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Um Milhão de Finais Felizes e a liberdade de escrever a própria história

Elaborar uma narrativa requer tempo, esforço e dedicação. Mas hoje, em um mundo de redes sociais e de conexões das quais é difícil escapar, é um exercício quase automático: nossos tweets, publicações no Facebook e fotos no Instagram fazem a maior parte do trabalho. E vai além disso: as roupas que usamos, as músicas que ouvimos, os livros que lemos, a forma como reagimos a uma notícia ou outra; tudo contribui para que a nossa história fique mais completa, mais detalhada. Inevitavelmente, passamos o tempo todo construindo quem somos e permitindo que quem está fora da nossa cabeça nos leia de um jeito ou de outro. Só que essa narrativa é pequena. Essa narrativa é só um fragmento.

Aviso: este texto contém spoilers!

A pergunta clichê “o que você faria se você pudesse fazer qualquer coisa?” parece difícil de responder porque ela nos liberta de algumas algemas básicas — dinheiro, família, trabalho. Mas, mais do que isso, ela também nos liberta do julgamento dos outros, da vergonha, do medo. Poder fazer qualquer coisa inclui poder moldar a nossa narrativa com uma liberdade incomum, sem sofrer as consequências. Significa não ser lido apenas pelos nossos feeds ou pelos números nos nossos cartões de crédito, mas, pelo menos uma vez, efetivamente por quem somos, pela coisa impossível que faríamos não fossem todas essas outras coisas que ficam no caminho.

Em Um Milhão de Finais Felizes, segundo livro de Vitor Martins, Jonas é um personagem obrigado a montar a sua narrativa usando uma máscara e a permitir uma leitura dos outros que se afasta muito de quem ele é de fato. Vivendo em uma casa com uma mãe muito religiosa e um pai preconceituoso que marca check em todos os estereótipos do homem desagradável (bruto, grosseiro, preguiçoso), é impossível para o jovem de dezenove anos assumir a sua sexualidade, os seus gostos, os seus incômodos. Resta, então, criar o Jonas de mentirinha: o que falta à igreja não por se sentir julgado, mas porque precisa trabalhar; o que não gosta de meninos; o que não se incomoda em pagar pelos canais de esporte e de filmes adultos que seu pai consome. No ambiente da casa — e não do lar —, não existe espaço para ser.

Como funcionário no Rocket Café, ele cria outra pessoa: o cara tímido que desenha sorrisos nos copos dos garotos bonitos e que apresenta vinte vezes a mesma bebida. Não tem muitos amigos além de Karina, também funcionária e fã de O Pequeno Príncipe, tenta ao máximo cumprir suas obrigações sem criar problemas, mantém um sorrisinho mesmo diante dos fregueses mais absurdos. Ali, em um ambiente profissional, sua narrativa verdadeira também não pode existir, porque as regras, como em casa, têm peso e precisam ser respeitadas. Mais uma vez, portanto, é preciso engolir seco, aguentar meias molhadas por algum tempo, e inventar um personagem que dê conta do serviço.

Um Milhão de Finais Felizes

Mas há ainda o Jonas que transita entre esses dois espaços. O Jonas do metrô, ou o Jonas que vai ao bar com os amigos da escola, ou o Jonas que carrega um caderninho no bolso para anotar histórias que ele gostaria de contar, mas não consegue: ele se comporta de um jeito diferente, mais seu, mais pessoal, e não precisa fingir que não gosta de rapazes, ou que não está lendo um romance gay erótico, ou que não está triste, ou que não se sente inspirado pelos momentos que renderiam bons livros. Há ainda um Jonas entre os dois outros Jonas, que, talvez por estar em trânsito, talvez por existir fora dos ambientes das regras e das expectativas, prospera um pouco melhor.

O aparecimento de um barbudo ruivo e misterioso no Rocket Café é o evento que arremessa o Jonas que só existe entre para todos os lugares. Depois de imitar um meteoro com um pão de queijo na mão e ter a ideia de escrever Piratas Gays, um romance sobre, bom, piratas gays, Jonas passa a extrapolar, pelo menos nos limites permitidos pelas páginas em branco do Word, os limites impostos a si pelos outros. É claro que ainda não pode se apresentar como é de fato nos ambientes que ocupa a maior parte do tempo, mas, com a escrita, passa a ter uma válvula de escape para esses lugares. Não à toa narra a história de romance que gostaria de estar vivendo; não à toa Bart e Tod (seus personagens) não saem da sua cabeça, mas do mundo real — são ele e o ruivo misterioso.

