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A segunda temporada de Yellowjackets e a (des)importância do mistério para a série

A primeira temporada de Yellowjackets foi recebida com entusiasmo por público e crítica, o que resultou em indicações a prêmios e em uma propaganda boca a boca eficiente, capaz de fazer com que a popularidade da série crescesse consideravelmente ao longo da exibição. Então, assim como todo produto de nicho que fura a bolha para a qual foi pensado, a criação de Ashley Lyle e Bart Nickerson acabou despertando a atenção de espectadores pouco acostumados às convenções do horror e às possibilidades do gênero. Essa parcela do público parece consumir Yellowjackets como uma série de mistério, uma visão bastante descolada da realidade mesmo quando consideramos somente os dez episódios que compõem o primeiro ano. É claro que existem coisas a serem explicadas, mas a história é transparente desde a sua assombrosa cena de abertura. Quem assiste pode não saber como as coisas chegaram àquele ponto, mas sabe exatamente porque esse caminho é inevitável.

Apesar disso, é comum encontrar reclamações a respeito das revelações feitas nos dois últimos episódios da segunda temporada, especialmente sobre a exposição da identidade da Antler Queen. As pessoas que consideram essa decisão equivocada fundamentam a sua argumentação na ideia de que agora não sobrou nada para mantê-las presas porque este era o principal segredo do programa. E somente a partir dessa noção já é possível entender onde está o erro em tratar Yellowjackets como uma série de mistério. Porque, verdade seja dita, nunca foi sobre isso ou nós não saberíamos que aquelas meninas caçaram umas às outras para sobreviver. Portanto, o que realmente interessa é como as relações de poder se constroem e se dissolvem em espaços curtos de tempo uma vez que as normas sociais desapareceram.

Atenção: esse texto contém spoilers!

A partir da compreensão desses aspectos, a própria ideia de que a Antler Queen tem uma única identidade se torna insustentável. Na realidade, ela deveria ser considerada uma abstração tão necessária para a sobrevivência das personagens quanto abrigo ou comida. Isso porque, desde o começo, as meninas precisaram se virar umas para as outras em busca de liderança, principalmente depois de perceber que as figuras adultas ao seu redor estavam mortas ou incapacitadas. Em um primeiro momento, Misty (Samantha Hanrathy) é quem assume o manto de rainha devido aos seus conhecimentos de primeiros socorros e plantas. Porém, uma vez que os desafios iniciais são superados e o resgate não acontece, o que as garotas precisam é de esperança para atravessar o rigoroso inverno canadense. Com a comida escassa e sofrendo a perda de Jackie (Ella Purnell), elas acabam se voltando para Lottie (Courtney Eaton) e a sua suposta compreensão da floresta. Então, a fé passa a desempenhar um papel central mesmo para aquelas que escolhem se manter céticas, como Natalie (Sophie Thatcher), Shawna (Sophie Nélisse) e Taissa (Jasmine Savoy-Brown). Ainda que elas não participem dos rituais, a maneira como Lottie passa a ser entendida como uma divindade interfere diretamente no convívio coletivo. Até que, eventualmente, acreditar deixa de ser o suficiente para continuar e o grupo passa a precisar de alguém com senso prático, algo que a própria Lottie percebe ao apontar Natalie como a sua sucessora — mesmo que ela justifique a sua escolha afirmando que a floresta deseja uma nova rainha.

Dessa forma, a trajetória percorrida por Yellowjackets mostra a volatilidade do poder dentro do grupo. E isso não poderia ser diferente porque, ainda que a série retrate um cenário muito distante dos corredores de escolas, que são os espaços normalmente ocupados por garotas dessa faixa etária no audiovisual, ela ainda aborda adolescentes. Ou seja, lida com pessoas em formação e cujas noções de coletividade, por vezes, se resumem a grupos muito pequenos e compostos apenas pelos seus amigos mais próximos. Se mesmo nesse cenário administrar interesses conflitantes é desafiador, na selva canadense a dificuldade é potencializada pelo caráter urgente que a paisagem áspera evoca.

Yellowjackets

Essas questões, quando somadas ao fato de que Ashley Lyle chegou a declarar que o seu plano é encerrar Yellowjackets na quinta temporada, servem para mostrar claramente que Natalie não vai segurar a sua coroa durante todo esse tempo. Na verdade, as tensões já estão batendo à sua porta porque Shawna acredita que ela deveria ter sido escolhida para liderar o grupo. Assim, mesmo que a série opte por não se encaminhar para uma rivalidade entre as duas, quem sabe quais serão as próximas necessidades coletivas uma vez que a comida deixar de ser um problema? Como Natalie, consumida pela culpa de ter trocado a vida de Javi (Luciano Leroux) pela sua, poderá continuar a pensar nessas demandas? O futuro de Yellowjackets e a linha de sucessão dependem dessas respostas e, talvez, elas cheguem até o público no episódio especial, que funcionará como a ponte entre a segunda e a terceira temporada, mas ainda segue sem data de lançamento.

