Categorias: TV

Downton Abbey e a prova de que o amor não tem idade

O que é uma história de amor? Estritamente falando, é aquela que se propõe a contar a história de duas pessoas que cruzam o caminho uma da outra, se apaixonam e decidem viver esse amor — ou, ao menos, a ideia dele. O relacionamento funciona como força motriz da narrativa que, por sua vez, é impulsionada por aquilo que entendemos como amor romântico. São, no entanto, histórias que com alguma frequência também reforçam padrões de relacionamentos, estejam eles vinculados a orientação sexual (predominantemente heterossexual) ou atados a modelos específicos de relações monogâmicas cujo final feliz reserva-se a pessoas, em sua maioria, brancas, quase sempre bastante jovens.

É uma perspectiva limitante, tanto do ponto de vista narrativo quanto social, que isola uma pequena realidade como regra e ignora a multiplicidade de nuances possíveis às histórias de amor. Poucas são as obras de fato interessadas em entender essas relações para além da conquista, mas são ainda menores aquelas que desejam compreender as dinâmicas desenvolvidas entre casais com diferentes backgrounds, raças, gêneros e idades. Downton Abbey, no entanto, se distancia (ainda que, por vezes, timidamente) desse padrão. Embora tenha sido uma das séries mais brancas já produzidas e que por vezes romantiza os membros das classes elevadas da Inglaterra do início do século XX (é inegável que a aristocracia inglesa era um ambiente fechado em si mesmo e que dificilmente poderia ser considerado diverso, mas é também difícil imaginar que fosse povoado por tantos rostos jovens e belos), a série centralizou romances que contemplaram diferentes personagens ao longo dos anos, estabelecendo narrativas e dinâmicas distintas para cada um deles.

Quando tem início, são as mulheres jovens em busca de um grande amor e cercadas pela perspectiva de um casamento que protagonizam as emblemáticas cenas de romance, ao passo que mulheres mais velhas são relegadas a papéis secundários. Elas não possuem uma vida tão agitada ou emocionante como suas contrapartes juvenis, e seus relacionamentos, quando existem, há muito não são motivo de dramáticas reviravoltas. Mesmo Cora, a Condessa de Grantham (Elizabeth McGovern), vive um casamento estável e sua maior preocupação é o enlace de sua filha mais velha, Lady Mary (Michelle Dockery), e como ele poderá interferir na manutenção do título e da propriedade da família.

Não é uma surpresa que, em sua primeira temporada, Downton Abbey se concentre no relacionamento entre Mary e o então desconhecido parente dos Crawley, herdeiro do título e da fortuna da família, Matthew (Dan Stevens). Em uma época em que o casamento tornava a mulher parte da família do marido, era necessário que Mary, enquanto primogênita, se casasse com o herdeiro de Downton, garantindo a permanência da família e de sua linhagem na propriedade. A relação entre Mary e Matthew, no entanto, ganha contornos mais dramáticos até, por fim, evoluir para um romance bastante sólido. Sem medo de ser piegas, Jullian Fellowes, criador e roteirista da série, entrega um romance tão bonito quanto memorável, e é por isso que Mary e Matthew são o que são. Ao fim do dia, no entanto, eles continuam a ser duas pessoas extremamente jovens, com um futuro promissor, repleto de possibilidades, e uma história de amor que parece possível apenas às pessoas de menos idade.

Muitos dos casais que se formam durante as três primeiras temporadas repetem, ao seu próprio modo, esse padrão: são romances protagonizados por mulheres jovens e homens da mesma faixa etária ou mais velhos, comprovando que, ao contrário das mulheres, a idade não parece interferir na experiência masculina da mesma forma. Lady Sybil (Jessica Brown Findlay) e Tom Branson (Allen Leech), Anna (Joanne Froggatt) e Bates (Brendan Coyle), Lady Edith (Laura Carmichael) e seus pretendentes: todos possuem em comum o fato de viverem não apenas intensas (e às vezes, trágicas) histórias de amor, mas de serem pessoas predominantemente jovens. O mesmo não acontece na vida das mulheres de meia-idade, sobretudo as mulheres viúvas e solteiras, a quem o romance inicialmente não parece uma possibilidade razoável, muito diferente dos homens em posição similar, como é o caso do próprio Bates, ele mesmo um homem viúvo de meia-idade.

