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A Sociedade da Neve: amizade, sobrevivência e moralidade na Cordilheira dos Andes

Embora o “selo” de “baseado em fatos reais” tenha conquistado um status que desperta interesse automático no público, por vezes, este tipo de produção segue por um caminho mais explorador do que comprometido com a verdade sugerida pelo “gênero”. De certa forma, isso acontece porque o ato de transformar essas histórias em um produto audiovisual traz consigo a obrigatoriedade de entreter e engajar o público, seja por meio da revolta provocada por crimes violentos ou pela compaixão gerada por tragédias, como a enfrentada pelo time de rúgbi Old Christians em 1972.

Composta por rapazes jovens, a equipe deixou o Uruguai no dia 13 de outubro para um jogo que aconteceria no Chile. Entretanto, o avião que a transportava colidiu com a Cordilheira dos Andes. Ainda que as buscas tenham começado rapidamente, o rigor do clima da região e a imensidão da cadeia de montanhas fez com que elas fossem abandonadas alguns dias depois. Um dos fatores motivadores para essa decisão foi que nenhum dos acidentes anteriores na Cordilheira contou com sobreviventes. Assim, para as autoridades, trava-se mais de recuperar alguma coisa que servisse de consolo às famílias do que trazer aqueles rapazes de volta para seus lares. E eles, graças a um rádio improvisado, sabiam disso. Logo, todas as decisões que tomaram a partir deste episódio tiveram somente um objetivo: assegurar que ainda estariam vivos quando as buscas fossem retomadas.

A Sociedade da Neve

Ainda que seja relativamente fácil compreender as escolhas dos garotos, existem questões morais cercando-as que, até hoje, fazem com que este caso desperte interesse e gere debates. Portanto, ao longo dos anos, a história do Old Christians foi contada de diversos pontos de vista, como o filme Vivos (Alive, 1993). Então, o que sobraria para ser revisitado em 2024? Para J.A Bayona, diretor de A Sociedade da Neve (La sociedad de la nieve, 2023), a resposta é, ao mesmo tempo, óbvia e fugidia: os laços de amizade e o companheirismo que mantiveram os sobreviventes do acidente determinados a voltar para casa durante aqueles 72 dias. Desse modo, tomando como ponto de partida o livro homônimo de Pablo Vierci, Bayona usa as suas escolhas discursivas e estéticas para contar uma história tocante sobre fé — em um sentido maior do que o religioso, embora ele se faça presente.

Primeiramente, é importante tirar do caminho aquilo que torna o acidente comentado até hoje: o canibalismo. Ou, como os sobreviventes preferem chamar, antropofagia. Embora ele seja mencionado e debatido pelos rapazes, inclusive sob o ponto de vista Católico, J.A Bayona não dedica a esse aspecto da trama mais do que alguns minutos. Isso pode ser considerado um acerto porque seguir por um caminho gráfico, além de explorador, seria um contrassenso dada a abordagem de A Sociedade da Neve. De acordo com o diretor, um dos seus maiores desejos com este projeto era fazer um filme que também honrasse as pessoas que não conseguiram voltar para casa. Logo, mostrar os seus corpos sendo mutilados, independente do motivo, seria incoerente, em especial quando se considera que a narração do filme é feita por Numa Turcatti (Enzo Vogrincic), que morreu pouco antes do resgate.

A Sociedade da Neve

Optar por ter um narrador que não sobreviveu é algo bastante inteligente. Em uma trama que quer ser pessoal e imersiva, isso serve para nos aproximar dos personagens. Numa oferece uma perspectiva privilegiada acerca dos sentimentos e conflitos morais do grupo, assumindo uma voz que é muito mais coletiva do que individual. Entretanto, o que torna essa decisão particularmente acertada é a maneira como ela reforça o olhar que J.A Bayona deseja lançar sobre a história. Numa busca compreensão. Para isso, ele tenta a todo tempo fazer com que o público sinta uma fração do desespero experimentado pelos sobreviventes. Portanto, ao ouvirmos o que ele tem a dizer, aqueles 72 dias deixam de ser sobre limites ultrapassados. Eles deixam de ser sobre o que é aceitável ou não porque não existe espaço para códigos pregressos. Existe uma nova sociedade, forjada com base na necessidade, e é esperado que ela naturalize coisas que em qualquer outro contexto seriam inaceitáveis. Sem dúvidas, é a partir da voz de Numa que conseguimos entender esses novos padrões, bem como os sacrifícios feitos por cada um dos jovens em prol do grupo.

