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2017: o ano das emoções

No segundo episódio do podcast da Rookie, Lorde proferiu: “2016 foi o ano de perceber coisas — como captado por Kylie Jenner. 2017 é o ano das emoções.”

Apesar do ar de bruxaria, a fala de Lorde não foi de fato uma previsão do futuro, mas pôs em palavras o que o universo já nos indicava desde o dia primeiro de janeiro: 2017 foi o ano das emoções. Seja em nossas vidas pessoais, seja no âmbito coletivo, vivemos uma nova ascensão dos sentimentos, uma volta do Romantismo do século XIX agora revisitado pelos netos do Modernismo. Lorde, Lady Gaga, Kesha, Harry Styles, SZA — os mais variados artistas embarcaram nessa espécie de movimento cultural que já vem acontecendo há algum tempo, mas em 2017 se tornou evidente.

O mundo de Lemonade

Desde 2013, os movimentos sociais têm crescido, tomando um espaço cada vez maior no debate público. Revistas e sites com enfoque feminista e antirracista surgiram com força, movimentos como #BlackLivesMatter nos Estados Unidos tomaram as redes sociais, o ativismo ganhou novas proporções dentro e fora da internet. Logo estávamos (e estamos) debatendo a falta de mulheres, pessoas não brancas, pessoas LGBTQIA+ e tantos outros exemplos fora do padrão normativo nos mais diversos espaços, exigindo as mudanças estruturais necessárias para que tenhamos, de fato, igualdade social.

Nos redescobrimos seres políticos e reencontramos o poder das nossas vozes. Com as redes sociais, exploramos uma nova maneira de se debater e fazer política. Voltamos às ruas em protestos e passeatas. Em oposição às nossas demandas sociais, o conservadorismo também se fortificou. Leis que prejudicam ainda mais aqueles que são sistematicamente oprimidos foram aprovadas, vimos a multiplicação e ascensão de líderes que trazem o discurso de ódio contra quem não está no padrão normativo; surgiram literais nazistas como se estivéssemos em 1939 de novo. Entramos  em um período de lutas tensas e necessárias em todo o mundo. E, nesse zeitgeist, os debates político-sociais estão adentrando os mais diversos âmbitos — do ambiente de trabalho à cultura pop.

Na cultura mundial, o maior marco dessa nova fase de combate ao conservadorismo foi o álbum visual de Beyoncé, Lemonade. A artista uniu o pessoal ao político ao falar sobre sua experiência como mulher negra, no âmbito particular de um relacionamento amoroso e familiar, atrelada à vivência negra nos Estados Unidos, em um momento de tensões particularmente acentuadas devido à violência policial contra negros e o aumento da intolerância. Tendo escrito todas as letras e co-dirigido o filme, que traz apenas pessoas negras no elenco, Beyoncé trouxe à tona no âmbito das artes e do entretenimento a discussão política que crescia nas redes sociais e nas ruas, promovendo ao mesmo tempo a celebração da cultura negra e a importância tanto da visibilidade quanto da maior representatividade de negros e negras no mundo pop.

A partir desse momento, então, a indústria cultural e nossa percepção dela se transformaram. Com a internet e as redes sociais, pudemos dialogar de uma maneira nova, alcançando mais pessoas e modificando a forma com que o debate sobre o entretenimento era feito anteriormente. Arte e entretenimento se aproximaram das lutas sociais como não víamos fora do que ainda eram considerados “nichos sociais” desde a década de 60. Criamos novos valores para a análise dessas obras, assim como novas demandas para as novas criações dos artistas de nossa época. Nossas produções culturais se tornaram mais uma frente dos movimentos sociais, principalmente ao se tratar da luta contra o machismo, o racismo e a homofobia.

