Categorias: LITERATURA

Eu, Tituba, Feiticeira de Salém: o dever de sobreviver entre lacunas e ambiguidades

Considerada o agente principal dos fenômenos que desembocaram na perseguição massiva a supostas bruxas na aldeia de Salém, no estado de Massachusetts, EUA, Tituba, escravizada submetida à família Parris, esteve presa por 15 meses em Boston, sendo julgada e livrada da forca no ano de 1693. Sabe-se muito pouco acerca da vida desta mulher, porque a historiografia da época dá pouca atenção à figura desta escravizada: pouco faz além de registrar os relatos fantásticos de contatos com demônios e outras criaturas sobrenaturais. Neste texto, a imaginação de Maryse Condé será comparada e aliada com o que se descobriu ou é especulado sobre Tituba depois da publicação do romance, como forma de desvendar mais sobre a trajetória desta personagem tão fascinante.

Condé imaginou Tituba como uma descendente de axântis¹, conhecidos pela habilidade como guerreiros e pelo simpático Anansi, figura do folclore que ficou famosa na série Deuses Americanos, inspirada no livro homônimo de Neil Gaiman, que é mencionada de passagem quando Betsey Parris e Abigail Williams pedem para que Tituba lhes contem histórias de sua terra. Vendida em Barbados para o Reverendo Parris, Samuel, é especulado que o local real de nascimento de Tituba seja em algum lugar situado na atual Venezuela e que ela seja de origem nativo-americana. Entretanto, tais suposições de origem não são mutuamente excludentes: a organização social dos quilombos e seus correspondentes latino americanos (os palenques colombianos, por exemplo) aliam diversidade étnica de indivíduos, podendo, em tese, abrigar pessoas de origem  africana e originária americana.

Durante a leitura, muitos dos elementos de cosmovisão e religião dos axânti (povo da etnia Akan) e demais povos que viviam na região de Gana (território que não coincide com o país atual chamado Gana, atenção) é evidenciada, e uma coisa há de se ter por certa: segundo a definição ocidental, greco-romana, de fato Tituba aproximava-se da definição de “bruxa”, uma mulher com conhecimento e poder sobre ervas, poções e forças da natureza, algo perfeitamente natural na cultura dos axânti e muitos outros povos de originários da África e América, mas visto com assombro pelo cristianismo lotado de noções do sobrenatural que não existem em outras visões de mundo: a convivência com espíritos, os “invisíveis” de nossa bruxa, era para ela algo comum e que lhe propiciava enorme conforto. Nada tinha em comum com a visões de espíritos malignos que Betsey Parris e Abigail Williams afirmaram ver sob influência de Tituba.

Na ficção de Condé, Tituba nasce do estupro de sua mãe, Abena, no navio que levava às Américas a adolescente capturada que teve os pais assassinados por resistirem à conquista. As descrições dadas pela narradora atiçam a imaginação de modo gráfico: não há como falar do maior crime contra a humanidade em tons suaves e indolores. A escravização de seres humanos é um tema que exala dores, violências, lutos e por todos os lados, não há floreios possíveis. Nas passagens em que Tituba se alegra, descobre, ama e cria, não se descreve no livro nada próximo das rotinas de escravização. Rejeitada pela mãe na infância, sendo uma lembrança da dor e humilhação do estupro da viagem para as Américas, a criança encontra afeição em Yao, companheiro de sua mãe, que lhe dá o nome, único, e a acolhe com  amor paternal. Aos sete anos Tituba testemunha o enforcamento da mãe por ter ferido seu senhor, que tentou estuprá-la. Yao é vendido para outra fazenda e comete suicídio na ida.

A criança então passa a vagar pelos arredores da fazenda e é acolhida por Man Yaya, que além de cuidar de Tituba com dedicação e amor, também a inicia nas artes da comunicação com os invisíveis e no manejo de raízes e fórmulas para a cura de doenças. Man Yaya deixa o mundo dos vivos na adolescência da protagonista, e ela passa a viver sozinha até encontrar anos depois um homem que a atrai de modo hipnotizante: John Indien, descrito por ele mesmo como filho de um dos últimos aruaques com uma nagô. Tituba tem muita dificuldade em compreender o que se passa com ela, antes tão plena em sua solidão, agora a desejar a companhia desse homem de modos furtivos.

Contrariando os conselhos de Man Yaya e de Abena, que são veementes em alertar a filha que John Indien é um homem ardiloso e desleal, Tituba aceita se mudar com seu amado para a propriedade da senhora de Indien, Susanna Endicott, e assim, por extensão a seu marido, passa também a ter o status de escravizada. Não suportando mais as constantes humilhações a que é submetida por Susanna, Tituba reúne forças para condenar sua senhora a uma doença misteriosa. Como vingança, Susanna vende Indien e a esposa para um reverendo que está deixando a ilha de Barbados rumo ao porto de Boston, nos Estados Unidos.

