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Carly Rae Jepsen: quando os sentimentos são os únicos fatos

Meu primeiro contato com a Carly Rae Jepsen aconteceu em meados de 2012: “Call Me Maybe” estava no auge e, assim como muitos na época, me perguntava quem era aquela garota de cabelo preto e olhos muito azuis que conseguia transformar uma música aparentemente tão simples em algo tão viciante, que fazia até os mais céticos em relação ao pop deixarem suas convicções de lado e encararem a pista de dança.

Foi só mais tarde que descobri que Carly Rae Jepsen não era apenas uma cantora maravilhosa, mas também uma compositora de mão cheia. A fama veio após sua participação na quinta temporada do Canadian Idol, em 2007, programa nos moldes do britânico Idols — que foi febre no mundo inteiro e ganhou até mesmo uma versão própria no Brasil. Carly não foi a vencedora (ela ficou em terceiro lugar), mas sua participação foi suficiente para lhe garantir um contrato com uma gravadora. De lá pra cá, ela lançou três álbuns — Tug of War (2008), Kiss (2012) e E•MO•TION (2015) —, ganhou alguns prêmios, fez ponta em algumas séries de TV e foi protagonista de uma peça da Broadway, além de ter sido co-protagonista do remake do musical Grease, inspirado no filme homônimo.

De todos os seus trabalhos, é E•MO•TION, no entanto, o meu favorito. Nele, Carly Rae Jepsen fala sobre amor em suas mais diferentes formas, compartilha inseguranças e deixa que suas emoções falem alto, muito alto, de forma positiva, honesta e extremamente divertida — o que ela sempre soube fazer tão bem. O álbum conta com o dedo de artistas como Dev Hynes, mais conhecido como Blood Orange, Rostam Batmanglij, do Vampire Weekend, e do produtor Ariel Rechtshaid, que já trabalhou com artistas como Sky Ferreira e Haim. A presença de uma maior contribuição de nomes do cenário indie não leva a cantora a abandonar suas raízes, mas une suas raízes à novas referências, criando algo inteiramente seu.

Sonoramente, E•MO•TION traz uma pegada claramente oitentista e uma mudança delicada de sonoridade, mas continua a apresentar músicas especiais e únicas. A cantora escreve sobre sua vida, suas experiências e abre o coração sem medo — um coração que bate com força em cada faixa — e é ao fazê-lo que toda a mágica acontece. Entre declarações de amor e insegurança, Carly Rae Jepsen transforma sentimentos pessoais em experiências universais, passíveis de identificação, da mais pura e honesta cumplicidade. É como segurar a mão de uma amiga e ser levada por um passeio, com direito à pistas de dança e passeios de carro com os vidros abertos, cabelos ao vento; situações tão vivas e livres às quais suas músicas servem de trilha sonora. Do alto dos seus 30 anos, Jepsen apresenta uma versão de si mesma que também não tem a vida no lugar, que tem problemas com garotos, às vezes é influenciável e inconsequente, e que também está aprendendo. Suas músicas celebram as nuances desse viver, às vezes solares e divertidas, mas também mais maduras e seguras que seus trabalhos anteriores, o que prova que, mesmo na música pop é possível envelhecer e continuar sendo divertida sem parecer infantil.

Suas composições também demonstram seu amadurecimento como letrista. Suas canções projetam diferentes versões de Carly, da mulher que foge dos paparazzi a que excessivamente analisa seus sentimentos ou, ainda, a que dança ao lado de Tom Hanks e admite o quanto isso foi divertido. E•MO•TION navega entre muitas facetas (uma influência do teatro que também se faz presente em seu trabalho como cantora), mas o resultado final ainda é o de estar sentada com uma amiga, dividindo histórias e uma garrafa de vinho. Se compositoras como Taylor Swift são capazes de criar narrativas potentes e evocar sentimentos sobre histórias que não necessariamente vivemos, Carly Rae Jepsen o faz como alguém cujas experiências são ligeiramente mais palpáveis e a fazem parecer uma pessoa mais próxima. É quase como se a cantora rejeitasse a alcunha de estrela; sua arte é o mais importante, e por isso é tão difícil encaixá-la em arquétipos pré-existentes. Ela pode, pelo contrário, habitar todos esses espaços, e o mesmo acontece com sua música.