É em uma festa de carnaval — também um espaço onde as ordens do poder se invertem e onde todo mundo pode ser o que quiser, inclusive a sua narrativa mais real e, portanto, mais absurda — que o ruivo recebe um nome: Arthur. Graças a uma bebida derrubada na camisa certa, Jonas enfim pode conhecer e conversar a pessoa que ele já transformou em um interesse romântico e já inseriu na sua história. Eles passam a noite juntos, e, quando emergências acontecem e eles se separam sem trocar telefones ou sobrenomes, Jonas precisa se apegar às páginas do Word outra vez. Arthur enfim aparece, dias depois, mandando uma mensagem para o telefone de Jonas a partir do número que consegue com a sua amiga, e os limites que haviam sido ultrapassados para dentro do computador, a partir da escrita, vazam para o mundo real também. Agora Jonas escreve a sua história, metafórica e literalmente.

O relacionamento dos dois prospera, assim como o relacionamento de Jonas com seus amigos e como a sua escrita — até então sempre deixada de lado. A vida adulta se molda devagar e a liberdade de construir a sua própria história a partir da presença do outro se torna mais real: agora ele se conhece mais profundamente, porque se permite conhecer. Da mesma forma, passa a conhecer melhor Danilo e Karina, abrindo espaço para que ambos também não precisem fragmentar suas histórias quando eles estão juntos. E, embora se afaste de Isa aos poucos, como é comum que aconteça na vida, eles também se permitem honestidade e clareza, sem esconder nada.

Um Milhão de Finais Felizes

É graças a essa construção lenta de quem Jonas realmente é que, quando o livro atinge o seu clímax e as coisas ruins tomam seu lugar, ele não desmonta por completo. É claro que o fim definitivo de uma narrativa que ele precisou construir por anos é avassalador e, de certa forma, o derruba. Contudo, é o fim definitivo de uma narrativa que não era real, e que ocupava um espaço e demandava uma energia que só o afastavam da história que ele deveria estar contando, mas não estava – e essa noção existe nele também, apesar da dor e do sofrimento. Quando, a partir dos acontecimentos da sua vida real, Jonas dá um fim para seu romance de piratas gays que é também um corte definitivo, uma cena da qual não dá pra voltar, mais uma vez ele está ganhando algum controle sobre a sua vida, narrando a sua própria história, com as suas palavras. Escrever a palavra “fim” o obriga a olhar para ela e deixá-la ecoar em si. E depois do fim?

A projeção de si em um projeto ficcional é inevitável porque é só no mundo da fantasia, dos piratas e dos deuses do mar e das sereias, que Jonas consegue prosperar enquanto Jonas, e não enquanto um milhão de fragmentos que não são o seu todo. Encarar a realidade transmutada em um romance com seres que não existem é uma forma de traduzir sentimentos complicados e de direcioná-los para o lugar certo; é, de certa maneira, a resposta para a pergunta “se você pudesse fazer qualquer coisa, o que você faria”. É dizer: eu seria um pirata-sereio com o meu namorado. Daí a escrita de um “segundo final”, que vem depois de perceber que não existem cortes definitivos no mundo real, só pontos finais que possibilitam um parágrafo novo. Daí a escrita, também, de um segundo Jonas.

Um Milhão de Finais Felizes é um livro sobre histórias — sobre escrevê-las e acreditar nelas, sobre encarar os problemas, sobre se dar a liberdade de ser quem é. Todos os personagens enfrentam os seus momentos de montanha-russa, todos os personagens precisam provar o tempo inteiro para os outros que as suas verdades absolutas — e não apenas o que eles mostram em um momento ou outro — merecem existir e merecem ser respeitadas também. É Jonas quem narra essa busca por uma versão da sua história que valha a pena narrar, porque é ele o escritor do livro — do livro real, que nós lemos, e do seu próprio, que nos é mostrado uma vez ou outra. E acompanhá-lo enquanto ele se descobre é uma forma de permitir que nós nos descubramos também, enquanto leitores e enquanto narradores de uma história nossa, além das páginas do livro.

O que Vitor Martins constrói é mais do que um livro sobre aceitação, sobre família, sobre amigos. Um Milhão de Finais Felizes é um livro sobre a liberdade de contar a própria história, sobre o poder que o espaço ficcional tem diante da impossibilidade de ser quem somos no mundo real. E hoje, em um mundo de narrativas semi prontas, onde todo mundo lê todo mundo o tempo todo, e todo mundo se reconstrói pra caber em uma caixinha de expectativas ou outra, estimular a coragem de narrar quem realmente somos é promover o sentimento de que não estamos sozinhos, não somos uma pessoa só contra o mundo inteiro, não precisamos mais fingir.

Ninguém precisa mais fingir.

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* A arte em destaque é de autoria da editora Ana C. Vieira.

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1 comentário

  1. Devorei os dois livros do Vitor no começo do ano com o meu melhor amigo e foi tão especial que não dá nem pra descrever, Amanda. Estou feliz que ele esteja por aqui, gostei muito da sua resenha. Não tenho o que acrescentar, mas vou aproveitar pra deixar a indicação de Quinze dias que é tão lindo quanto! {;

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