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Duas rainhas em lados diametralmente opostos: entendendo a relação de Mary Stuart e Elizabeth I

8 de fevereiro de 1587. Mary Stuart, outrora rainha da Escócia, é morta após ser condenada por tramar o assassinato de sua prima, Elizabeth I, então rainha da Inglaterra. Forçada a abdicar ao trono anos antes, em julho de 1567, Mary vivia sob a custódia de Elizabeth há quase vinte anos — uma maneira de mantê-la afastada de potências rivais da Inglaterra, como a França e a Espanha, onde poderia se tornar uma importante aliada política. A execução, no entanto, aconteceria sem o conhecimento da rainha inglesa, que temia ser responsável pela morte de uma soberana e alegava não pretender realmente concretizar a sentença, preferindo utilizá-la como uma ameaça contra possíveis conspirações — e somente mais tarde é que ela seria devidamente informada sobre o ocorrido.

Mary foi sepultada inicialmente na Catedral de Peterborough, sendo transferida para a Abadia de Westminster em meados de 1612, onde também está localizado o túmulo de Elizabeth, falecida em 1603. Após a morte da monarca, Jaime VI & I, então rei da Escócia e filho de Mary Stuart, foi coroado também rei da Inglaterra, pondo fim à dinastia Tudor. Entretanto, mesmo após suas mortes, as vidas — e a relação — de ambas as rainhas continuariam a nutrir o interesse público que, pelo contrário, não viria a se esvair com o passar dos anos. De fato, Elizabeth I e Mary da Escócia foram mulheres tão complexas quanto complicadas, que ascenderam ao poder e ocuparam posições que por muito tempo haviam sido reservadas com exclusividade a herdeiros homens. Suas histórias inspiraram não apenas obras culturais, mas também estudos acadêmicos e biográficos que dedicaram-se a remontar e analisar fatos históricos, tanto quanto compreender suas motivações, decisões e conflitos à luz do contexto em que viviam.

Filha de Henrique VIII e Ana Bolena, Elizabeth ascendeu ao trono em 1558, quando tinha apenas vinte e cinco anos. Considerada herdeira presuntiva do monarca, ela perderia seu direito à sucessão após a execução da mãe, em 1536, acusada de adultério, incesto e alta traição, quando foi declarada filha ilegítima do rei. Com o nascimento de Eduardo VI, fruto do casamento de seu pai com Joana Seymour e herdeiro incontestável ao trono inglês, suas chances tornaram-se especialmente remotas; mesmo o testamento de Eduardo excluía suas meias-irmãs, Elizabeth e Mary I, de modo que, após seu falecimento, Joana Grey, sobrinha neta de Henrique VIII, seria declarada rainha. O domínio de Joana, porém, não durou muito e, nove dias após sua nomeação, ela foi deposta, aprisionada e condenada por alta traição, sendo posteriormente sentenciada à morte. Mary foi, então, reconhecida como legítima rainha da Inglaterra, sendo sucedida por Elizabeth após a sua morte.

Mary Stuart, por sua vez, nasceu em 1542, no Palácio de Linlithgow, na Escócia, e era filha do rei Jaime V, filho de Margaret Tudor, irmã de Henrique VIII, com Marie de Guise. Mary tornou-se rainha ainda bebê, sendo precedida por regentes, incluindo sua mãe, até que alcançasse a idade adulta e pudesse governar. Muito antes, no entanto, ela teria de resistir às investidas de Henrique VIII, que desejava vê-la desposar seu filho Eduardo — e a invasão à Escócia sob o pretexto de uni-los faria com que ela tivesse de ser rapidamente enviada à França, onde se casaria com o delfim François II, herdeiro do rei Henrique II. Após o falecimento do sogro, Mary tornou-se rainha consorte da França, fato que muito alarmou sua prima, que temia que, junto aos franceses, Mary reivindicasse o trono inglês. Sua situação, contudo, não era suficientemente sólida para liderar um ataque contra a Inglaterra, como também não era a situação de sua mãe, ela mesma em dificuldade para sobreviver como líder católica em um país que se tornara protestante.

Aconselhada por seus ministros, Elizabeth decidiu (não sem alguma resistência) apoiar os protestantes que se rebelavam contra o domínio de Mary Stuart na Escócia. Mas seus planos não foram bem-sucedidos e após a derrota das forças inglesas, William Cecil, um dos principais conselheiros da rainha, foi enviado até o país para restabelecer a paz entre os dois reinos. Durante a visita, foi elaborado um novo documento, o Tratado de Edimburgo, no qual os governos inglês e escocês garantiam a pacificidade do relacionamento entre ambos os impérios. O acordo, todavia, nunca foi ratificado pela própria Mary, que recusou-se a ceder seu direito ao trono inglês, mantendo-se como uma ameaça aos interesses de Elizabeth. Como católica, Mary não reconhecia Elizabeth como a verdadeira rainha da Inglaterra; o casamento de seus pais jamais fora legitimado pela Igreja Católica, o que fazia de Elizabeth uma mera bastarda — ao contrário de sua irmã e antecessora, Maria I, fruto da união entre Henrique VIII e Catarina de Aragão, sua primeira esposa.