Samuel Parris mostra-se um homem odioso, cuja tentativa de transparecer ascese religiosa emana apenas uma amargura fria e ao mesmo tempo violenta. Julgando-se muito devoto e merecedor de um bom cargo, mesmo sem ter terminado os estudos teológicos, Parris leva a família a sucessivas viagens em torno de posição, expondo seus parentes à toda forma de carência e penúria. A esposa do reverendo, Elisabeth Parris, e sua filha, Betsey, se mostram amigáveis com Tituba e aceitam suas virtudes curativas. No entanto, Abigail, sobrinha de Elisabeth, acolhida pela família Parris quando da morte de seus pais, provoca maus pressentimentos em Tituba por seus modos dissimulados e  arrogantes.

A chegada na aldeia de Salém, onde se instalam em uma casa precária (onde mulheres de reverendos anteriores padeceram de doenças desconhecidas, o que alimenta ainda mais o ar de superstição e maldição na aldeia), é acompanhada pelo amontoado de curiosos em torno do Reverendo Parris. Os modos pouco amigáveis do pastor logo o impedem de conquistar o que reivindicava da população, e a estadia na paróquia segue com muita tensão, acompanhando os estados de saúde delicados de Elisabeth e Betsey. Tituba, então, inicia tratamentos rituais com ervas para melhorar o estado de ambas e consegue que elas de fato aumentem a vitalidade. Contudo, Betsey comenta sobre os banhos e curas com Abigail, que, sem compreender as artes curativas de Tituba, atribui estas práticas à bruxaria tão alardeada na Igreja de seu tio como forma de invocação de demônios.

É muito interessante a forma com que Condé descreve como a incompreensão de visões de mundo diferentes da cristã catalisa toda violência reprimida no povoado, sintetizando bem a atmosfera opressiva puritana daquela época. A superstição exacerbada é uma das características mais marcantes da religiosidade ultraconservadora até os dias atuais. A “bruxaria” de Tituba e de outras mulheres de vida incomum é apenas uma desculpa para a descarga de violência, corrupção e misoginia que há muito envenenava o povoado. Os rumores são primeiramente providos por meio de Abigail, que logo, não isenta de má-fé, os espalha entre as demais jovens do povoado, que agora formam um verdadeiro séquito ao seu redor: antes, se refugiavam na cozinha de Tituba para ouvir as histórias consideradas maravilhosas; depois, migraram para o primeiro andar da casa onde se dedicavam a experimentações ocultistas como forma de aplacar o tédio e a desesperança de seus dias.

Afastada de John Indien que agora trabalha como escravizado de ganho para um senhor a certa distância de Salém, só podendo vir para casa em algumas noites exaurido de cansaço, Tituba sucumbe à tristeza e desatenção profundas, o que engrossa os rumores de bruxaria contra ela. Logo, sugestões e convites abertos para que ela faça o mal para pessoas na aldeia começam a surgir, os quais ela declina todos. O ultraje demonstrado por Tituba ofende algumas pessoas, que esperam da escravizada apenas a passividade diante das ordens dadas alimenta ainda mais os ânimos contra esta mulher.

Então, precipitando os acontecimentos que levaram aos julgamentos em massa, Betsey começa a ter acessos parecidos a convulsões, e quando indagada sobre, diz que um demônio a atormenta por meio de Tituba. Logo Abigail segue a prima nestes acessos e chama a atenção de toda a aldeia. Médicos e juízes então são convocados para pareceres acerca do que está ocorrendo, e há unanimidade em atribuir os acontecimentos a supostas aparições e possessões demoníacas: assim, Tituba é interrogada sobre seu suposto pacto com o demônio e instada a entregar quem se dedica às atividades com ela. Acuada e tomada por ressentimento por toda violência e humilhação a que foi submetida, ela entrega dos nomes: Sra. Good, uma mendiga da região e Sra. Osborne, famosa pela excentricidade na aldeia.

Tituba então é encarcerada e em sua cela conhece Hester, uma mulher que declara estar aprisionada por ter cometido adultério e se encontra gestante de uma criança prova de seu crime, além de uma letra escarlate junto a seu corpo. Trata-se de Hester Prynne, a protagonista do romance A Letra Escarlate, de autoria de Nathaniel Hawthorne. A mulher muito branca com uma longa cabeleira negra e olhos igualmente escuros adverte que “brancos ou negros, a vida é boa demais para os homens”, o que logo se mostra verdade para a escravizada: John Indien, enquanto a esposa está na prisão, depõe contra a própria mulher, dizendo que ela também convocava o Maligno para atormentá-lo, livrando-se, desta forma, de todas as possíveis acusações que pudessem cair sobre ele.

“Por que as mulheres não conseguem ficar sem os homens?”, indaga Tituba tomada pela dor violenta de ter sido traída pelo cínico John Indien, que, no entanto, estava certo ao advertir Tituba que o importante era conseguir sobreviver, usando quais fossem as artimanhas disponíveis: “o dever do escravizado é sobreviver”, diz Indien logo no início do romance. Inspirada por esses conselhos, Tituba segue em suas delações para aliviar seu tempo detida. Em sua defesa, argumenta que, como escravizada, toda a vida se deu em torno de servir quem fosse, e quando o demônio ordenou que ela o servisse, ela anuiu como faria com qualquer senhor. Desta forma, Tituba escapou da forca e permaneceu presa porque Samuel Parris não queria pagar as taxas de liberação.

