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De frente com Valkirias: Ana Rüsche e a literatura independente no Brasil

A escritora Ana Rüsche nasceu em 1979, na cidade de São Paulo. Doutora em Letras pela Universidade de São Paulo, com tese sobre utopia e feminismo em romances contemporâneos, é autora de Acordados (romance, 2007) e Furiosa (poesia, 2016), entre outros livros.

Ana Rüsche acaba de lançar seu novo romance pela editora Quelônio, em edição inteiramente artesanal: Do Amor – O Dia em Que Rimbaud Decidiu Vender Armas é uma obra que desafia as classificações estritas de gênero, misturando autoficção, poesia e ensaio. Escrito em duas partes divididas em dez anos (a primeira em 2007, a segunda, em 2017), o livro faz “uma investigação ao mesmo tempo pessoal e reflexiva das possibilidades afetivas, literárias e políticas do amor ‘nos tempos da câmera’”, nas palavras da editora. Nessa entrevista, conversamos com a autora sobre literatura, o mercado editorial brasileiro e os desafios que enfrentou ao longo dos anos.

Como foi a experiência de retornar ao texto que você escreveu dez anos antes? O eu que narra a segunda parte do livro, escrita em 2017, é muito diferente do eu que narra a primeira, escrita em 2007?

ANA RÜSCHE: Retornar a um texto escrito há dez anos é um exercício de paciência consigo mesma. Tudo parece falho, pretensioso, errático. Respirei muitas vezes durante o processo — aquelas inspirações bem fundas de quem está a ponto de desistir. Ajudou muito puxar os fios de memória que me levam a uma Ana que não existe mais, procurar lembrar da felicidade em produzir o texto, as tentativas. Evitar julgar com lentes catastrofistas. Sobre o texto escrito em 2017: é tão rico o processo de editar um livro! Queria compartilhar um pouco desta experiência que guarda um risco, incômodos e alegrias. Os editores da Quelônio, Bruno Zeni e Silvia Nastari, utilizaram no projeto gráfico este segundo texto quase como um contraponto ao texto de 2007. Um livro que também comenta o processo de se tornar livro.

Do Amor - Ana Rüsche

No livro, você escreve que uma das razões para não ter publicado o texto de 2007 foi a experiência de uma crise depressiva, hoje vencida. Falar sobre um assunto que permanece tabu foi muito difícil? 

A.R.: Resolvi escrever abertamente sobre o tema, pois pensei que poderia ajudar outras pessoas em duas mensagens, a do “não é só você”, acontece com outras pessoas; a do “veja, é possível sair disso”, muita paciência. Espero que ressoe em alguém, que traga algum conforto. Há muita maravilha no mundo (existe a poesia!). Me mostrar frágil talvez ajude a apontar que a vida bonita se faz de muita paciência, cuidado e carinho. Sobretudo paciência. E muitos suspiros. Um dia de cada vez.

Como tem sido a experiência de escrever e publicar no Brasil ao longo desses anos? Você sente uma abertura no mercado editorial atual em relação a quando começou?

A.R.: A maior mudança que sinto é a explosão das editoras de pequeno porte e projetos independentes. Há uma proliferação de casas editoriais com bons trabalhos — o tempo dirá ao que vieram. Muitas possuem no corpo editorial pessoas com traquejo, realizando um trabalho de qualidade incrível e comparável a grandes grupos. Despontaram das modificações técnicas no parque gráfico que mencionei acima e também de alguns vazios de mercado (a Editora Patuá surgiu, há 7 anos, pois quase ninguém publicava poesia, para dar um exemplo). Dentro da prosa contemporânea, além da Editora Quelônio (editora do Do Amor), lembro dos bons trabalhos da Elefante, Lote 42, Pólen e Reformatório, Urutau que produzem livros interessantes, com outros enfoques e vozes. Há muitas outras casas pequenas maravilhosas — em São Paulo, basta ir à Feira Plana, à Feira Miolos ou mesmo percorrer as casas das editoras independentes durante a Flip em Paraty para observar este cenário. Em comparação a outros países de desenvolvimento semelhante — penso em outros países da América Latina — melhoramos muito as chances de conseguirmos publicar e espero que este momento não seja somente uma fase. O pior gargalo brasileiro ainda é a distribuição, pois livrarias maiores raramente comercializam livros independentes ou com propostas literárias mais arriscadas. Saídas são a venda pela internet e feiras que pululam, visitadas por um público animado por novidades. Será que vamos assistir ao renascimento de espaços comunitários que servirão como livrarias? A Tapera Taperá surgiu em São Paulo com esta proposta e vive cheia. Com relação a projeto gráfico, ah, nossos livros brasileiros são lindos! Do Amor não foge à regra, está primoroso. Obra da Editora Quelônio.