Para além da luta por sobrevivência, a segunda temporada avançou alguns pontos importantes do presente das personagens. Uma frase repetida em vários episódios, especialmente pela versão adulta de Lottie (Simone Kessell), é que elas trouxeram de volta consigo o que vivia de obscuro na floresta. Embora ela esteja falando sobre forças sobrenaturais, é difícil acreditar que o roteiro coloca essa linha de diálogo na boca de uma personagem esquizofrênica gratuitamente. Na verdade, ele parece querer comunicar algo sobre perda de contato com a realidade, o que em maior ou menor escala aconteceu com todas as yellowjackets.

Embora seja fácil discutir essas questões comentando a respeito da própria Lottie e do seu “retiro espiritual” para desajustados, assim como abordando o retorno da “dupla personalidade” de Taissa (Tawny Cypress) ou fazendo referência ao vício de Natalie (Juliette Lewis), essa desconexão também é muito notável em Van (Lauren Ambrose), que mantém os pés fincados nos anos 1990: ela trabalha em uma videolocadora, se veste da mesma forma de quando era adolescente e consome os mesmos tipos de música e filmes. Logo, ainda que de uma forma menos autodestrutiva, ela trouxe a escuridão consigo porque existe uma recusa a seguir em frente. Isso também se faz notar em Misty (Christina Ricci) devido à sua insistência por manter as yellowjackets unidas; e em Shawna (Melanie Lynskey), casada com Jeff (Warren Kole) e vivendo a vida que deveria ter sido de Jackie. Então, quando Lottie diz que a floresta voltou com elas, ela está falando sobre a impossibilidade de apagar o que aconteceu, que foi justamente o tema dos dez primeiros episódios da série e que culminou no assassinato de Adam (Peter Gadiot), cuja investigação foi responsável por colocar todas as personagens no mesmo ambiente e forçou-as a olhar, mesmo que com alguns desvios, para aqueles 19 meses na selva.

Nesse sentido, o grande destaque da segunda temporada foi Natalie, a única disposta a romper o ciclo de negação, talvez por ter menos a perder confrontando o passado. Na cena do reencontro, quando Lottie sugere que elas organizem uma caçada pela última vez, Natalie é a primeira das yellowjackets a entender que a solução para os problemas correntes não está em retomar velhos hábitos. A sobrevivência não depende mais de comida, abrigo ou de dar à floresta o que ela exige, mas sim de encarar os fatos: elas estavam perdidas, sem perspectivas de resgate e fizeram o que precisavam. Então, mais uma vez, os segredos não importam. Tanto faz se existia realmente alguma coisa assombrando a mata ou se a versão de Lottie acabou sendo aceita porque as meninas precisavam de algo para distraí-las do horror dos seus atos. As coisas aconteceram como aconteceram e o que sobra é lidar com os seus desdobramentos ao invés de proteger o passado até daqueles que viveram a experiência. E é por isso que o desfecho de Natalie soa, ao mesmo tempo, amargo e coerente. Durante a sua estadia no retiro de Lottie, ela acabou desenvolvendo um vínculo com Lisa (Nicole Maines) e percebendo o esforço da nova amiga para se desprender dos seus demônios. Mais do que isso, Nat viu na jovem uma possibilidade concreta de libertação, o que ela nunca conseguiu se permitir devido à culpa. Portanto, o seu sacrifício também pode ser lido como uma forma de encontrar a redenção que sempre pareceu fora do seu alcance — algo que pode ser ilustrado perfeitamente pela primeira vez que vemos Natalie em cena, ainda no piloto, ocasião na qual ela fala sobre ter perdido o seu propósito depois de voltar para casa. A parte amarga fica por conta do fato de que, pela primeira vez, a personagem parecia próxima de conseguir se reerguer e, quem sabe, se desprender do seu vício.