À medida que avança, Downton Abbey desconstrói esse discurso, reconhecendo que essas mulheres também merecem viver histórias de amor, dentro de seu próprio contexto e levando em consideração suas particularidades. É dessa forma que tropos normalmente reservados às mulheres de mais idade, como a matriarca, a avó ou até mesmo a sogra, em geral coadjuvantes, ganham contornos mais complexos, tornando-se consideravelmente mais interessantes. De senhoras que viveram amores proibidos na juventude e são novamente confrontadas pelas escolhas do passado na velhice, até as que descobrem o amor quando já não acreditam que isso é uma possibilidade em suas vidas, a série comprova que existe espaço para que essas histórias sejam contadas, projetando narrativas de amor romântico em contextos diferenciados — e até mais interessantes do que muitas histórias juvenis.

Downton Abbey
Lady Violet (Maggie Smith) e o príncipe Kuragin (Rade Sherbedgia).

É o que acontece, por exemplo, com Lady Violet (Maggie Smith), a Condessa Viúva, que apenas na velhice revela ter vivido um romance proibido na juventude que quase a fizera deixar o marido e os filhos. Em uma viagem à Rússia ao lado do então Conde de Grantham, Violet conhece o Príncipe Kuragin (Rade Sherbedgia), com quem vive um breve romance e eventualmente decide fugir, pondo em xeque o título, a estabilidade e os filhos. A tentativa, no entanto, é frustrada e Violet é literalmente arrancada da carruagem por uma princesa em fúria. Após o acontecido, o conde, seu marido, nunca mais haveria de mencionar o assunto, tanto que seus filhos nunca ficariam sabendo do ocorrido até que Kuragin aparecesse na Inglaterra como refugiado, desprovido dos títulos e da fortuna. É um momento delicado para ambos — ele, porque vive miseravelmente em um país estrangeiro; ela, porque reencontra naquele homem um episódio do seu passado que julgara enterrado para sempre e que retorna em um momento no qual ela não tem mais grandes expectativas (não é mais a Condessa de Grantham, não precisa cuidar da propriedade, não tem filhos pequenos com os quais se preocupar, tampouco um marido) —, mas nada que os impeça de relembrar o passado, pensar no que tinham vivido e no que ainda poderiam viver. Quando Kuragin lhe propõe que os dois vivam juntos, no entanto, é com alguma tristeza que Violet rejeita a proposta, ainda que admita sentir-se lisonjeada por ser cortejada àquela altura da vida.

É interessante que a mulher mais preocupada em manter tradições e a propriedade e o dinheiro da família seja a mesma que, no passado, considerou abandonar todos os seus privilégios em nome do amor. Fellowes brilhantemente propõe que o que seus personagens são aos olhos da comunidade não necessariamente refletem aquilo que são intimamente — e histórias como a de Violet demonstram quão bem-sucedida sua abordagem pode ser. É em sua intimidade que Violet revela suas diferentes facetas, que são exploradas de forma tão minuciosa pelo roteiro que tornam-se uma surpresa tanto para o público quanto para os personagens com quem interage. Essa mesma abordagem foi responsável por alguns momentos interessantes de Downton Abbey, como a cena em que Robert, filho de Violet e atual Lorde Grantham (Hugh Bonneville), caçoa da mãe pelo reencontro com Kuragin, evidenciado um etarismo que não se limita à tela pequena; ou, ainda, quando Violet revela à Mary, sua neta, em um momento bastante delicado, que acredita, acima de tudo, no amor. A cena, extremamente sensível, é também a evidência de que Violet há muito já não é apenas a viúva e matriarca impassível de uma família abastada.

Downton Abbey
Isobel (Penelope Wilton) e lorde Merton (Douglas Reith).