Ser humano = à flor da pele

Passaram-se cinco anos desde o início de 2013, o ano em que redescobrimos a rua como espaço de luta política no que agora conhecemos como Jornadas de Junho. Foram cinco anos de luta constante. Cinco anos de demandas, protestos, discussões e debates, passeatas, tentativas de conscientização para causas essenciais. Conseguimos algumas mudanças positivas — temos mais representatividade fora dos padrões normativos em obras ficcionais; agressores e abusadores estão sendo expostos e punidos de formas inéditas; discursos problemáticos dificilmente passam impunes pelo tribunal das redes sociais, o que gera inegável conscientização — mas a cada pequena mudança também vimos mais do mesmo acontecer. Os assédios sexuais ainda existem, o homicídio da população negra, assim como o da população trans, continua, ataques a pessoas LGBTQIA+ não pararam, casos de apropriação cultural se mantêm ignorados, micro-agressões acontecem todos os dias com pessoas que não são homens cisgênero brancos e heterossexuais, e acontecem também dentro dos próprios movimentos sociais. Continuamos repetindo as mesmas coisas, chamando atenção para a interseccionalidade das lutas, nos doando para a ideia de que podemos alcançar a igualdade completa, que é possível chegar na utopia. Mas cinco anos se passaram desde que começamos. Por mais que os movimentos sociais tenham crescido e se difundido, o conservadorismo tem se alastrado pelo mundo inteiro, e, meia década depois de começarmos a brigar, também nos cansamos.

Em 2016, além da agenda usual de lutas contra as opressões, vivemos um golpe de Estado em nosso país e, como cereja do bolo, vimos Donald Trump ser eleito presidente dos Estados Unidos. Foi realmente um ano de perceber as coisas, como Kylie Jenner colocou, e o que percebemos é que mesmo depois de anos tentando construir um mundo legal, ou pelo menos decente, nossos problemas são tão intrinsecamente estruturais que mesmo anos de luta e conscientização quanto às questões sociais não são o suficiente para que vejamos as mudanças que queremos. Na verdade, quanto mais insistimos, mais descobrimos novas falhas, como se o problema sempre estivesse mais e mais fundo do que acreditamos estar.

Acontece que não somos robôs preparados para lutar 24 horas por dia durante mais de meia década. Aparentemente, nem os stormtroopers são assim. Mas, diferente deles, que são personagens fictícios, nós somos humanos. Nossa complexidade ultrapassa noções de coerência, não vivemos narrativas perfeitamente construídas. Nos cansamos física e emocionalmente. Somos tomados por medo, ansiedade, frustração e reagimos de maneiras diferentes a cada sentimento.

Com as redes sociais, cobramos e somos cobrados para estar em um estado constante de alerta e luta. Cada palavra que dizemos é debatida, toda notícia deve ser compartilhada, tudo aquilo que fazemos entra como parte de uma análise maior e mais complexa, e nós sabemos o quanto isso é necessário e importante, mas ao mesmo tempo essa cobrança nos exaure. Nos sentimos mais pressionados com tudo que acontece no mundo e, de repente, nos vemos em meio a crises de estresse e exaustão que misturam o pessoal e o coletivo sem distinção artística coerente como Beyoncé conseguiu fazer em Lemonade, e tudo que nos resta é chorar no transporte público.

Chegamos a um ponto em que é insustentável continuar com nossas lutas sem pensar também em nossa saúde pessoal. Quando nossas emoções se tornam uma grande massa confusa que nos bagunça por inteiro, temos que parar, dar um passo para trás e cuidar um pouco de nós mesmos, para então cuidar do resto do mundo. Como nas instruções de segurança de aviões, é preciso colocarmos a máscara de oxigênio em nós para só então ajudar quem precisa.

A vanguarda das emoções

Ninguém acordou no dia primeiro de janeiro de 2017 e pensou “nossa, preciso prestar mais atenção nos meus sentimentos!”. Esse já era um movimento que vinha acontecendo na periferia dos movimentos sociais.

Em 2015, a artista não-binária Lora Mathis criou o conceito de “radical softness as a weapon” [suavidade radical como uma arma], explorando as noções de força e feminino e as relacionando à ideia de permitir-se sentir — e também expor seus sentimentos. Petra Collins fez a curadoria de Babe, livro que reúne o trabalho de mais de 30 artistas mulheres dos lugares mais variados do mundo, com um enfoque voltado à intimidade e vulnerabilidade, temas recorrentes na obra da jovem artista.

