pior momento e de como tem orgulho da pessoa que ela é. A referência a perda da visão faz parte da construção da música. Como muitas das outras canções do álbum, é simples conseguir se identificar com a letra, mesmo para quem não passou pelas situações de Demi e Madison. A música descreve relacionamentos entre irmãs, primas, amigas e muitos outros: não podemos evitar decepcionar quem está ao nosso lado, mas podemos escolher como iremos agir daquele momento em diante.

Logo depois de “ICU”, o álbum tem um poema falado por Demi: “I asked if anyone could hear me / As I danced with the devil / And because of that / I was blind / But now I see / Let me take you on a journey / One that sheds the skin of my past / And embodies the person I am today / This is the art of starting over” (“Eu perguntei se alguém conseguia me ouvir / Enquanto eu dançava com o diabo / E por causa disso / Eu estava cega / Mas agora eu vejo / Deixe-me te levar em uma jornada / Uma que derruba a pele do meu passado / E encorpa a pessoa que eu sou hoje / Essa é a arte de recomeçar” em tradução livre). Além de um desabafo, a mensagem também representa uma passagem dentro da construção do álbum. Se as três músicas até agora falam sobre Demi antes da overdose, as canções seguintes abordam seu processo de cura e descobrimento: é seu recomeço mesmo depois de estar à beira da morte.

The Art of Starting Over”, a segunda canção que dá nome ao álbum, fala justamente sobre isso. Ter total controle sobre a própria vida é um desafio constante para Demi. Na infância e adolescência, elu sofreu de distúrbios alimentares enquanto precisava ser a garota perfeita e exemplar que a Disney vendia. Depois, veio a dependência química. Por muitos anos, precisou seguir uma rotina totalmente regrada para não sofrer nenhuma recaída. Essa canção trata justamente sobre como é difícil seguir em frente e recomeçar de forma constante, principalmente porque isso é algo que só você consegue fazer por si mesmo. A música também fala sobre o rompimento do seu rápido noivado em 2020 e como, ao contrário de outros momentos da sua vida, elu percebeu que estava dominando a arte de recomeçar pela maneira como lidou com essa dor.

O fato de ter tido forças para se recuperar e recomeçar não quer dizer que Demi não sofreu. “Lonely People”, canção seguinte, é um desabafo do coração partido e sobre como está cansade de ter o coração partido repetidas vezes. Os altos e baixos de seu relacionamento, e como isso afeta seu psicológico, são temas da próxima música, “The Way You Don’t Look At Me”. Acompanhade do violão, Demi desabafa sobre como era viver em meio a insegurança de não ser boa o bastante: “‘Cause when you say nothing / It’s much worse than things I’ve overcome and / This hurts harder than my time in heaven” [Porque quando você não diz nada / É muito pior do que coisas que eu superei e / Isso machuca mais do que meu tempo no céu”].

A relação com os distúrbios alimentares e o padrão da garota perfeita à la Disney também é abordada no álbum. Em uma entrevista em agosto de 2020, Demi falou que deixou a empresa do Mickey em 2010 após perceber (com a ajuda da terapia) como a empresa incentivava e normalizava os transtornos alimentares. Logo na primeira estrofe de “Melon Cake” Demi diz “And there was a time / Where the cat and mouse tried to make me / Barbie sized and I obliged” [“E houve um tempo / Onde o gato e o rato tentaram me deixar / Como uma Barbie sob medida e eu fui grata”], uma clara alusão à sua época como uma estrela Disney. O nome da música é uma referência aos bolos de melão que Demi comia em seus aniversários — bolos tradicionais tinham muito açúcar e gordura, ou seja, poderiam engordar, razão pela qual Demi não os comia. Em dezembro do ano passado, Demi postou uma foto em seu Instagram na qual celebrava a recuperação dos distúrbios alimentares, ao dizer que nunca pensou que estaria 100% recuperada da doença, mas agora estava e era feliz com seu corpo, com todas as suas características próprias, inclusive as estrias que estrelam a foto. Além de um desabafo sobre a época em que sua alimentação era regrada, “Melon Cake” também é uma celebração de Demi por ter superado os distúrbios alimentares.

Na balada “Met Him Last Night, Demi e Ariana Grande cantam sobre como é encontrar o mal disfarçado de garoto e ainda mais complicado deixá-lo para trás. A parceria era esperada há anos e não decepciona, ao ornar as vozes e entregar uma música viciante. A canção seguinte, “What Other People Say”, colaboração com Sam Fischer lançada em fevereiro deste ano, narra as decepções de crescer e estar distante da versão idealizada quando criança. Apesar da letra ser atemporal, também se encaixa muito bem no sentimento em comum em meio da pandemia da covid-19, quando nossa vida parece estar refém de uma força superior e não conseguimos retomar o controle.