Desse modo, J.A Bayona transforma o público em um dos sobreviventes do acidente. O diretor nos abandona junto com os garotos para tentar combater o punitivismo e os julgamentos que seguiram a sua volta para casa. Embora A Sociedade da Neve não chegue a se aprofundar nessas questões, o retorno foi cercado de sensacionalismo midiático e alguns veículos de imprensa chegaram a insinuar que os rapazes mataram os seus companheiros de voo para consumir a sua carne. Esse tipo de comentário gerou uma resposta da Igreja Católica, que chegou a declarar o seu apoio aos sobreviventes, afirmando que seria um “crime” muito maior contra a fé não fazer o que fosse preciso para preservar a própria vida, mas nem essa declaração serviu para silenciar a imprensa. Ainda sobre isso, é interessante comentar que, embora algumas pessoas tenham sentido falta de uma discussão maior a respeito das repercussões do caso, este conteúdo não dialoga com os objetivos do longa-metragem e tem pouco a oferecer. Na verdade, incluir trechos maiores sobre isso poderia esvaziar o que foi construído até ali, visto que este é um filme a respeito de pessoas que precisaram se sacrificar por mais um dia e não uma história de superação, como muitos insistem em trata-lá ao se referir ao acidente como Milagre dos Andes.

A Sociedade da Neve

Desse modo, o interesse de J.A Bayona recai muito mais sobre a migalha de esperança que serviu como sustentação para os rapazes do Old Christians. Além disso, A Sociedade da Neve se alimenta da cumplicidade entre aqueles garotos e dos efeitos da paisagem opressora no seu psicológico. Inclusive, um dos grandes trunfos do filme é a maneira como ele retrata o Vale das Lágrimas sem se esquecer da importância do micro. Se os planos abertos impressionam pela imensidão da cadeia de montanhas e a brancura da neve, os internos, feitos dentro da fuselagem do avião, são sufocantes. O resquício de luminosidade, em especial na impactante cena da avalanche, é usado para enfatizar a expressão facial dos rapazes, permitindo que o público perceba o seu desespero e ressaltando o trabalho físico dos atores. A fotografia desses trechos direciona o nosso olhar para o elemento humano devido à ausência de espaço. Assim, somos forçados a confrontar o que os personagens sentem e, a partir disso, qualquer camada de julgamento moral se torna irrelevante — o que, mais uma vez, reforça que dedicar mais tempo ao retorno do time de rúgbi seria um equívoco.

Dessa maneira, quem procura uma produção que funcione como documento, talvez, não tenha o que ganhar ao assistir a este longa. Embora atento aos fatos e fiel a eles, J.A Bayona não quer conseguir respostas emocionais que surjam a partir do choque. O que o diretor deseja é mais profundo porque demanda compreensão e empatia genuínas. Em uma época de ascensão rápida de produtos como Dhamer: Um Canibal Americano, pouco tímidos ao explorar a dor das vítimas em prol do entretenimento fácil, A Sociedade da Neve caminha, orgulhosamente, na contramão e propõe um novo tipo de tratamento para este tipo de ocorrência. Um tratamento que, talvez, não caia rapidamente no gosto popular, mas que com certeza é mais respeitoso e humano, além de muito mais honesto.

A Sociedade da Neve recebeu 2 indicações ao Oscar nas categorias de: Melhor Filme Internacional e Melhor Cabelo e Maquiagem.