Paralelamente, Isobel (Penelope Wilton), grande amiga de Violet e sogra de Mary, também tem sua vida amorosa posta em foco. Viúva em luto pela morte de seu único filho, Isobel vive reclusa por vários meses até que se sinta novamente capaz de retomar antigas atividades, voltadas principalmente para o bem-estar de outras pessoas, como o trabalho que realiza no hospital, ou ao núcleo familiar, como o cuidado do neto, George, e a atenção especial que dispensa à Mary, cuja perspectiva de futuro torna-se difusa após a morte precoce do marido. Aos poucos, Isobel volta a ser a mulher determinada de outrora e assume maior autonomia dentro de seu campo narrativo — o que vai colocá-la no inédito papel de protagonista de um triângulo amoroso, composto por ela, o médico local e o padrinho de Mary, Lorde Merton (Douglas Reith), com quem ela posteriormente decide se casar; não sem antes ponderar se essa é, de fato, uma decisão apropriada para uma mulher da sua idade.

Downton Abbey cria um romance delicado para os dois, estruturado sobre olhares e trocas mútuas de gentileza, e são essas suas grandes demonstrações de amor. Isobel, por sua vez, experiencia uma liberdade pouco comum às jovens mulheres e que ela mesma não poderia ter tido no passado: um amor paciente e leve, que surge de forma natural e também gradual, sem as exigências e expectativas que recaem sobre as jovens casadoiras. Diferente da relação com seu primeiro marido, o casamento com Lorde Merton não carrega quaisquer expectativas: filhos não são esperados, o sexo não é um ambiente desconhecido, dinheiro não é um problema e as experiências vividas anteriormente apenas os tornam mais seguros de suas decisões. Por mais que enfrentem muitos problemas ao longo do caminho, a postura de Isobel, tanto quanto a de Lorde Merton, jamais se altera, da mesma forma que o sentimento que existe entre eles continua a existir independente daquilo que acontece externamente e longe do seu controle.

Assim, quando Larry (Charlie Anson), o detestável filho de Lorde Merton, passa a interferir nos planos do casal, temendo que Isobel esteja interessada na herança da família, ele apenas assume o papel de pedra no sapato do pai e consegue adiar os planos do casamento, mas só porque Isobel não aceitaria ser a barreira entre um pai e um filho — ainda que o filho em questão fosse Larry — e sem efetivamente separá-los. Mais tarde, Amelia (Phoebe Sparrow), a igualmente detestável esposa de Larry, vai tentar reacender os planos do casamento tendo em vista seus próprios interesses, mas o plano é imediatamente deixado de lado quando Lorde Merton é diagnosticado com um tipo raro de anemia que o levaria à morte em pouco tempo. Amelia passa, então, a confiná-lo dentro de casa, limitando-o à convivência pouco agradável de uma família interesseira e aos cuidados que fingia dispensar-lhe. A doença, contudo, também desencadeia uma nova postura por parte de Isobel, que deixa de estar tão preocupada em ser o problema para aquela família para ser a única pessoa capaz de por um ponto final àquela situação. Se a perspectiva da morte lhe assusta, é também ela que a impulsiona a resgatar Lorde Merton para que eles possam ter a chance de dividir uma vida, ainda que por poucos meses. A demonstração pública de afeto em meio a uma situação dramática também indica que Downton Abbey nunca tivera a intenção de separá-los, em um desfecho trágico — algo que se comprova mais tarde, com a descoberta sobre o verdadeiro diagnóstico de Lorde Merton, que poderia viver ainda por muitos anos.

Downton Abbey
Mrs. Hughes (Phyllis Logan) e Mr. Carson (Jim Carter).

Nenhum casal tem sua relação construída com tanta delicadeza quanto Mrs. Hughes (Phyllis Logan) e Mr. Carson (Jim Carter), respectivamente governanta e mordomo de Downton, no entanto. Ao longo dos anos, Downton Abbey trabalha de forma análoga com diferentes aspectos da vida de ambos, da relação com o trabalho até o passado que por vezes vai confrontá-los ou a perspectiva de uma velhice solitária, sem filhos e sem família, que o futuro lhes parece reservar. A rotina torna mais fácil o surgimento de uma amizade, em que cuidado e pequenas gentilezas partem numa via de mão dupla, e a amizade é o que dá base para o desenvolvimento do romance.

Tanto Carson quanto Mrs. Hughes encontram no outro confiança e compreensão não apenas sobre aquilo que diz respeito ao trabalho e a propriedade que gerenciam, mas também medos, angústias, sonhos e frustrações. A tensão que existe é perceptível desde o início da série, o que torna fácil a tarefa de imaginá-los como casal. Downton Abbey, no entanto, permite que a relação se desenvolva lentamente até, por fim, ser levada a um novo patamar — possível apenas porque, mais do que a convivência, Carson e Mrs. Hughes são capazes de enxergar no outro uma companhia, alguém em quem se apoiar, crescer junto e dividir a vida.