No primeiro primeiro single do álbum, “I Really Like You”, Jepsen canta sobre o que pode ou não se tornar um relacionamento, a ansiedade dos primeiros encontros, quando tudo ainda é muito novo e a incapacidade de lidar com os próprios sentimentos. É uma música muito mais próxima dos trabalhos anteriores de Carly, um pop chiclete que destoa da maior parte do álbum, mas não perde em qualidade em comparação.

 “Who gave you eyes like that?
Said you could keep them
I don’t know how to act
Or if I should be leaving
I’m running out of time
Going out of my mind
I need to tell you something” 

“Run Away With Me” é uma representação melhor do que E•MO•TION é em sua totalidade: é quando a influência oitentista se mostra mais forte e, enquanto música de abertura do álbum, é também responsável por demonstrar quão potente o trabalho de Carly Rae Jepsen pode ser. É uma música cheia de nuances que cintilam cheia de vitalidade; é fácil se perder ao lado da cantora, em suas ansiedades românticas cotidianas que se transformam em sua voz. No clipe, Carly nos convida a um passeio interativo, cheio de mensagens escondidas que pedem para serem desvendadas enquanto a cantora se diverte.

carly rae jepsen

Em “Making The Most Of The Night” Jepsen fala sobre amar alguém sem limites e conhecê-la tão bem a ponto de correr pela cidade ignorando sinais vermelhos, só para fazer com que ela se sinta melhor quando necessário — muito diferente da garota de “I Really Like You”, que pisa em um terreno desconhecido de primeiras vezes. “LA Hallucinations”, mais sombria e próxima de vertentes do pop underground que as demais, olha para uma relação que sucumbiu à ambição e ao deslumbramento, aos abutres que a perseguem em busca de um furo.

“I remember being naked
We were young freaks just fresh to L.A.
Never cared about the fake kids
We would write and sing and wear whatever
But money makes your whole world spin
Till everything is dizzying, and suddenly”  

“Boy Problems”celebra as relações de amizade entre mulheres com o mesmo brilhantismo das canções anteriores. É uma amizade realista, que admite estar cansada de ouvir sobre problemas amorosos e que homens nunca mudam, mas que também se pergunta quem também não tem os mesmos problemas e relembra suas próprias desventuras, embora não se importe tanto com isso (“I think I broke up with my boyfriend today/ And I don’t really care”). Já o clipe, cheio de referências das décadas de 70 e 80, selfies inesperadas e glitter, também conta com a participação de Tavi Gevinson, da Rookie. E a mensagem é uma só: o romance não nos define e a vida de uma mulher não acaba quando seus relacionamentos chegam ao fim.

E•MO•TION é tudo que se pode esperar de um álbum pop: alegre e vibrante, que não se leva a sério demais, mas consegue alcançar temáticas densas de forma honesta, sem perder o coração de lugar. Carly Rae Jepsen fala sobre o universo feminino com sinceridade, contempla seus sentimentos como verdadeiramente são e não idealiza aquilo que não é (e nem pode ser) perfeito, mesmo quando reconhece que, por um belo e breve momento, as coisas pareceram ser assim. E•MO•TION é um álbum maduro sobretudo porque olha o amor não como uma solução, mas como uma parcela da vida de qualquer ser humano.

O fato de se destacar como o melhor trabalho de Jepsen até o momento não impediu que E•MO•TION sofresse alguns reveses, no entanto. Apesar do sucesso de público e crítica, a escolha por lançá-lo antes no Japão (onde a cantora possui um público maior) e só depois nos Estados Unidos, além de “I Really Like You” como primeiro single (mais próxima de seus trabalhos anteriores do que o álbum como um todo), não se mostraram opções acertadas, e o sucesso não se traduziu em vendas. Mais especificamente, Jepsen está inserida no espaço muito específico de um gênero

uma opção acertada para uma cantora inserida entre o pop tradicional e um público ao mesmo tempo bastante específico, e o sucesso inegável do álbum não se traduziu em vendas em proporção.

Carly também lembra como o pop ainda é tratado como um gênero menor, que apesar de bem qualificado em seu próprio universo, ainda

se insere em um nicho muitas vezes visto como superficial e ainda construído — e consumido — majoritariamente por mulheres.

