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Manoel de Barros: “O poema é um inutensílio”

Existem leituras que dividem nossa vida em um “antes” e “depois”. A obra de Manoel de Barros é uma dessas, que logo abre o apetite para consumirmos tudo que ele produziu. Considerado por Carlos Drummond de Andrade como o maior poeta vivo (à época), todavia, não é tão conhecido quanto outros de sua geração.

O que se sobressai é a forma como ele glorifica o inútil, o nada, o disfuncional, temas que lhe são recorrentes. É a contramão do excesso de estímulo que recebemos, no sentido de nossos bens, relacionamentos e nós próprios termos serventia.

Manoel de Barros oferece o alento. Pode-se abraçar o que “não leva a nada”, os seres considerados desimportantes e as coisas desúteis. Não há demérito algum. Retornar àquele encantamento de criança, que brinca sem ter se contaminado ainda com as noções de utilidade, lucro e poder. Há quando ainda se é o “ser” que não conhece o “ter”.

Manoel de Barros

Quem foi Manoel de Barros

Manoel de Barros (1916-2014) viveu em Corumbá-MS até os 8 anos, experiência que marcou o seu fazer poético, “eu tenho que essa visão oblíqua vem de eu ter sido criança em algum lugar perdido onde havia transfusão da natureza e comunhão com ela”. Mesmo apartado do pantanal, carregou consigo as suas “raízes crianceiras”, o que fez com que ele retornasse, depois de formado e casado, à Corumbá.

Durante 10 anos trabalhou com afinco para se estabilizar, e, segundo ele, concretizar o objetivo de “ser inútil”. Em suas palavras, só não foi “para a sarjeta” porque herdou de seu pai uma fazenda de gado. Não sabia fazer outra coisa que não poesia. O seu escritório chamava de “o lugar de ser inútil”.

O reconhecimento chegou na década de 80, quando Millôr Fernandes e Antônio Houaiss fizeram uma crítica favorável a Arranjos para Assobio: “o negócio é fazer, fazer e fazer. Sem olhar pros outros. Foi o que fiz. Um dia, aos 60 anos, alguém me viu.” Depois disso, passou a ser conhecido pelo grande público, premiado com o Jabuti por O Guardador de Águas, em 1987, e O Fazedor de Amanhecer, em 2002. Inclusive,  Carlos Drummond de Andrade, ao receber o título de maior poeta vivo, teria recusado em razão de Manoel de Barros ainda estar vivo.

Diga-se de passagem, seus livros têm os títulos mais criativos, na minha opinião: Poemas Concebidos Sem Pecado (1937), Compêndio Para Uso dos Pássaros (1960), Gramática Expositiva do Chão (1966), Livro das Pré-coisas (1985), Concerto a Céu Aberto para Solos de Ave (1991), O Livro das Ignorãças (1993), Livro Sobre Nada (1996), Retrato do Artista Quando Coisa (1998) são alguns.

Manoel de Barros na mídia

Pode-se encontrar referências a Manoel de Barros no documentário Só Dez Por Cento é Mentira (2008), de Pedro Cézar, Caramujo-flor, de Joel Pizzini e na página do Instagram “Manoelismos”.

Além disso, a novela Pantanal também possui ligação com o poeta. Na primeira versão (1990), a atriz Cássia Kiss (a qual lamentavelmente proferiu declarações homofóbicas em 2023), que representava a Maria Marruá, entrou em contato com a obra de Manoel de Barros durante as filmagens, ao ganhar de presente uma revista com uma entrevista do poeta. Posteriormente, em um dia de filmagem chuvoso, ao entrar em uma cabine para se comunicar com a cidade via rádio, coincidentemente encontrou um livro chamado Poesia quase toda de Manoel de Barros.

Essa referência foi utilizada no remake (2022), em que, para a promoção da novela, foi lançada nas redes sociais uma série chamada “O elenco de Pantanal recita Manoel de Barros”. Além disso, a certa altura, ao ser alfabetizada, Juma (Alanis Guillen) ganha de presente de Jove (Jesuíta Barbosa) o Livro de Pré-coisas, que propõe um “roteiro para uma excursão poética no Pantanal”.

Manoel de Barros

O inutensílio poético

Manoel de Barros, no entanto, não queria ser rotulado como o “poeta do pantanal”, que apenas canta aquelas paisagens. Ele cantou os desobjetos, as coisas desúteis, as despalavras, a grandeza do ínfimo e as pessoas pertencidas de abandono.