A forma desajeitada como ocorre a transição do relacionamento (da amizade para o amor romântico) revela que, tanto para um quanto para o outro, a possibilidade de reencontrar o amor naquele momento ainda lhes parecia muito remota. Como duas pessoas que se amam, mas ainda não têm a chance de expor os próprios sentimentos, Carson e Mrs. Hughes vão, por algum tempo, estudar a ideia de um romance e do que podem construir juntos sem a expectativa de que seus planos se tornem realidade. Quando a compra de uma casa e o projeto de um pequeno negócio local ganham contornos mais realistas, Mrs. Hughes sente que não pode assumir tamanha responsabilidade: ela confessa o quanto fora maravilhoso construir sonhos ao lado de Carson, mas que jamais poderia ser a pessoa a realizá-los. Há mais em sua fala do que é realmente exposto por ela, como o fato de ser a única responsável por sua irmã senil. Carson, no entanto, não se afasta; pelo contrário, ele parece se aproximar mais. A vulnerabilidade de Mrs. Hughes encoraja o próprio Carson a sê-lo, pedindo-a em casamento, e Mrs Hughes aceita — duas vidas outrora solitárias que são deixadas de lado para que uma nova, construída em conjunto, possa surgir.

Como qualquer casal, é natural que surjam problemas no caminho, muitos dos quais precisam resolvidos mesmo antes do casamento se concretizar. Mas poucos se relacionam com o fato de serem pessoas mais velhas: a maior parte dos conflitos são resultado da convivência, da projeção de expectativas e do fato de serem pessoas que, até aquele momento, haviam vivido solitariamente e estavam confortáveis nessa posição. São conflitos essencialmente humanos e por mais que eles discutam, reclamem, façam cara feia e desaprovem o comportamento alheio, nenhuma dessas questões colocam em xeque o sentimento que nutrem mutuamente.

Mesmo quando aborda temas mais complexos, como sexo na velhice, Downton Abbey é bastante cuidadosa. Em um dos momentos mais marcantes protagonizados pelo casal (e também um dos mais importantes em sua trajetória), Mrs. Hughes vai atentar-se ao fato de que já não é mais uma moça e que se corpo sofreu mudanças com o passar dos anos. Ela teme que esse seja um problema para Carson e que a realidade possa decepcioná-lo. Sem considerar que o contrário também é uma verdade, ela sugere que os dois tenham um casamento sem sexo, fraterno. Carson responde que aquilo não seria possível para ele, que desejava viver um casamento pleno com a mulher que ama — mulher esta que, aos seus olhos, era perfeita exatamente como é. E Mrs. Hughes entende, ainda que Carson estivesse disposto a liberá-la do compromisso caso não se sentisse confortável com aqueles termos: por fim, Mrs. Hughes mantém o compromisso, porque o ama, claro, mas principalmente porque Carson também a faz se sentir segura, e por isso ela acredita em suas palavras, e pode viver ao lado dele seu grande amor.

Os dois se casam em uma pequena e adorável cerimônia, na igreja local, onde dizem “sim” um ao outro, e ao fazê-lo, estão dizendo que outras pessoas podem fazer o mesmo. Por muito tempo a ficção dedicou seus esforços a construir histórias de amor que nunca eram tão abrangentes quanto poderiam ser. Mas se o amor é, em si mesmo, um sentimento tão repleto de possibilidades, por que confiná-lo a uma única narrativa? Downton Abbey mostra que o amor romântico pode existir em qualquer idade e pode ser tão belo, prazeroso e poético quanto são os romances da juventude. Como Violet, a série acredita, acima de tudo, no amor. É uma lição que muitos ainda precisam aprender.

1 comentário

  1. Já revi Downton Abbey muitas vezes e fui procurar uma foto do nosso amado Chelsie (Charles Carson e Elsie Hughes), e fiquei muito feliz com seu texto, Os relacionamentos maduros na série são lindos, principalmente desses dois. Também vejo no primeiro episodio um que de algo mais, Parabéns!!!!!

Fechado para novos comentários.