O lado apaixonado de Demi é retomado em “Carrefully”, quando fala que apesar de ainda estar machucade pelos traumas do passado, está pronte para viver um romance. Demi está em um processo de reconstrução, mas sabe que seus traumas estarão sempre com elu e que a melhor maneira de seguir em frente, é aprendendo a lidar com eles. Em “The Kind of Lover I Am”, Demi narra sua maneira de ver o amor e viver um relacionamento. Demi é abertamente bissexual desde 2017 e essa é a primeira canção em que fala explicitamente sobre isso, apesar da letra intrínseca de “Cool For The Summer”. “Easy”, parceria com Noah Cyrus, fala sobre como é difícil deixar uma situação, por mais que você saiba que é a decisão correta. Em “15 minutes”, Demi manda uma indireta para o ex-noivo que, segundo a letra da música, estava com elu só por conta de sua fama e por isso recebeu seus “15 minutos” de atenção. Durante sua recuperação, o apoio de seus amigos e amigas foi uma parte importante do processo e a importância dessas amizades é o tema de “My Girlfriends Are My Boyfriend”, parceria com a rapper Saweetie.

Em “California Sober” Demi comemora a sobriedade. Ao longo da canção, elu relembra sua jornada, desde o reconhecimento somente pelas doenças que tem e sempre viver com medo das recaídas até encontrar o equilíbrio em sua vida. No documentário produzido pelo YouTube, elu declara que está bebendo e fumando maconha socialmente, mas que tem controle da situação e está em constante contato com diversos profissionais que cuidam de sua saúde mental e física. “Mad World”, cover da banda britânica Tears for Fears lançado originalmente em 1982, reforça a ideia de que crescer e encarar o mundo real é complicado e que é muito fácil se perder nesse “mundo maluco”. A canção seguinte, “Butterfly” foi escrita para o pai biológico de Demi. Os dois tiveram uma relação distante e conturbada, principalmente pela dependência alcoólica dele e como isso afetava toda a família. Ele morreu em 2013 e a música fala sobre a jornada de Demi para entender o efeito que a relação dos dois e sua morte tem sobre ela e como não é possível ignorar o passado: “You were never really graceful / Now you’re just what you’re supposed to be” [“Você nunca foi muito gracioso / Agora, você é apenas o que deveria ser”].

O álbum finaliza com “Good Place”, canção em que Demi fala que finalmente está bem, sem precisar manter aparências e apaixonada pela própria vida. Demi reforça que o caminho para chegar onde está levou um tempo e causou muita dor, mas que agora finalmente pode seguir em frente após se reconciliar consigo mesme. A música fecha perfeitamente a jornada que conhecemos ao longo das 19 canções do álbum. Em dois atos, é possível entender como Demi estava se sentindo antes da overdose, quando “dançava com o diabo”, como foi o processo de recuperação, em sua jornada de recomeçar, até o momento em que pode finalmente dizer que está bem. Demi entregou toda a sua vulnerabilidade e história para os ouvintes, que mesmo se não tiverem passado por situações semelhantes, conseguem se identificar com as letras, dores e felicidades que as músicas retratam.

Em maio, através de seu podcast e redes sociais, Demi se declarou como uma pessoa não-binária. Logo depois, sofreu diversos ataques desacreditando sua identificação e dizendo que elu só estava preocupado em “lacrar” e lucrar. Não foi a primeira vez que Demi passou por isso. Por crescer em frente às câmeras, elu esteve constantemente sob julgamento de desconhecidos e levou muito hate nas redes sociais. Por muito tempo, isso afetou sua vida, mas agora Demi está aprendendo que sua felicidade precisa estar na frente de tudo. Não quer dizer que comentários maldosos na internet possam ser feitos porque não tem mais efeito. Condenar alguém só porque você está online continua sendo um ato horrível e você nunca deve achar que sabe mais da vida de uma pessoa do que ela mesma. Mas, como Demi fala na mesma postagem nas redes sociais, pela primeira vez elu está colocando o bem-estar acima da carreira. Recomeçar não é uma tarefa simples, mas conseguimos embarcar na jornada com Demi ao longo do álbum “Dancing with the Devil… The Art of Starting Over” e eu estou ansiosa para conhecer cada vez mais quem elu é realmente.