Aquilo que chamamos de “progresso” deixa para trás as coisas desúteis e os seres desimportantes, para utilizar os neologismos de Manoel de Barros. É naquilo que foi descartado que está a chave para a compreensão de uma sociedade e das pessoas que a compõem. Ao poeta cumpre contemplar esses escombros, ser cronista do que foi descartado pela história, de modo que Manoel de Barros escreveu um Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo.

“Agora a nossa realidade se desmorona. Despencam-se deuses, valores, paredes… Estamos entre ruínas. A nós, poetas destes tempos, cabe falar dos morcegos que voam por dentro dessas ruínas. Dos restos humanos fazendo discursos sozinhos nas ruas. A nós cabe falar do lixo sobrado e dos rios podres que correm por dentro de nós e das casas. Aos poetas do futuro caberá a reconstrução — se houver reconstrução. Porém, a nós, a nós, sem dúvida — resta falar dos fragmentos, do homem fragmentado que, perdendo suas crenças, perdeu sua unidade interior. É dever dos poetas de hoje falar de tudo que sobrou das ruínas — e está cego. Cego e torto e nutrido de cinzas. Portanto, não tenho nada em comum com a Geração 45. E, se alguma alteração tem sofrido a minha poesia, é a de tornar-se em cada livro, mais fragmentária. Mais obtida por escombros. Sendo assim, cada vez mais, o aproveitamento de materiais e passarinhos de uma demolição.”

Em tempos de obsolescência programada — isto é, produtos cuja vida útil é encurtada propositalmente para aumentar o consumo — e inteligência artificial, haverá cada vez mais desobjetos, coisas desúteis e pessoas pertencidas de abandono, pois a capacidade humana de se adaptar às transformações exponenciais dessas tecnologias é limitada. Tudo isso, matéria de poesia:

“Tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma
e que você não pode vender no mercado
como, por exemplo, o coração verde
dos pássaros,
serve para poesia”

É nesse sentido que Manoel de Barros entende que “o poema é antes de tudo um inutensílio”, algo que não é visto em termos de utilidade, de obtenção de lucro. É comum não considerarem o fazer literário ou artístico como um ofício, além disso, existe a discussão sobre se a poesia não seria um fim em si mesma. Se o fazer literário ou artístico são tidos como “inúteis”, cabe à poesia então abraçar o que “não leva a nada”, os seres desimportantes e as coisas desúteis.

Estamos acostumados a pensar em termos de “para que serve”, do que pode fazer, e não do que é em si mesmo. Significa dizer que os seres humanos, desumanizados, já não conseguem enxergar sem ser em termos utilitários. Quando se fala em “criançamento das palavras”, refere-se também a este lugar da criança que ainda não foi influenciada pelo conceito de utilidade, lucro e poder. “Ascender para a infância” seria então a contramão, o viver lento, alimentar os olhos, conhecer através de experiências sensoriais. Desse modo, Manoel de Barros propõe subverter a forma como percebemos a realidade: “o olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê. / É preciso transver o mundo.”


Referências

BARROS, Manoel de. Memórias inventadas – A infância. São Paulo: Planeta, 2003.

BARROS, Manoel de. Poesia completa – Manoel de Barros. São Paulo: Leya, 2010.

ITAÚ CULTURAL. A vida por trás de um prego enferrujado – Ocupação Manoel de Barros (2019). YouTube, 2019. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=hm2OPdT2Qr8Acesso em: 9 jul. 2023.

ITAÚ CULTURAL. O revolucionário ato de desordenar a língua – Ocupação Manoel de Barros (2019). 12 fev. 2019. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=rsdOopCJE28 Acesso em: 12 jul. 2022.

KISHI, Kátia. Manoel de Barros: ver, rever e transver. Cienc. Cult., São Paulo, v. 68, n. 2, p. 60-61, June 2016.  Disponível em: http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252016000200018&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 8 jul. 2023.

LETRASINVERSO. Manoel de Barros – Só Dez por Cento é Mentira. YouTube, 15 de fev. de 2013. Disponível em: Acesso em: 7 jul. 2023.

SOUSA, José Ricardo Guimarães. Sobre restos e trapos: a disfunção na poesia de Manoel de Barros. Tese (doutorado), Faculdade de Letras, Universidade de Minas Gerais, Belo Horizonte-MG, 2013.


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3 comentários

  1. Você quebrou o possível encanto do texto, com uma crítica pessoal a atriz, desnecessário, que pena!

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