Enquanto isso, no âmbito literário, Rupi Kaur lançou seu primeiro livro, Outros Jeitos de Usar a Boca, que fez um sucesso estrondoso logo no lançamento ao trabalhar assuntos como recuperação de traumas e a cura de si mesma. Na música, Carly Rae Jepsen lançou o álbum E•MO•TION, tentando trazer para o pop a emoção pura e gigantesca que existe dentro de nós. O álbum dividiu opiniões no ano de lançamento, mas passados dois anos, sua importância só cresceu, com os próprios fãs da cantora propagando suas palavras como se E•MO•TION fosse de fato a nova Bíblia e Carly Rae Jepsen a nossa salvadora.

Ao contrário do que fez Jepsen, Lady Gaga se despiu das roupas polêmicas e extravagantes, colocou um chapéu de cowboy cor de rosa em 2016 e fez a escolha consciente de se afastar do o gênero pop para tratar mais abertamente de sentimentos. Também permitindo se voltar à sua interioridade, Solange lançou A Seat At The Table, focando no impacto emocional de ser uma mulher negra nos Estados Unidos, depois da artista ter passado por uma série de ataques de pânico durante a produção do álbum, que foi feito em um espaço de quase oito anos. Ao fim, Solange diz ver a obra como “um projeto sobre identidade, empoderamento, independência, luto e cura”.

No mesmo ano, Drake lançou Views, continuando seu projeto de escavar emoções. A atriz e ativista Amandla Stenberg passou a usar suas redes sociais como plataforma de ajuda para jovens negros e LGBTQIA+ neuroatípicos desde que assumiu publicamente sua bissexualidade no início do ano passado.

Em uma reflexão sobre seu trabalho, Lora Mathis escreveu ainda em 2015 que “acima de tudo, minha intenção era declarar a força na cura e na aceitação de uma variedade de emoções”. A ideia de que reconhecer e viver o que se sente é ser forte não foi colocado apenas por Mathis. Essa noção é uma crescente em nossa geração, quebrando — mesmo que aos poucos — barreiras de classe, raça, gênero e sexualidade.

Pouco a pouco, as emoções têm tomado nossas produções culturais e posts em redes sociais como o Tumblr, enquanto nós tomamos as ruas de nossas cidades. A cada novo ataque de raiva, frustração, tristeza, medo ou ansiedade que o mundo nos dá, aparecem mais pessoas dizendo que tudo bem se sentir assim, não precisamos esconder nossos sentimentos. Emoções são sempre aterrorizadoras, mas isso não significa que devemos escondê-las. Aliás, muito pelo contrário: precisamos nos permitir senti-las, encará-las de frente e lidar com elas, assim como suas causas e consequências.

Sentimentos à flor da pele

Se esse é um movimento que vem se desenhando há alguns anos, o que qualifica 2017 especificamente como o ano das emoções é a amplitude que essa ideia tomou e sua solidificação no nosso inconsciente coletivo.

Ao longo de todo o ano, vimos os mais diversos exemplos de pessoas abraçando suas emoções, mesmo nos tempos mais difíceis. Kesha, depois de ter vivido um processo público contra seu produtor e abusador, lançou Rainbow, um álbum country com músicas extremamente vulneráveis sobre o processo de recuperação do trauma de abuso que sofreu. Assim como Gaga, a cantora que antes parecia a personificação do pop, tomou a decisão consciente de mudar o gênero para que pudesse tratar de todas as dificuldades pelas quais passou se permitindo focar em seu interior. Na música que dá título ao álbum, a artista diz que sua cabeça ainda não está boa, mas ela está se curando e convida aquelas que também sofreram a seguir o processo confuso — mas possível e importante — de recuperação.

Também saindo do gênero no qual era conhecido, Harry Styles lançou um álbum homônimo de soft rock, permitindo-se um outro tipo de vulnerabilidade. A capa em que se encontra completamente exposto com as costas nuas enquanto se banha num lago rosa millennial, as músicas em que narra se masturbar em um quarto de hotel e ficar bêbado antes do meio-dia para tentar acabar com a dor da saudade de quem ele ainda ama, a sonoridade suave das melodias — tudo constrói essa noção de uma sinceridade que o artista nunca antes pôde (ou se permitiu) ter.