Eu, Tituba, Feiticeira de Salém

Embora contem com distância de quase um século, estudar o Dossiê Esperança Garcia ajudou a sanar dúvidas que criei durante e após a leitura de Eu, Tituba, Feiticeira de Salém, de Maryse Condé. Minha principal indagação era: mas se era tratada como coisa, por que Tituba foi processada e inocentada da forca (a despeito da crença ampla, mulheres acusadas de feitiçaria nas colônias estadunidenses não eram queimadas em fogueiras, e sim enforcadas em sua maioria), se era considerada rés, coisa? Como foi personalizada para ser sujeito capaz de cometer crimes? A defesa de Tituba, de que ela era apenas um ente servil, escusando-se da responsabilidade pelo crime, dá uma pista sobre a complexidade da situação jurídica dos escravizados: seu status variava de acordo com o interesse pecuniário.

A resposta desta pergunta se desenhou em um fato jurídico que também explica os dias atuais. Em todo o mundo que seguia o sistema de escravização ocidental de pessoas (o sistema de escravização mercantil, voltado para a exploração capitalista de trabalho escravo, vale a pena distinguir), escravizados respondiam na esfera penal para isentar os senhores de lidar com custas processuais que estivessem acima do valor pago pelo escravizado-réu. Isto explica também o tempo que Tituba permaneceu encarcerada após ser declarada inocente, acumulando dívidas porque seu senhor não quis pagar as expensas para libertá-la. Este fato, o de responder por si para desobrigar penalmente os senhores, ocasionava a possibilidade de citação, julgamento e punição do escravizado como réu, o que lhe personalizava e distinguia de um semovente qualquer. Invocando, ao contrário, seu status como propriedade servil, argumento por sinal muito razoável, Tituba conseguiu preservar sua vida. Sem dano financeiro evidente ou multas a pagar, permaneceu presa apenas porque taxas se acumulavam. A partir destas brechas invocadas pelo discurso ambíguo e ilógico que alicerçava o sistema escravocrata em todo ocidente, muitos ancestrais nossos também sobreviveram.  Pesquisando sobre a situação jurídica de Tituba, também me veio à mente a história de Margaret Garner, escravizada que matou sua filha de dois anos para evitar a escravização da criança quando de sua captura como fugitiva, que inspirou o clássico Amada, de Toni Morrison.

Este fato, a possibilidade de personificação do escravizado, com responsabilização particularizada apenas na esfera penal-indenizatória (ou seja, patrimonialista), explica os dias atuais porque é a raiz do pensamento de que pessoas negras são sujeitos apenas do direito penal e respondem predominantemente a danos materiais causados a outrem. Carecendo de direitos básicos na esfera civil, contavam apenas com garantias que evitavam os maus tratos extremos e garantiam que os escravizados pudessem seguir os ritos das religiões cristãs que eventualmente professassem.

Quinze meses depois da prisão de Tituba, um senhor corcunda de aspecto grotesco paga as expensas da estadia da escravizada, adquirindo sua propriedade e admitindo a mulher como copeira de sua casa e ama de seus filhos. É o judeu português Benjamin Cohen-D’Azevedo, com quem Tituba acaba por se envolver amorosamente, e a quem proporciona contatos com a falecida esposa através das invocações com os invisíveis de que era capaz. Entretanto, o idílio logo se converte em tormenta e a perseguição aos judeus se manifesta com o incêndio da casa de Benjamin, que causa a morte de todos os nove filhos do mercador.

Após a tragédia, Benjamin concede à Tituba o desejo de retornar a Barbados. Em sua terra natal, Tituba junta-se primeiro a Christopher, um homem que sonha com imortalidade, e depois passa a viver na choupana que compartilhou com Man Yaya. Algum tempo depois, os escravizados da região por ela tratados trazem o jovem Iphigene à cabana e este se torna seu companheiro, com quem planeja uma revolta de escravizados. No entanto, a insurreição é descoberta na véspera, e Tituba é enforcada pela conspiração e retorna ao mundo dos invisíveis, de onde narra a história de sua vida.


¹ Provavelmente, ao pesquisar para a composição do livro, Condé aproximou a provável data de nascimento de Tituba às etnias que desembarcaram nos principais portos do Caribe, em que se situa a ilha de Barbados, onde se supõe ser a origem da escravizada: é esta uma das poucas maneiras de nós, negros em diáspora, chegarmos a saber algo das origens familiares. Desta forma veio a especulação da origem axânti (construtores de um império conhecido pela grandeza e excelência na disciplina militar) de Tituba. No entanto, os registros históricos não falam de Tituba como uma mulher afrodescendente, e sim de uma indígena de uma localidade na atual Venezuela, escravizada, levada para Barbados e de lá para Salem por Samuel Parris. O maior consenso é sobre as habilidades de cura de Tituba.