Ana Rüsche

A poeta e tradutora Francesca Cricelli escreveu o texto de apresentação do livro e você é bastante engajada em apoiar o trabalho de mulheres. Quais outras autoras contemporâneas, nacionais e internacionais, você recomenda?

A.R.: Publiquei meu primeiro livro em 2005, imersa em cenário e contexto um pouco diferentes de hoje. Publicar um livro, no início do século, demandava um aporte de dinheiro grande, pois as gráficas precisavam fazer um fotolito por folha de livro e impressão só compensava em tiragens maiores. Ou seja, poucas editoras se arriscavam a publicar textos de cunho mais experimental ou de gente pouco conhecida e/ou novata. Você ficava sabendo quem interessava ler da literatura contemporânea por jornais de grande circulação, assim como por revistas especializadas. Este sistema peneirava de forma bastante severa mulheres, escritores de periferia, pessoas negras, pessoas trans, pessoas que escrevem em português em países africanos, entre outros grupos. A mudança tecnológica tanto no setor gráfico (impressão sem fotolito e em escalas pequenas, além do e-book) quanto nas comunicações (explosão dos blogs e depois o estabelecimento de redes sociais), sem esquecer nas alterações históricas que reacendem pautas de movimento sociais como o negro, feminista, LGBTQ+, trará uma mudança no sistema de publicação e recepção da literatura no Brasil. Um respiro. Uma entrada de novas vozes, novos gêneros literários. Afetou até a Flip! Diante de tudo, aqui neste coração, é impossível não se engajar e se emocionar para pedir que este respiro momentâneo seja mais duradouro. Desconfio que estamos assistindo a algo mais potente que a Semana de Arte Moderna de 1922. Entretanto, como a mudança é fragmentária, imbricada a pressões de mercado e sem um marco temporal nítido, é difícil de precisar. Assim, é importante insistir para que o futuro não apague esta onda. É bom demais ler outras mulheres. Descobrir outros pontos de vista, outras experiências. Como leio demais (para compensar, apenas assisti a um filme este ano), então a listinha vai no que bateu em meu coração agora. Uma mistura de gêneros: poesia, ficção científica e textos sobre memória.

Nacionais
Aline ValekAs Águas-vivas Não Sabem de Si (ficção científica, Rocco)
Carolina Maria de JesusDiário de Bitita (Ed. SESI-SP)
Jeanne CallegariMiolos Frescos (poesia, Ed. Patuá)
PaguPaixão Pagu (Ediouro)

Internacionais
Adília LopesAntologia (poesia, Cosac Naify)
Lília Momplé, Neighbours (o livro é em português, Lisboa: Ed. Porto) 
Octavia Butler, Kindred – Laços de Sangue (Ed. Morro Branco)
Ursula K. Le Guin, ler tudo o que puderem! Publicada no Brasil pela Aleph e Arqueiro.


Do Amor – O Dia Em Que Rimbaud Decidiu Vender Armas (Ed. Quelônio, 2018) está à venda nas livrarias Blooks, Banca Tatuí e Tapera Taperá, em São Paulo. Para o restante do Brasil, há venda on-line no site da autora. É possível ler um trecho do livro aqui.

** A arte do topo do texto é de autoria da nossa colaboradora Carol Nazatto. Para conhecer melhor seu trabalho, clique aqui!