Reconhecido por nunca deixar nada claro, seja a respeito da sua sexualidade ou aos temas polêmicos do momento, Styles opta tanto em seu álbum como em seus shows a não cobrar dos outros ou de si que falem mais do que querem e achem necessário. Harry sabe o quanto não falamos o suficiente — ele repete isso em suas músicas incansavelmente —, mas prefere que as ações sejam maiores do que as palavras em si. É desse jeito que ele consegue criar esse espaço em que tudo é dito, mas o silêncio, tão importante em tempos de debates infinitos nas redes sociais, é mantido. Assim, se em seu primeiro single, “Sign of the Times”, o artista busca um escape para o apocalipse que está o mundo, é ele próprio quem cria essa alternativa em seus shows, montando sempre um lugar seguro em que as pessoas possam ser livres para ser quem são.

Esses espaços também têm sido criados na televisão, com séries como Brooklyn Nine-Nine, que além de trazer um elenco diverso em questão de raça, em sua quinta temporada trouxe a revelação de que uma de suas personagens principais, a detetive Rosa Diaz (Stephanie Beatriz), é bissexual. Todo arco da sexualidade de Rosa é tratado com delicadeza, sem ignorar a dificuldade que é fora do padrão hétero-normativo, mas também abrindo um espaço de aceitação ainda maior do que aquele que a série já proporcionava em suas temporadas anteriores. Nas palavras do capitão Raymond Holt (Andre Braugher): “Sempre que alguém assume quem é, o mundo se torna melhor, um lugar mais interessante”; e é isso o que temos tentado construir.

A utopia nunca mudou: queremos um mundo em que possamos ser quem somos sem que soframos violências por isso. Enquanto isso não acontece, lutaremos de todas as maneiras que conseguirmos — e criaremos e ampliaremos espaços seguros para todas as pessoas que também precisam brigar para expressar suas identidades. No mais fundo de nós, está quem somos. É onde estão as coisas que não entendemos, que desgostamos, que temos medo. Mas é aí também que está nossa maior força, nossa estrutura vital.

Entrar em contato com o mais profundo de nós mesmos e escolher expor isso à público não é só perigoso porque vivemos em uma sociedade violenta e preconceituosa, mas também porque encarar aquilo que somos é sempre assustador, mesmo quando se preenche a lista de todos os padrões normativos e de privilégios. Isso é porque tudo que está em nossa interioridade é necessariamente emocional e emoções nunca fazem sentido, mas nós amamos dar razão às coisas.

Assim, se queremos assumir quem somos e se temos que brigar pelo direito de assim ser, precisamos também encarar nossa interioridade. Precisamos nos abrir e aprender a lidar com tudo aquilo que há dentro de nós — com tudo que consideramos bom, ruim e estranho. É necessário abraçarmos nossa totalidade e nos permitirmos curar das feridas criadas enquanto crescemos.

Quem também trouxe esse discurso com força foi Ariana Grande. Durante toda sua turnê mundial, a cantora vinha dizendo que queria que seus shows fossem um espaço seguro para seus fãs serem quem quisessem ser. Isso fez com que o atentado em Manchester soasse ainda mais violento do que já seria por natureza. Mas o abalo emocional fez com que a cantora decidisse transformar o trauma na experiência coletiva de se viver o luto daqueles que morreram no ataque e iniciar uma recuperação conjunta da dor e do medo gerado por tal vivência. Assim, no show One Love Manchester, os mais diversos artistas se uniram à cantora para ajudar a cura emocional de maneira compartilhada.

Também buscando o compartilhamento da dor como passo para cura, em agosto desse ano, Lady Gaga lançou o documentário Five Foot Two, expondo da forma mais crua possível um ano de sua vida. Ela se mostrou com dor, cansaço e fadiga, e também feliz e empolgada com sua vida. No filme, Gaga repete milhões de vezes que agora se sente bonita, uma mulher madura e segura de si, e logo em seguida a cantora está afundada em medos e inseguranças. Em pelo menos metade do filme, ela está chorando ou prestes a chorar. Sua avó diz para que não fique triste pela história de sua tia Joanne, mas Gaga, ou melhor, Stefani Joanne Angelina Germanotta, já criara uma conexão e identificação profunda, que não é tanto sobre a pessoa que ela nunca conheceu, mas sim sobre a narrativa que a cantora encontrou para que suas tristezas tivessem um sentido para si mesma, uma narrativa que a fizesse ir além da bagunça de sua vida.