Em 1560, com a morte do marido, Mary decidiu retornar à Escócia, viagem que logo mostrou-se mais complicada do que deveria, sobretudo porque Elizabeth, ainda enfurecida com a recusa da prima em assinar o tratado, negou-lhe o salvo-conduto para navegar pelo Canal da Mancha, obrigando-a a enfrentar os mares tempestuosos de Calais até Leith. Mais tarde, ao chegar ao seu destino, Mary seria novamente surpreendida pela ausência de uma delegação oficial que lhe prestasse as boas-vindas — um grande insulto à sua condição de rainha.

Mas essas seriam apenas algumas das muita dificuldades que Mary enfrentaria em seu retorno — muito provavelmente, a menor delas — e, durante algum tempo, a jovem rainha seria tratada com considerável desconfiança até mesmo por seus súditos. Depois de viver na França por pouco mais de dez anos, muitos escoceses a viam como uma completa estranha, inclusive seu meio-irmão, Jaime Stuart, Conde de Moray, que não a via com bons olhos. Alguns ainda iriam mais longe, como o pregador John Knox, líder da reforma religiosa escocesa que se referia à rainha de modo bastante severo e nunca aceitaria suas tentativas de manter uma relação cordial com os líderes protestantes. Apesar disso, não demoraria para que Mary conquistasse aqueles que encontravam-se sob o seu domínio: sua atitude graciosa durante as viagens que realizou pelo reino comoveu a muitos escoceses, tornando suas relações mais próximas e criando uma aparente atmosfera de paz.

Porque era uma mulher bastante jovem, a possibilidade de um novo casamento fez-se motivo de especulação na corte, ao passo que, para Elizabeth, tornou-se um novo motivo de preocupação. A possível aliança matrimonial com um império poderoso ameaçava seu domínio, de modo que era preciso garantir que Mary desposasse um nobre de menor influência. Ao sinal de que a prima pretendia casar-se com um inglês, Elizabeth, então, sugeriu sua união com Robert Dudley, Conde de Leicester. Mas a proposta não agradou à rainha escocesa, que a viu como um insulto: à época, era de conhecimento público os boatos de que Dudley era amante da rainha inglesa e assassino de sua esposa, Amy Robsart. Por fim, Mary casou-se com Henry Stuart, filho de um lorde inglês com quem tinha ligações através de sua avó, Margaret, e que também possuía pretensões ao trono da Inglaterra — uma união que desagradou a muitos, inclusive seu meio-irmão, protestante, que rebelou-se após a união. Como forma de proteger a coroa, Mary convocou seus aliados, formando um exército de cerca de 800 homens. À medida que avançava, suas forças tornaram-se cada vez maiores e, ao chegar em Glasgow, a rainha já contava com cerca de cinco mil soldados sob seu comando. Encurralado e sem o apoio de Elizabeth, Jaime refugiou-se na Inglaterra, ao passo que Mary provou-se não apenas uma poderosa monarca, mas uma exímia líder militar.

Em janeiro de 1566, Mary anunciou que estava grávida e, na ausência de herdeiros da própria Elizabeth, aquela criança teria direito tanto à coroa escocesa quanto à inglesa. A baixa popularidade da rainha após o assassinato de seu segundo marido, seguido por seu casamento com o principal suspeito pelo crime, no entanto, deram origem a novos conflitos na Escócia e, uma vez sem o apoio popular, Mary viu-se obrigada a abdicar ao trono em favor do filho — à época com apenas um ano de idade. Pouco tempo depois, ela se refugiaria na Inglaterra, sob a tutela de Elizabeth, onde permaneceria pelos próximos dezenove anos, sendo mantida sob o controle inglês. Sua presença na Inglaterra, no entanto, continuaria a alimentar rumores de possíveis atentados contra a vida da rainha inglesa, crença que era compartilhada pelos seus ministros, que viam na figura de Mary um foco de maquinações e intrigas — e a reserva de Elizabeth sobre o assunto não impediu que novas conspirações, de fato, tomassem forma. Ainda que vivesse sob rígida supervisão, não demorou para que Mary se tornasse o centro de novos conflitos — o que, em consequência, apenas serviu para aumentar a desconfiança da rainha em relação ao possível envolvimento da prima em tais planos.

O comprometimento de Mary só seria de fato confirmado em 1586, a partir de cartas interceptadas por espiões do governo inglês e posteriormente utilizadas como provas em seu julgamento, onde seria condenada à morte. A execução da sentença, porém, foi adiada devido à hesitação da própria Elizabeth, que temia que o impacto negativo da ação pudesse balançar as relações já bastante instáveis da Inglaterra com outros países: para todos os efeitos, Mary continuava a ser uma rainha ungida por Deus e acima da jurisdição dos homens, e consentir sua execução, tanto quanto um desrespeito ao senso de inviolabilidade de seu corpo, também poderia se tornar um precedente para possíveis conflitos, sobretudo com a Escócia e a França. A pressão do parlamento e do povo, no entanto, tornaram impossível o adiamento da decisão e, no dia 1 de fevereiro de 1587, Elizabeth, por fim, assinou o documento. Uma vez na posse de seus ministros, a sentença seria cumprida sem demora, e uma semana após o recolhimento da assinatura, Mary Stuart foi executada.

