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The Bold Type, quarta temporada: sobre mudanças e corações partidos

A quarta temporada de The Bold Type foi um pouco diferente do que o público estava acostumado. Com uma demanda maior de episódios (foram 16 no total, ao invés de apenas dez como nos anos anteriores), a série dividiu sua narrativa em dois momentos completamente distintos. E aparentemente, essa não foi uma boa ideia. Se pudesse descrever o mais recente ano de The Bold Type em apenas uma palavra com certeza seria: mudanças. Não só na vida das protagonistas em si, mas também na forma como as coisas foram construídas dentro da narrativa.

The Bold Type sempre ofereceu um espaço inclusivo e diverso. E durante quatro anos completos, fez sua mensagem crescer e amadurecer na medida em que ia abordando a vida e a carreira de suas três protagonistas, Kat (Aisha Dee), Sutton (Meghann Fahy) e Jane (Katie Stevens). Para reforçar justamente este aspecto, a primeira parte da quarta temporada é uma mistura do que fez a obra se tornar tão aclamada e popular, ainda se mantendo como um refresco necessário quando se trata de representação da amizade feminina. Explorando o fim da mídia física no jornalismo e a missão da revista onde elas trabalham de migrar para plataformas digitais, o roteiro apresentou novos desafios paras as três, ao mesmo tempo em que resolveu estourar a bolha do jornalismo perfeito e idealista.

O seriado sempre foi bem “tradicionalista” ao abordar o jornalismo. Kat, Sutton e Jane trabalham juntas (porém em departamento diferentes) na revista de grande porte chamada Scarlet, sendo que quem comanda as três é Jacqueline (Melora Hardin). A história é baseada livremente em na carreira de Joanna Coles — uma das fundadoras da revista Cosmopolitan. E assim como Coles na vida real (e qualquer outra pessoa que seja ou tenha sido funcionário de um veículo midiático), as protagonistas tiveram que enfrentar uma mudança brusca na forma como as coisas acontecem na Scarlet, começando pela forma como elas encaram o jornalismo em si.

The Bold Type

Essa mudança é muito bem representada na série, principalmente levando em conta que as três têm funções completamente diferentes na empresa. Kat é responsável pelo setor de social media, enquanto Sutton é assistente de estilo e Jane é a repórter, com artigos pessoais e comportamentais. O desafio, no entanto, chega em doses pequenas para todas, mudando o que elas entendem de suas respectivas funções e como elas podem abraçar essa nova era da revista. O quarto ano começa exatamente depois de Jacqueline decidir soltar uma edição revolucionária da revista imprensa, que fala sobre feminismo, inclusão e ser você mesmo, com modelos de todas as raças, pesos e culturas — algo em falta em veículos como esse. Indo na direção oposta das coordenadas dadas pelos seus chefes (os poderosos empresários e acionistas que comandam a revista e queriam proibir essa versão), a chefe acaba sendo demitida e, no processo, estoura a bolha do jornalismo perfeito e intocável que Sutton, Kat e Jane (principalmente essa última) tinham.

Atenção: este texto contém spoilers! 

Jane sempre representou uma categoria de jornalistas quase extinta: o idealista. É claro que todo estudante começa achando que vai mudar o mundo, mas depois que começa a trabalhar no ramo a tendência é que esse espírito seja derrubado. Não é necessariamente uma regra, mas é mais comum do que pensamos. Muitas vezes isso acontece porque, ao entrar no mercado, as plataformas disponíveis estão mais interessadas em quantas pessoas vão acessar a página do que realmente criar conteúdo de qualidade (parece clichê falar assim, mas é a verdade pura e simples). Então, se Jane se mantém fiel aos seus ideais, é porque a Scarlet lhe proporciona isso como outro lugar com certeza não faria. De certa forma, essa característica era algo essencial para The Bold Type espalhar sua mensagem de inclusão e diversidade, mas ao mesmo tempo parecia quase impossível que tal bolha não fosse estourar, eventualmente.