Emoções aparecem do nada e são reais e arrebatadoras. Elas são de muitos tipos diferentes, mas todas são estranhas se formos parar pra pensar. É inexplicável como elas surgem e desaparecem da mesma forma que a vida é inexplicável, mas ainda assim teimamos em criar uma narrativa que dê sentido ao que acontece dentro e fora de nós. Nesse ano, com tantas notícias de violência contra grupos oprimidos e o crescimento vertiginoso de discursos de ódio, talvez tenha ficado mais difícil fazer tudo o que aconteceu soar coerente ou mesmo conseguir aceitar que, apesar de tudo, a vida ainda segue.

Mas esse ano começou com Moonlight: Sob a Luz do Luar, uma história de um garoto negro, pobre e LGBTQIA+, ganhando Oscar de Melhor Filme. O filme de Barry Jenkins é tanto sobre as batalhas quanto o que acontece entre e depois delas. E não é fácil encontrar um lugar no mundo, especialmente quando você não segue os padrões da sociedade como Chiron (Alex Hibbert, Ashton Sanders e Trevante Rhodes), mas Juan (Mahershala Ali) já disse que, em algum momento, temos que decidir quem seremos — e não podemos deixar ninguém tomar essa decisão para nós.

A coragem de sentir

Somos e sempre seremos seres políticos. Nossos corpos, nossos desejos, nossas ancestralidades, nossos amores. Tudo em nós se encaixa em algo maior sistematizado pela sociedade séculos atrás. Estamos há anos aprendendo mais e mais sobre isso, tendo nos graduado no tema quando a própria Kylie Jenner proferiu suas palavras sobre percebermos as coisas em 2016. Mas isso não é tudo. Além de seres políticos, somos também seres humanos, mais complexos e caóticos do que podemos entender, quem dirá sistematizar. E esse ano nos relembrou dessa parte de nossa identidade que estrategicamente decidimos ignorar para seguir com nossa agenda de lutas. Mas passaram-se cinco anos. Chegamos em 2017 cansados.

Um dos melhores exemplos desse cansaço é a mudança de foco da segunda temporada de Master of None — provavelmente a série mais millennial que existe hoje em dia. Em sua primeira temporada, acompanhamos Dev Shah (Aziz Ansari) refletindo — às vezes com diálogos quase didáticos — sobre diversos temas, como família, raça e relacionamentos. Essas reflexões continuam na segunda temporada, mas em um tom diferente. Nesse novo momento da série, seus criadores Aziz Ansari e Alan Yang permitem um movimento maior tanto para o interior de Dev quanto para fora do personagem que reflete bem essa mudança de ângulo.

Por um lado, assistimos a construção de um amor idealizado entre Dev e sua amiga Francesca (Alessandra Mastronardi), que é romanticamente comprometida, e todas as emoções que vêm junto a isso. Vemos Dev debater consigo mesmo sem saber como lidar com um sentimento tão inconveniente e se afundar na tristeza de não conseguir comandar seu coração. Somos deixados em longos momentos de silêncio que gritam tudo aquilo que os personagens sentem — não são necessárias falas para entendê-los. Por outro lado, Dev deixa o centro da série em diferentes episódios, abrindo espaço a outros personagens contarem mais sobre suas realidades e suas visões de mundo, como é o caso de “Thanksgiving”, episódio que acompanha o Dia de Ação de Graças na casa de Denise (Lena Waithe) e a relação da personagem com sua família e sua sexualidade. Ouvimos novas vozes e as histórias marcantes que carregam consigo.

A série em si não altera ou esquece sua perspectiva reflexiva e crítica quanto à nossa sociedade. O que muda é que, nessa segunda temporada, ela se permite explorar a humanidade de seus personagens. Eles não são perfeitos, e reconhecer isso abre a possibilidade de uma discussão muito mais profunda sobre as vidas que temos. Ao fim, eles estão aprendendo como agir no mundo da mesma maneira que nós, e poder tratar disso com sinceridade, mostrando aquilo que fazemos certo e errado, é poderoso.

