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O Menino e a Garça: como você vive?

Como você vive? Como concilia amor e perda? Como lida com os efeitos do tempo e com os ecos da memória? Essas são algumas das reflexões trazidas em O Menino e a Garça, novo filme do mestre da animação japonesa, Hayao Miyazaki. A tão aguardada nova adição à filmografia do Studio Ghibli é profunda e emocionante sem perder a característica leveza.

É o início da década de 1940 e o Japão sofre com a destruição gerada pelos conflitos da Segunda Guerra Mundial. O protagonista da trama é o jovem Mahito, que acaba de perder a mãe em um incêndio causado durante um bombardeio em Tóquio. Para fugir da guerra, o menino se muda para o interior com o pai e passa a morar com a nova mulher dele, que é irmã de sua mãe. A casa no campo está na família de Mahito por gerações e, conforme ele explora o lugar, começa a desvendar os segredos do passado.

O Menino e a Garça

Uma garça-real local ronda Mahito e o guia para uma torre misteriosa com a promessa de que poderia encontrar sua mãe viva ao entrar no espaço proibido. Apesar de recusar a proposta de início, o menino termina por seguir o pássaro depois que sua tia desaparece. Ao adentrar a torre, ele é transportado para um outro mundo, onde vida e morte se misturam, criaturas dos mais diversos tipos coexistem e o tempo linear é quase uma ilusão. Nessa realidade cósmica, o mundo é criado a partir do delicado equilíbrio de blocos de madeira empilhados.

A tradução do título original do filme é “Como você vive?” e a história é baseada no livro homônimo de Genzaburo Yoshino. Publicado em 1937, o romance acompanha Copper, um menino de 15 anos que começa a refletir sobre o mundo depois de perder o pai. Guiado pelas anotações do diário de seu tio, ele pondera sobre as grandes questões da vida. A obra audiovisual de Miyazaki guarda muitas similaridades com a peça literária que a inspirou. O livro, inclusive, faz parte do filme como um presente que a mãe de Mahito deixa para o filho.

Um adeus?

O Menino e a Garça

Hayao Miyazaki anunciou a sua aposentadoria pela primeira vez depois do lançamento de Princesa Mononoke, em 1997. Desde então, praticamente cada filme seu que chegou às telas veio acompanhado de um período sabático. Em 2013, finalizado o longa-metragem Vidas ao Vento, o diretor garantiu que seria definitivamente um aposentado. No entanto, a produção de O Menino e a Garça começou em 2016, com Miyazaki de volta ao estúdio para o qual dedicou sua vida para começar mais um projeto — talvez, seu último adeus.

O diretor já declarou algumas vezes não se sentir à vontade em insistir na volta ao ofício sob a crença de que “o talento se desgasta com o tempo”. Porém, seus filmes recentes não refletem as alegações de que a idade limita a criatividade. O Menino e a Garça é o mais complexo e profundo da carreira de Miyazaki. A obra possui todas as melhores características dos longas do Studio Ghibli, em especial, o delicado e único equilíbrio entre sensibilidade, reflexão, poesia e irreverência. Cada detalhe é tão bem pensado que há significado em tudo, desde as belas cenas de multidão até uma singela pegada na lama.

A obra é, ao mesmo tempo, pode ser lido como o adeus do lendário diretor de animação e a história do menino que ele foi — e, talvez, ainda seja. O filme traça diversos paralelos com a vida de Miyazaki, o que confere um tom autobiográfico à ficção. Durante a infância, Hayao, assim como Mahito, precisou buscar refúgio no campo para se proteger da guerra. Seu pai era diretor de uma empresa que produzia peças para aviões de combate e, por ser muito próximo da mãe, sua morte também foi um evento marcante na vida do diretor. Miyazaki declarou que suas memórias mais antigas são de cidades bombardeadas. Nesse sentido, os horrores do conflito, seus ditadores e poder de fogo, a maldade do ser humano, tudo encontra espaço nas alegorias da narrativa.

O Menino e a Garça

Arrisco dizer que há, ainda, uma certa semelhança — menos óbvia — entre o tio-bisavô do protagonista, que supostamente enlouqueceu depois de ler demais, e a figura do gênio da animação, como é reconhecido. Uma maneira de representar de forma sensível o peso do conhecimento e do ofício, algo que parece assombrar o final da carreira de Miyazaki.

De um modo, o novo filme também guarda algumas similaridades com o grande sucesso do estúdio, A Viagem de Chihiro (2001). Ambos nos levam em jornadas de amadurecimento em mundos fantásticos que extrapolam a vida mundana. Somos convidados a olhar para dentro e encarar nossas inseguranças, medos e anseios a partir de aventuras e criaturas mágicas que revelam muito sobre o que é ser humano.

E o agora?

Assistir a um filme do Studio Ghibli é quase sempre uma experiência, uma vez que não é difícil embarcar na história e se perder na ficção. Desse modo, é possível perceber através de uma mudança no estilo narrativo duas partes subentendidas em O Menino e a Garça. No início, a trama é mais introspectiva ao lidar diretamente com o luto de Mahito e as dificuldades dele em se adaptar à nova vida. Assim, a escolha por uma sequência mais suave é muito apropriada. No entanto, ao entrar no mundo escondido na torre, o ritmo se intensifica, conferindo uma dinamicidade quase caótica aos acontecimentos.

O Menino e a Garça

O filme não é óbvio e acredito que sua vocação seja exatamente suscitar perguntas. A história de Mahito não foi feita para ser devorada, mas lentamente apreciada com um bocado de reflexão. Na era em que tudo é excessivamente explicado em tela, é revigorante ver que Miyazaki não subestima seus espectadores. Pelo contrário, o diretor deixa que a trama se desenrole sem muitos diálogos e nos convida a submergir completamente em sua narrativa. Conforme a história avança, as dúvidas são sanadas aos poucos e, gradativamente, vamos desvendando as muitas camadas. Um sinal do profundo respeito que o mestre da animação tem pelo trabalho e pelo público.

Ao longo de toda a sua filmografia, as pequenezas e singelezas do cotidiano sempre foram a principal fonte de inspiração para o diretor. Não é surpresa ouvir que os filmes do Studio Ghibli romantizam os pequenos momentos não percebidos do dia a dia. A história de O Menino e a Garça nos mostra que não é saudável viver apegado ao passado, muito menos fugir para o futuro — ainda que só precisemos abrir uma porta para chegar lá. Ela nos mostra o começo e o fim para nos indagar sobre o meio, já que tudo o que fazemos, com ou sem intenção, impacta nossa própria trajetória — e a dos outros. Cada atitude traz consigo diferentes graus de bondade e maldade, assim, o importante é aprender a viver com isso. Junto com Mahito, descobrimos que o nosso lugar é no agora.

O Menino e a Garça é um coming-of-age para todas as idades, já que nunca é tarde demais para contemplar a vida. Uma obra sensível e profunda que busca, em cada espectador, uma resposta subjetiva acerca da habilidade e da arte de sobreviver. Com muita imaginação e fantasia nos lembra da finitude de todas as coisas, contra a qual não tem sentido lutar. A melhor saída é descobrir como viver com as mudanças trazidas pela inevitável passagem do tempo.

O Menino e a Garça recebeu 1 indicação ao Oscar na categoria de: Melhor Animação.