 

 

 

Acreditar que uma mulher não é capaz de escrever sobre seus sentimentos é a saída fácil e desrespeitosa de quem, no fundo, não quer se dar o trabalho de olhar para além do próprio umbigo e reconhecer que existe uma gama enorme de representações possíveis para sentimentos tão universais como o amor, e que a perspectiva de um cara não é capaz de contemplar todas as perspectivas existentes, muito menos todas as nuances que um sentimento tão complexo pode ter. Ou então de gente que acha que temas como o amor, a paixão, família, inseguranças e vulnerabilidade não são tão importantes, como se não fossem todas essas coisas que construíssem os seres humanos que somos, no final das contas.

 

Ao superar a imagem que construíram dela ao longo dos anos, Carly Rae mostra, mais uma vez, a artista completa e a pessoa incrível que sempre foi. Ela conhece o terreno em que está pisando e sabe o quão problemático ele é, mas reconhece o seu valor e não aceita nada menos do que aquilo que é seu por direito, e não é um bando de caras sem o menor discernimento que vai fazê-la mudar de ideia. Não existe uma forma certa de transmitir uma mensagem e ela não precisa provar nada pra ninguém, e com seu novo trabalho, mostra pra quem quiser ver a mulher complexa que ela verdadeiramente é, uma mulher que tem questões mal resolvidas como qualquer ser-humano, mas que faz graça da sua própria vida e reconhece a grande piada cósmica que estamos vivendo – e é por isso que hoje, quatro anos depois de ouvir “Call Me Maybe” pela primeira vez, Carly Rae se tornou uma das minhas cantoras favoritas.

A vida é difícil demais pra eu não me permitir ouvir música pop e me identificar com ela e sofrer e ser feliz e dançar sem parar sem medo de ser julgada, e é realmente uma pena que mais pessoas não reconheçam o valor de tudo isso, dando as costas para uma experiência tão incrível. Assim como muitas de nós, Carly cresceu, amadureceu e aprendeu um bocado desde que estourou nas paradas do mundo inteiro, e eu fico feliz que, mesmo depois de tanto tempo, ela ainda tenha tanto pra compartilhar e continue nessa jornada de amadurecimento e aprendizado não só comigo, mas com tantas outras garotas ao redor do mundo. Nós não estamos sozinhas e os sentimentos continuam sendo os únicos fatos – ainda bem.

2 comentários

  1. “A vida é difícil demais pra eu não me permitir ouvir música pop e me identificar com ela e sofrer e ser feliz e dançar sem parar sem medo de ser julgada, e é realmente uma pena que mais pessoas não reconheçam o valor de tudo isso, dando as costas para uma experiência tão incrível.”
    THIS!

    Nossa, não aguento esse desdém com que muita gente trata a música pop e, no fim, só resta lamentar mesmo porque elas que se limitam, né? E acabam se privando de ótimas experiências.

    Sobre a Carly Rae (também gosto de chamá-la assim <3), também conheci em 2012 e, apesar de adorar "Call Me Maybe", só fui parar para escutá-la de verdade com Emotion e, gente, que delícia de álbum. O que mais gosto na Carly é que ela parece muito gente como a gente, sabe? Consigo muito me imaginar como amiga dela na hora do recreio ou, sei lá, fazendo uma festa do pijama com muita pizza e sorvete. E aí, depois de adultas, a gente continuaria sendo amigas e saindo juntas para dançar ou, como você disse, dividir uma pizza com uma garrafa de vinho.

    Fico chateada que ela seja tão subestimada e que a ~crítica especializada~ não consiga enxergar o seu trabalho como algo além de ~pop superficial~. Normalmente, esse tipo de comentário vem acompanhado de um ar pedante de quem acha que sabe de tudo e é dono da verdade. Sinceramente, não sei lidar com esse tipo de gente e morro de preguiça, haha. Melhor ignorá-las e ir escutar Carly Rae <3

    Adorei o post e, enquanto lia, fiquei pensando "hummm, quem será que escreveu? Será que é a Sharon?", fiquei feliz quando vi que era sim <3

    Beijos

  2. Adoramos o texto!
    Concordamos com cada palavrinha e estamos cheios de orgulho pela Carly receber tanto carinho e ser entendida por vocês, que fazem um ótimo trabalho empoderando mulheres aqui no Valkirias!

    Todo o sucesso e muito amor <3
    Equipe CRJBR

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