Em seu mais novo álbum, CTRL, lançado também em 2017, SZA escolhe abrir e fechar com um clipe de voz do que parece ser sua mãe dizendo no início: “That is my greatest fear. That if, if I lost control or did not have control, things would just, you know, I would be… fatal” [“Esse é o meu maior medo. Se eu perder o controle ou não tiver o controle, as coisas vão, você sabe… ser fatais”]. Então, “Supermodel” começa a tocar com uma letra que parece ter saído de um diário, em que a cantora assume precisar do ex-namorado, mas também admite ter transado com o melhor amigo dele por vingança. Com uma honestidade arrebatadora, SZA segue a música perguntando por que não consegue ficar bem sozinha.

A cantora não é perfeita. Ela erra de novo e de novo, e coloca isso em todas as suas músicas. Ela tem vergonha de si mesma, às vezes esquece seu valor e, no que parece mais um diálogo interno do que uma canção, diz que acha que precisa de terapia. O álbum segue a linha confessional de sua experiência como uma mulher jovem negra em busca — e também fugindo — do amor. SZA diz o que está mais ao fundo de nós, aquilo do que tentamos fugir desesperadamente, mas que nos encontra toda madrugada quando as luzes são apagadas.

Em novembro de 2016, a cantora deu uma entrevista dizendo que provavelmente pararia de fazer músicas. “Eu não tenho a energia para criar um filtro mais”, ela disse à Complex, e isso fica claro em CTRL. O que ouvimos é brutalmente honesto, é Solána deitada na cama quando bate a bad e ela se sente o mais vulnerável possível. Mas em vez de mandar um zap para as amigas, SZA produziu um álbum. Com o título mais apropriado possível, ela trata sobre a perda de controle e as consequências internas e aterrorizantes das mudanças que passa. Mas, na última música, “20 Something”, a artista resume o que é esse momento da juventude, em que tudo dói e só conhecemos o medo, quando rezamos para que esses anos não nos matem, mas mesmo assim ela pede a deus que abençoe essa época de nossas vidas.

Ao fim do último pedido de benção, o clipe de voz que dá início ao álbum volta:

“And if it’s an illusion, I don’t want to wake up. I’m gonna hang on to it. Because the alternative is an abyss, is just a hole, a darkness, a nothingness. Who wants that? You know? So that’s what I think about CTRL, and that’s my story, and I’m stickin’ to it”.

“Se isso é uma ilusão, eu não quero acordar. Vou me segurar a isso. Porque a alternativa é um abismo, é só um buraco, a escuridão, o nada. Quem quer isso? Entende? Então é isso que penso sobre CTRL, e essa é a minha história, e vou seguir com ela.”

Durante anos e mais anos, fizemos esse acordo como sociedade em que acreditaríamos que temos controle sob as nossas vidas. Decidimos que aquilo que acontece conosco naturalmente tem sentido e que podemos escolher nossos futuros e o futuro do mundo. Então, percebemos que os sistemas que escolheram antes de existirmos não são bons e, como fomos ensinados, fizemos a escolha de mudar, de lutar, de tomar o controle daquilo que estava sendo mal dirigido. Mas depois de anos tentando, percebemos que não estamos controlando nada. A mãe de SZA tinha razão: quando descobrimos que tudo é uma ilusão, encontramos o abismo. E, agora, de frente a ele, temos que escolher não como domá-lo, mas como lidar com sua existência.

O que fazer quando estamos no meio do mar de emoções

Todo mundo que passou pelos 20 anos sabe que, quando a desilusão e o desespero batem e o cansaço é demais da conta, tudo o que nos resta são emoções inexplicáveis que entram em erupção a qualquer momento. No meio de uma festa como em Melodrama, no corredor de um hotel como em Harry Styles, no banco de trás do carro como em Master of None. E talvez esses lugares de passagem nos afetem mais do que qualquer outra coisa exatamente porque eles concretizam as transições da vida que não conseguimos ver ou tocar, mas que sentimos tão ardentemente. Especialmente quando somos jovens. Especialmente quando somos jovens em um momento crítico de nossa sociedade.