Quando Jacqueline é demitida, Jane tenta achar uma forma de trazê-la de volta. Afinal, mais do que sua chefe, ela é também uma espécie de mentora — para as três, mas muito mais para Jane. Isso significa, claro, bater de frente com muitos homens engravatados e que realmente não ligam para o tipo de conteúdo que ela está produzindo, muito menos para se ele é honesto e pessoal. Essa missão é essencial para a jornada de Jane nessa parte em específico da temporada, sendo que o pessoal e o profissional aqui se misturam com muita facilidade.

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O tempo de aprender e achar sua voz já passou. Jane sabe que tipo de escritora ela é: uma que prefere contar histórias pessoais, e sua perspectiva sobre o mundo, sobre feminismo e assuntos femininos no geral é essencial na hora de compor um texto. Quando eventualmente consegue reinstituir Jacqueline para o seu papel como diretora da revista, sua dificuldade é transmitir essa linguagem para uma plataforma completamente digital. Mais do que isso, como usar os milhares de seguidores da Scarlet para falar sobre algo que realmente importa. Ao mesmo tempo, The Bold Type retoma com toda força a discussão sobre o câncer de mama e sua relação com a doença (que matou sua mãe).

Nas temporadas anteriores, Jane fez um teste de mapeamento genético (intitulado de BRCA) que deixou claro que ela tinha predisposição para, eventualmente, contrair câncer de mama. Entre as suas opções estava fazer uma dupla mastectomia, uma cirurgia para retirar as mamas. Até então sua decisão tinha sido esperar, mas na quarta temporada a protagonista finalmente resolve fazer a cirurgia. Segundo ela, sua maior vontade é viver mais do que apenas 32 anos (a idade da sua mãe quando ela morreu), e não esperar constantemente por uma doença. Sua necessidade de falar sobre a saúde feminina também é algo que aparece em outros episódios, quando ela contrai uma doença na vagina. Percebendo que ninguém ao seu redor consegue explorar o assunto sem ter vergonha de falar ou ir a fundo no problema, ela se mostra disposta a usar sua voz (mais uma vez) para desconstruir esse tabu.

Esses dois fatores combinados levam ela não só a ganhar uma missão especial de Jacqueline, que finalmente autoriza uma força tarefa para que ela escolha um time para conduzir uma série de matérias especiais (algo chamado de vertical no jornalismo, em inglês) sobre o assunto de sua escolha, como também ser selecionada para estar no time da 30 under 30 da revista Forbes, lista que apresenta um total de 600 personalidades promissoras que ainda não completaram 30 anos.

Como nem tudo é perfeito, enquanto sua vida profissional parece estar indo na direção certa, seu relacionamento amoroso com Pinstripe (Dean Jeannotte) é um problema constante na sua vida. Durante uma turnê para promover seu livro, Ryan acaba se envolvendo com outra mulher e traindo Jane. Inicialmente, ele diz que foi apenas um beijo, interrompido por ele próprio, que foi contar para Jane, e ela o aceita de volta apesar de ter uma relação conflituosa com o perdão. Mais tarde, no entanto, ele conta que acabou transando com a mulher também. Essa é uma história que se alonga durante toda a primeira parte da temporada, justamente para explorar a fundo o quanto essa traição teve influência na vida de Jane. Assim como de costume, ela canaliza suas inseguranças para a escrita e ao mesmo tempo levanta debates interessantes. Um dos seus textos originados nessa premissa questiona se ela é ou não uma má feminista por aceitar o namorado de volta após uma traição.

The Bold Type

Desde que acompanho The Bold Type, as críticas em relação a Jane são duras e consistentes comparada às outras duas protagonistas. E apesar de concordar que suas atitudes podem ser complicadas, existe também certa humanidade na forma como ela lida com seus problemas. Ela se questionar sobre seu lado feminista em uma relação amorosa onde rolou uma traição, ou apenas falar e chamar atenção para questões da saúde feminina é parte fundamental da série — e uma das coisas que a faz tão essencial.

