Categorias: TV

The Sinner, segunda temporada: os silêncios que escondem a violência

A segunda temporada de The Sinner, que estreou no Brasil em 9 de novembro de 2018, não continuou a história de Cora Tannetti (Jessica Biel), mas manteve a premissa de explicar o porquê de um assassinato. Com um novo suspeito, novos atores e outra cidade, a única semelhança é a presença silenciosa de Harry Ambrose (Bill Pullman), detetive chamado pela encarregada da investigação, Heather Novack (Natalie Paul). A policial é designada para seu primeiro caso como detetive e resolve pedir ajuda ao amigo da família e conterrâneo devido às circunstâncias peculiares do ocorrido: o principal suspeito é um garoto de 13 anos, acusado de matar os pais envenenados.

Atenção: esse texto contém spoilers!

Julian Walker (Elisha Hening) confessa rapidamente ter matado Bess e Adam, mas sem motivos aparentes, o que deixa os policiais e a própria comunidade de Keller, uma cidade pequena dos Estados Unidos, e cheia de segredos, confusos. Aos poucos e de forma não-linear, cheia de flashbacks e narrativas entrelaçadas, esses segredos vão sendo revelados e os pontos se conectam, numa busca pela motivação de Julian que acaba recaindo na sua filiação, já que Bess e Adam não são seus pais verdadeiros.

A Ambrose, personagem que agradou público e crítica na primeira temporada de The Sinner, foi dada uma nova história para investigar e aos espectadores, mais informações sobre a vida do detetive. Logo no primeiro episódio somos confrontados com um flashback: uma casa pegando fogo e certa criança pequena no meio do incêndio. Como a história dessa criança e do acusado — que também é jovem, numa das várias simetrias exploradas na série — se entrelaçam ao longo dos oito episódios é interessante de assistir, seguindo o detetive que já abre o episódio com uma de suas reflexões sobre plantas (que ele adora): “não existem ângulos retos na natureza”, o que quer dizer que a investigação também não é ser simples ou linear.

The Sinner

É o começo de uma empreitada que vai lidar com temas delicados: além de assassinato, abusos e traumas, manipulação psicológica, assédio e transtornos, tudo entrelaçado pela culpa. Não é clichê nem didática demais e os personagens são complexos e nuançados. O que desencadeia um impulso assassino? Como nos tornamos quem somos?

Esse é o ponto mais interessante sobre The Sinner; a exploração de temáticas psicológicas, que envolvem o inconsciente e aspectos não explorados da vida humana, de maneira elegante. Tratar de elementos do universo da psicanálise não é exclusividade dessa temporada, como Marcos Malagris desenvolve, mas sem dúvidas isso fica mais claro em seu segundo ano e a culpa é central no desenvolvimento da narrativa de praticamente todos os personagens, em análise de Boo Mesquita. Adiciono a esse elemento outro que tem papel fundamental na história de Julian e companhia: os silêncios. Material da psicanálise tanto quanto a fala: “não só o silêncio, mas a própria possibilidade de silenciar durante uma sessão, tornou-se muito importante para o trabalho psicanalítico, na medida em que se fez índice daquilo que não consegue passar à palavra e que, por isso, traumatiza”, diz Alessandra Carreira.

A história inicial simples é de um casal jovem levando o filho pré-adolescente às Cataratas do Niágara. O casal possui alguns livros de Carl Jung. Tudo leva a crer que Julian possui algum tipo de transtorno psicológico, e aparece numa sessão de terapia com Vera (Carrie Coon) na qual somos apresentados ao Shadow Julian [Julian Sombrio]: a versão do self que é má, que faz coisas ruins, se descontrola. Sempre as sessões são realizadas com um metrônomo (aparelho que emite sons e marca o ritmo, utilizado especialmente por cantores e musicistas), que acrescenta estranheza à série. Além disso, Julian coloca pedras nos olhos dos mortos, atitude que remete à mitologia grega e à espécie de pedágio devido ao barqueiro Caronte: sem moeda, não há passagem e sim a condenação eterna ao purgatório.