Yellowjackets

Então, não importa se estamos falando de passado ou presente, o elemento de mistério em Yellowjackets é algo secundário. Essa é uma série sobre personagens quebrados e complexos marcados por um evento desolador. Ela poderia perfeitamente ser desenvolvida na forma de drama. Mas onde estaria a diversão nisso? E, principalmente, será que a história teria o mesmo impacto sem os seus elementos de horror? Essas são perguntas retóricas porque todos nós sabemos as respostas. Entretanto, o que parece escapar de uma parcela do público é que a função do gênero é meramente classificatória e serve muito mais a propósitos de distribuição e venda. Logo, ele não deveria ser entendido como uma cartilha com regras fixas ou como algo limitante. O gênero é uma forma, um meio para um fim, e como tal ele precisa estar a serviço do conteúdo para que a mensagem seja efetiva. Desse modo, ele poderia ser qualquer outro caso os realizadores do projeto julgassem possível ou interessante desenvolver a história a partir de diretrizes distintas. Por exemplo, Entrevista com o Vampiro (Interview With The Vampire, 1994) e O Que Fazemos nas Sombras (What We Do In The Shadows, 2014) são incontestavelmente narrativas sobre vampiros. Porém, enquanto a primeira se vale de recursos assustadores, a segunda opta por enxergar o ridículo nas criaturas que retrata, usando a comédia como forma de atingir os seus objetivos. Ambos os filmes usam os mesmos elementos: a ideia da imortalidade como uma prisão, a tentativa de existir em sociedade passando despercebido e, claro, a sede de sangue, mas chegam em lugares muito distintos por explorarem o seu material a partir de pontos de vista diferentes.

Observando estes aspectos fica mais fácil entender que Yellowjackets não tem a obrigação de esconder certos pontos da sua trama apenas porque parte do público tem uma percepção limitante do horror. Embora o gênero possa caminhar em diversas direções, ainda é bastante enraizada a noção de que ele consiste em sustos e surpresas. Esse segundo aspecto, inclusive, é notório por ter afundado vários sucessos televisivos. O caso mais óbvio é o de Lost, que nos seus primeiros anos levantou tantas perguntas e manteve tantos mistérios que se tornou inviável responder a tudo e ainda encontrar espaço para desenvolver os personagens de uma maneira coerente. A partir dessa impossibilidade, surgiu a necessidade de fazer uma websérie esclarecendo algumas pontas soltas, o que por si só é problemático porque qualquer obra deveria se bastar e ter um fim em si mesma. Então, se deixar prender pela ideia de “explodir a cabeça” do público a cada nova migalha de informação é uma receita para condenar um produto audiovisual e, ainda bem, Ashley Lyle e Bart Nickerson parecem saber disso.

Yellowjackets

Considerando todos esses aspectos, é impossível concordar com a ideia de que não existe mais nada interessante para acompanhar em Yellowjackets agora que nós sabemos quem é a Antler Queen. De todas as críticas que a segunda temporada sofreu, as que fazem sentido estão bem distantes de questionar essa escolha. Na verdade, elas apontam a pressa de storytelling em encerrar algumas tramas. De fato, o episódio final poderia ter se beneficiado de mais tempo ou de uma divisão em duas partes, já que a temporada acabou ficando com um capítulo a menos do que a primeira. Isso ajudaria na construção da tensão, algo bastante necessário para um momento no qual absolutamente todo o elenco estava concentrado no mesmo espaço e cada núcleo agia movido por um interesse distinto. Mas mesmo esse desfecho apressado está longe de ser algo que comprometa o futuro da série porque usá-lo para expor segredos não foi um problema de timing, que foi tão bom quanto poderia. Afinal, quando um produto de horror segura as suas revelações por tempo demais, elas perdem o peso.

Portanto, a segunda temporada marca um ponto de transição importante para a série. Isso porque ela preparou bem o terreno para os momentos obscuros que com certeza estão por vir agora que as meninas perderam o seu abrigo e as suas versões adultas vão precisar lidar com a perda de Natalie.

2 comentários

  1. Adoro a série… Fiquei decepcionada pelo fim da Natalie, mas por outro lado compreendi que era aquilo q ela queria…
    Agora só aguardando pela próxima temporada e ver como elas lidaram com esse reinado da nova Antler Queen.

  2. Essa segunda temporada de yellowjackets não foi tão boa quanto a 1° primeira, isso é um fato, mas a série continua sendo uma ótima obra ficcional que aborda aspectos antropológicos sobre essas mulheres em seus diferentes períodos de vida, enquanto vivam nas florestas canadenses e 2 décadas após isso. Porém sinto que o ritmo dessa temporada tenha sido o maior inimigo dos roteiristas, já que pelo menos eu não senti o desenvolvimento para que a natalie adulta tivesse uma despedida no final da temporada adequado com oq foi contado, com ela morta por uma overdose de um medicamento em meio a um período de 1 semana sóbria, não me parece certo pra mim, ainda mais quando nem foi ela que causou tal overdose. Dr certa forma, foi um final bem infeliz para a personagem que aos meus olhos era a yellowjackets que eu possuía mais empatia dentro todas as outras ali, pq ela era a única disposta a encarar as consequências de seus atos.

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