Embora nunca tenham se conhecido pessoalmente, Mary e Elizabeth mantiveram correspondência ao longo dos anos e o fato de estarem em lados diametralmente opostos não as impediu de tratarem-se com cordialidade e expressar preocupação e solidariedade em determinadas situações. É difícil saber até que ponto esses sentimentos eram genuínos, da mesma forma que é difícil saber até que ponto se desgostavam de fato, ou quanto do cenário político da época, do medo e da pressão externa interferiram em suas concepções. Mesmo o olhar lançado sobre suas trajetórias foi, por muito tempo, delineado a partir de aspectos simplistas de suas personalidades, e só mais recentemente passou a assumir uma abordagem mais complexa, que permitiria observá-las para muito além da figura da heroína bela e romântica, no caso de Mary, ou da soberana fria e impassível, no de Elizabeth.

De forma similar, a ficção também revisitaria a história de maneiras bastante distintas. Em 1936, Katharine HepburnFlorence Eldridge interpretariam, respectivamente, Mary e Elizabeth, no filme Mary of Scotland; o primeiro longa-metragem a centralizar a complexa relação entre as duas rainhas no cinema, sendo precedido apenas pelo curta-metragem The Execution of Mary Stuart, de 1895. Mais tarde, Vanessa Redgrave e Glenda Jackson também protagonizariam as desavenças entre as monarcas no filme Mary, Queen of Scots. Baseado na obra de mesmo nome, escrita por Antonia Fraser em meados da década de 1960, o filme renderia uma indicação ao Oscar de Melhor Atriz para Vanessa Redgrave, além de receber outras quatro indicações nas categorias de Melhor Direção de Arte, Melhor Figurino, Melhor Trilha Sonora e Melhor Canção Original. Em 2007, Cate Blanchett retornaria ao papel que lhe fez mundialmente famosa em Elizabeth: A Era de Ouro, cuja narrativa centraliza, de maneira menos óbvia, a perspectiva de Elizabeth em detrimento da de sua prima, ao passo que, na televisão, a minissérie The Virgin Queen abordaria brevemente o caso em meados de 2006. Posteriormente, outras duas produções também seriam lançadas: Mary, Queen of Scots, uma releitura franco-suíça do livro de Antonia Fraser; e Reign, série de Laurie McCarthy e Stephanie Sengupta que, ao longo de quatro temporadas, acompanhou a trajetória de Mary Stuart traçada desde seus primeiros dias na corte francesa até seu inevitável desfecho na Inglaterra elisabetana.

Baseado na obra do historiador e biógrafo britânico John GuyMary Queen of Scots é a mais recente obra cinematográfica a se debruçar sobre o relacionamento das duas rainhas, que testemunha o apelo universal de uma história que continua tão forte quanto fora no passado. Mais do que um filme dedicado a retratar a narrativa compartilhada por duas figuras históricas fascinantes, Mary Queen of Scots promete ser também uma leitura bastante particular do período, e permite que ambas tenham espaço para expor aquilo que existe de mais humano, íntimo e controverso em si mesmas. Mais de 400 anos depois dos acontecimentos que marcaram a vida de ambas, talvez sejamos finalmente capazes de compreendê-las.


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5 comentários

  1. é mesmo muito interessante a historia dessas duas, fiquei ainda mais curiosa após assistir a serie Reinado que falava sobre o tempo da Mary no poder, obrigado sobre as ótimas informações que pode tirar daqui….

  2. Ótima narrativa sobre a HISTÓRIA.
    O último filme “Mary, Queen of Scots” também trouxe cenas até hoje nunca exibidas em outros filmes e séries com tanta veracidade dos fatos, como o período em que a Rainha Elizabeth contraiu varíola e o que essa doença fez com o rosto da monarca, mostrando na íntegra as consequências da doença. Posteriormente ela começaria a usar “ceruse veneziano”, composto por chumbo branco e vinagre, como uma maquiagem e que ao decorrer dos anos foi desconfigurando o rosto da mesma.
    Outro fato apresentado no filme recente é o “encontro” de Elizabeth com Mary Stuart. Até então nunca havia visto em nenhuma outra criação. Interessante a visão do encontro, mesmo que nada confirma tal ocorrido. Mas é interessante a forma como as palavras são ditas neste encontro, como se estivessem conversando por cartas.
    Por fim, o filme nos deixa uma visão clara dos tempos hodiernos, no que tange, o empoderamento feminino. Sabemos que não foi tão sútil é fácil pra época. Assim como não é hoje. Mas penso que reflete numa visão e inspiração para todas as mulheres se sentirem confiantes e prontas para “REINAR”, mesmo que em épocas diferentes.

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