The Sinner

Apesar de bastante bem feitas, algumas cenas são explícitas demais e levantam a questão do limite da exposição da violência como recurso narrativo: será preciso tudo isso? A morte de Bess e Adam é exposta em detalhes e closes, assim como as reações de Julian ao ver a cena. E esse é o primeiro mistério: como uma criança envenena e assiste a morte de dois adultos, ao mesmo tempo em que fica horrorizado e se desespera dizendo “Não era para ter doído”? Apesar da aparente frieza ou distanciamento ao presenciar a morte, Julian fica bastante abalado, a ponto de fazer xixi, chorar e se machucar, além de se esconder até a polícia o encontrar.

Quando a infância como espaço/tempo da não-violência, uma fase sagrada e pura, é violada, o que se deve fazer? Ele deve ser julgado e punido como criança ou como adulto? Quais as lacunas no sistema de justiça e como lidamos com elas? Ambrose dá a tônica: “Quando um garoto tão jovem mata, nunca é somente sua culpa.” Se é necessário uma aldeia para criar uma criança, também deve ser para fazê-la matar. A dualidade acompanha toda a temporada, mesmo o garoto aparentando bastante maturidade para a idade em certas situações, outras nos mostram que não é bem assim. As circunstâncias da sua criação o fizeram pular certas etapas e impediram que ele desenvolvesse traquejo social, entrasse em contato com outras crianças e aprendesse certas regras da convivência em sociedade.

Ele — assim como Bess e Adam — faz parte de uma comunidade localizada nos arredores de Keller, chamada Mosswood. No meio de uma reserva florestal, Mosswood se apresenta como um lugar de colaboração; todos ajudam a todos, vivem em coletividade, plantam sua própria comida, criam animais, entram em contato com seus traumas em sessões de “trabalho”, se reúnem para conversar em volta de fogueiras à noite, dizem buscar o autoconhecimento e a evolução espiritual através dos ensinamentos do Farol/The Beacon (Brennan Brown).

Conhecemos a comunidade no princípio através de flashbacks de Heather quando ela e Marin (Hannah Gross), sua amiga e interesse amoroso, vão até lá em uma noite e participam de um ritual. O lado místico fica por conta de um monólito dentro de um celeiro onde acontecem as sessões, e confere à comunidade um ar de seita secreta. O silêncio em torno do que acontece na comunidade é como uma manta que cobre todos os envolvidos; parece haver um acordo tácito na cidade: ninguém fala sobre o assunto e qualquer conversa é desestimulada. Jack (Tracy Letts), que é pai de Heather e amigo de Ambrose, aconselha não uma, mas várias vezes a não prosseguirem nessa linha de investigação. O promotor, os outros policiais, cidadãos, quase todos abordados sabem algo sobre Mosswood e principalmente sabem que é melhor se afastar.

Rebecca Solnitt vai dizer no livro A Mãe de Todas as Perguntas que o silêncio é algo imposto (em oposição à quietude), que vira uma história de opressão e apagamento e constitui fundamentalmente a história das mulheres. “Quem é e quem não é ouvido define o status quo”, e o status quo só é rompido em Keller por acaso, com a morte perpetrada por Julian. A autora também diz que “todo homem é uma ilha”, e desenvolve que eles trocam esse silêncio por poder e pertencimento ao grupo: a socialização masculina é construída em torno de silêncios, qualquer expressão de vulnerabilidade, desconforto, fracasso é rejeitada. Isso se reflete em homens violentos e relações violentas, mas que se sentem superiores às mulheres e crianças e são protegidos pelo ambiente sem delatores que se cria.

Além de remeter aos casos de Wild Wild Country (série documental que mostra o início da comunidade de Osho e as polêmicas em torno do guru), NXIVM (seita com conexões em Hollywood revelada pelo New York Times em que mulheres eram escravizadas e marcadas na pele), o caso João de Deus e tantos outros, Mosswood faz refletir sobre lideranças masculinas que se aproveitam da relação de confiança e da vulnerabilidade de mulheres que acreditam em suas práticas, ensinamentos, religião. O líder de Mosswood em The Sinner começa com um projeto de construir uma comunidade que seja a melhor representação de si, mas chega em extremos de sacrifício animal e insinua a possibilidade de sacrifício humano; o personagem se aproveita de sua posição de autoridade, mantém relações sexuais com as moradoras do lugar dizendo ajudá-las a superarem seus medos, entre outros comportamentos bizarros. O que acaba por revelar como esse tipo de ambiente, cheio de tabus, é apenas mais um que perpetua o machismo e o patriarcado, e ainda mais difícil de ser descoberto e desconstruído pelo silêncio que protege os assediadores e as violências cometidas. Lembro do trabalho de Sabrina Bittencourt, ativista e feminista que lutou até o fim pelas mulheres que sofreram abusos de homens ligados a igrejas ou movimentos religiosos. Através da coragem de denunciar e da rede de apoio que criou, inspirou outras com histórias parecidas a fazer o mesmo e romper o silêncio. Que seu legado não seja esquecido.