Sutton Brady, fashion influencer

A trajetória de Sutton é o total oposto de Jane durante a quarta temporada. Seu relacionamento com Richard (Sam Page) ainda é uma grande parte da narrativa, e eles possuem um desenvolvimento saudável e interessante até esse ponto (chegaremos nisso mais tarde). Nos primeiros episódios, inclusive, Richard toma duas decisões importantes: deixar a Scarlet para comandar uma startup em Los Angeles; e pedir Sutton em casamento. Para a surpresa de absolutamente ninguém, ela aceita, claro. Os dois fatores, no entanto, não parecem combinar entre si, sendo que um relacionamento a distância é algo que complicada muito a vida sexual e romântica de ambos — mesmo que grande parte dos problemas eles realmente consigam resolver se falando e discutindo sobre todas as possibilidades disponíveis.

Se o seu relacionamento com Richard só tende a amadurecer, sua carreira vai na direção oposta. Por causa da transição da Scarlet, o orçamento para o departamento de estilo, onde ela ainda trabalha como assistente, acaba sendo congelado. Uma promoção, que era algo quase certo no seu futuro dentro da empresa, acaba sendo deixada completamente de lado por Oliver (Stephen Conrad Moore), que passa a priorizar a contratação de pessoas influentes no meio da moda e que possam ajudar a marca da marca no mundo digital, como fashion influencers. Ao perceber que não tem muita escolha e que, se não fizer nada, ficará para sempre estagnada em sua posição, Sutton embarca na jornada de conseguir mais seguidores em suas redes sociais e se tornar alguém indispensável para a revista.

Essa narrativa é interessante para a série porque tanto Jane quanto Kat têm carreiras relativamente avançadas. Aos quase 30 anos de idade, Kat comanda um departamento, enquanto Jane consegue explorar bem seus talentos como escritora. Sutton, em uma representação mais realista, ainda é assistente e não tem noção de quando as coisas vão melhorar. Ela resiste em fazer uma página no Instagram, e fica em confusa sobre qual o caminho que realmente deve tomar. Ela fica onde está, o lugar onde sempre sonhou em trabalhar e espera pacificamente por algo que nunca pode vir ou segue em frente em outro lugar?

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Independente da sua decisão, Sutton tem que continuar se expondo e provando seus talentos constantemente. E essa se prova uma jornada importante porque, na maioria das vezes, as coisas não acontecem da noite para o dia e o sucesso não exatamente depende do seu esforço ou talento. É uma combinação de fatores, inclusive sorte e oportunidades. Mostrar uma jovem mulher lutando para conquistar seu espaço é mais importante do que nunca, e até hoje uma forma de resistência.

Essa mesma narrativa também serve para esclarecer algumas coisas entre Sutton e Richard. Em “Some Kind of Wonderful”, décimo episódio da temporada, ela finalmente consegue a sua tão esperada promoção e desiste de ir morar com o noivo (e então marido) em LA. Isso causa certo conflito na relação entre eles, que é resolvido com a percepção total de Richard que, apesar dele ser parte importante na vida de Sutton, ela tem que ter espaço para crescer e explorar suas possibilidades, como permitiram que ele fizesse no começo da sua carreira. E se isso quer dizer lidar um pouco mais com um casamento a distância.

Ao mesmo tempo que a série explora o começo do casamento entre Sutton e Richard, também mostra Jacqueline e seu parceiro de anos e uma separação que é praticamente inevitável. Sem prestar atenção um no outro durante anos, Jacqueline e Ian (Gildart Jackson) têm que aprender a reconhecer a vontade e os sonhos dos seus parceiros outra vez, algo que bate diretamente com a necessidade que Richard tem de entender as decisões de Sutton. Mais de uma vez The Bold Type perde oportunidades incríveis de explorar personagens coadjuvantes para seguir com a trama das protagonistas. O que é fundamental, claro, mas deixa um gostinho agridoce na boca. Ao jogar uma luz no casamento de Jacqueline, ou na forma como Alex (Matt Ward) vê relacionamentos, ou na drag queen de Andrew (Adam Capriolo) e até mesmo na vida pessoal de Oliver, a série cresce muito e ganha novas e bem-vindas dimensões.