Existe essa teoria de que a juventude é tema de tantas obras de arte porque é o momento em que estamos descobrindo o mundo, mas cada dia mais acredito que o fascínio por essa época vem da conjunção de mudanças que necessariamente acontecem. É o único momento em que nós, como sociedade, aceitamos que tudo deve mudar sem que isso seja um problema. Mas Cazuza tinha razão e o tempo não para, a vida não espera, tudo acontece ao mesmo tempo agora não importa a fase de nossas vidas e isso sempre trará consequências bruscas para nosso emocional.

No fim das contas, o niilismo é a nossa grande verdade. A vida não faz sentido e, então, morremos. Mas saber disso não precisa nos levar ao fundo do abismo. Se sabemos que contemplamos o nada, podemos usar esse conhecimento a nosso favor. Podemos inventar as nossas narrativas e construir algo diferente. Enquanto estivermos vivos, estaremos nesse meio confuso (o único final é a morte), estaremos de cara com o abismo e junto a ele está esse mar de emoções doidas e revoltas. Mas é também enquanto estivermos vivos que podemos aceitar o nada e complementa-lo com nossas invenções. Enquanto estivermos vivos, criamos o tudo, criamos o universo. E ele é o que quisermos que seja — ninguém mais pode decidir por nós.

Há um pouco mais de cem anos, surgiu no mundo o Romantismo. Como resposta ao momento político conturbado com a Revolução Francesa eclodindo e o racionalismo como palavra de ordem, esses jovens artistas decidiram se voltar para dentro de si e não reprimir mais seus sentimentos. Eles entendiam que era impossível ignorar suas emoções como os iluministas pregavam, e suas emoções os levavam a querer escapar de toda a incerteza daquele mundo em transformação.

O movimento, é claro, não deu certo. Depois de três gerações que se diziam querer estar mortas enquanto tocavam “Vamos Fugir” nas rodas de violão, apareceram outros jovens também inconformados e dizendo que aquela não era a resposta. E, embora os realistas também tenham tentado implementar suas mudanças, logo veio a Primeira Guerra Mundial e destruiu tudo e todos.

Nós, nascidos no fim do século XX, educados pelos modernistas e concretistas, sabemos tudo que há de errado com o Romantismo. Mas, de uma forma surpreendente e mesmo um pouco assustadora, não nos encontramos em uma situação mundial tão diferente assim, com tudo o que conhecemos como seguro se desfalecendo à nossa frente e o medo e desespero imperando nosso entorno. Estamos em um abismo e queremos fugir, mas dessa vez sabemos que não há para onde ir. O que existe é o nada frente à frente conosco, e esse é o momento em que decidimos como lidar com ele.

2017 foi tão turbulento quanto os anos anteriores, e 2018 não promete diminuir o ritmo com eleições presidenciais em outubro aqui no Brasil. A revolta e a tensão continuam firmes e fortes, as incertezas se alastram e a vida não vai começar a fazer sentido sozinha. Mas nós podemos suavizar esse momento ao nos dar espaço para escutarmos o que está dentro de nós. Essa é uma voz diferente, uma voz que não vem em palavras, mas é um grito visceral que todos nós contemos dentro de nós. E deixá-lo existir no mundo é também transformar nossa realidade.

O ano das emoções não é e nunca foi sobre escolher sentimentos individuais em detrimento da luta coletiva. Esse ano e tudo que aprendemos com ele é sobre aceitar, abraçar e respeitar que somos os dois: seres políticos e emocionais. E essas duas facetas podem conviver dentro de nós, uma dá força à outra, desde que aprendamos a respeitá-las e conduzi-las. Não precisamos destruir uma parte de nós. Tudo que precisamos é abraçar nosso todo, pois ele é nossa maior força, nossa humanidade.

1 comentário

  1. Quando comecei a ler esse texto eu já pensei “isso é a cara da Clara” e num é que eu tava certa!!
    Eu concordo, e mais, com coisas que você falou, que eu nem tinha me dado conta.
    Esse ano foi um turbilhão de sentimentos e eu, na verdade, só agradeço.
    São tempos difíceis.
    Cada reação ao seu tempo, como já diria Cazuza: um museu de grandes novidades, mas né com alguns temperos diferentes.
    Menina que lindeza de texto, não para!!

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