Ao final da resenha da primeira temporada, critiquei alguns pontos da série, como a falta de carisma dos personagens e um desfecho pouco convincente, além do arrastar de alguns episódios no meio da temporada. Alinhada à algumas críticas (Rolling Stone, Vanity Fair, Collider) e contrária a grande maioria dos espectadores e alguns comentaristas, preferi essa temporada à primeira. Os elementos técnicos seguem sendo dignos de nota, com boa fotografia e direção de câmera, plot twists que funcionam e Jessica Biel na produção, além de ser uma temporada que possui uma maior diversidade de atores e histórias sem ficar caricato, e do ritmo ser mais consistente ao longo dos oito episódios.

Laura Bradley, em crítica da Vanity Fair, dá pontos à série por superar a história da primeira temporada. Alisson Keene (Collider) resume o final da temporada: não há perseguições barulhentas de carros, caça ao assassino, revelações nunca imaginadas, mas a “beleza de um final silencioso e satisfatório”, que explica o que tem de explicar e deixa os espectadores tirarem suas próprias conclusões sobre determinadas coisas. Diferente de mudar os arcos e agir sem coerência com o passado, a série também não cai na armadilha de querer explicar minuciosamente tudo e acredita no potencial de seus espectadores acompanharem a história (mesmo em uma narrativa fragmentada e cheia de caminhos) e finalizarem os arcos das personagens que não voltarão; Julian, Marin, Heather, Vera, Jack…

Ambrose, longe do sadomasoquismo, mas perto de Vera, dá mais um passo na sua história e entra em contato com seu trauma através de Julian. De alguma maneira, se enxerga no garoto (assim como se enxergava em Cora) e a turbulenta infância certamente tem influências nisso. Esse arco está longe de ser finalizado, como o showrunner da série comentou entrevista para Variety: se uma terceira temporada for aprovada, ele estará nela e saberemos mais da história do detetive misterioso e um pouco frágil, já que o caminho da personagem segue em direção à resolução dos traumas: “Nós temos que nos mover para todos os sentimentos em torno de nossos traumas, se quisermos passar por eles. Compartimentalizá-los é o que cria destruição e desequilíbrio.”

Para não idealizar a infância, é preciso lembrar que fazer coisas ruins, más e transgredir as regras não é comportamento exclusivo de adultos. Crianças e adolescentes, apesar de não poderem ser diagnosticados como psicopatas, podem ter transtorno de conduta ou personalidade. São vários os elementos que, combinados, sugerem esses transtornos, entre eles não se arrepender de ações maldosas. O crescimento emocional de Julian durante a temporada o afasta dessa possibilidade e expõe as consequências de ser criança alijada do convívio social com outras, crescendo em um ambiente opressor e traumático. Mosswood era uma bolha e mesmo com boas intenções, Vera e os outros moradores criaram alguém que não sabia regras sociais, não tinha as ferramentas para lidar com o que estava sentindo e possuía outra bússola moral, muito mais simples (em que mentir, por exemplo, era errado e passível de punição). A reflexão sobre parentalidade e controle permanecem: até que ponto se controla uma criança? Quais são os limites? Quem define esses limites?

O arrependimento e a vontade de fazer o certo, assumindo o crime e lidando com o futuro, no final, é uma redenção e esperança de um adulto mais capaz de lidar com as frustrações e com os próprios sentimentos, ao contrário de todos que o cercam. O final da temporada não traz revelações bombásticas (tudo já era meio previsível), mas conclui a sua trama com inegável sucesso.