A independência emocional, profissional e sexual de Kat Edison

Jane tem a trajetória mais emocionante da temporada, enquanto Sutton tem a mais profissional. A de Kat, no entanto, serve para reforçar ainda mais alguns aspectos da sua personalidade e, principalmente, da sua índole. Se no começo da série ela tinha receio de ser chamada de a primeira mulher negra a comandar o departamento de redes sociais na revista em que trabalha, agora se mostra uma pessoa completamente ciente de quem é, usando da sua voz ativa nas plataformas digitais para construir um mundo melhor. E um jeito que ela encontrou de fazer isso foi concorrer a vaga de city council — algo que toma grande parte da sua narrativa na terceira temporada.

“Se me colocar à disposição das pessoas fizer uma mulher se sentir menos sozinha, menos envergonhada ou menos culpada então tudo isso terá valido a pena.” 

Mesmo que sua plataforma tenha sido baseada em inclusão e proteção de minorias, abordando assuntos complicados como aborto, ela acabou perdendo e permanecendo como social media na Scarlet. Mas toda a depressão e o sentimento de perda que ela sente pelo fato de ter perdido é canalizado em algo ainda melhor e mais importante na sua trajetória dentro da revista, sendo que ela luta constantemente para abrir espaços, dar voz para quem foi marginalizado por muito tempo e, principalmente, para criar um ambiente seguro dentro da revista, onde as pessoas encontrem histórias semelhantes às suas.

O estopim dessa trama acontece quando Adena (Nikohl Boosheri) tenta publicar uma matéria sobre terapia de conversão na revista e é barrada pelo conselho. Tanto Adena (que tem um histórico pessoal com o assunto) quanto Kat tentam burlar o sistema e achar novas formas de expor os acampamentos que tentam “mudar” uma pessoa de queer para hétero, mas são impedidas de novo e de novo, até que elas descobrem que um dos engravatados do conselho apoia um político que é a favor de medidas de conversão e que, inclusive, deu dinheiro para a campanha do mesmo. Depois de considerar todas as suas possibilidades, Kat acaba expondo o empresário e eventualmente perde seu emprego dentro da revista. Apesar de parecer radical, The Bold Type brinca com sua independência profissional há algum tempo e o caminho que se estende à sua frente parece ainda mais interessante e brilhante do que nunca.

Se sua emancipação profissional é brilhante e inspiradora, sua vida pessoal também. Sem namorar com Adena ou com qualquer relacionamento sério no seu horizonte (apesar das duas estarem se reaproximando aos poucos), Kat tem a possibilidade de explorar sua sexualidade mais a fundo. Em um dos episódios mais interessantes da temporada, ela se envolve com o cara que sugere que ela faça pegging nele. Ou seja, penetrar ele com um dildo. No começo ela hesita em aceitar, mas na medida em que vai trabalhando suas inseguranças ela percebe que essa é uma forma de até mesmo reafirmar sua auto-estima, o que transforma toda essa narrativa em algo que vai muito além de um simples alívio cômico, mas como algo sensível e necessário. Não existem muitas séries que falam sobre o ato de fazer pegging no geral, muito menos de forma tão clara e sem misticismo.

The Bold Type é uma série que me incentiva a ser melhor constantemente. Assim como Jane, já fui uma jovem mulher que gostaria de “escrever coisas melhores e maiores”, com amor e idealismo quase cegos pelo jornalismo e o que ele pode fazer pela sociedade. Ao mesmo tempo, também já fui como Sutton e não sabia como seguir em frente ou qual seria o próximo passo na minha carreira. A série geralmente é aclamada pela forma que trata de representação e amizade feminina, ou aborda inclusão de forma orgânica e necessária, mas também devia ser comentada por sua representação sobre profissões e as dores de tentar crescer em um mercado de trabalho que (na maioria das vezes) não é ideal, além de, ao mesmo tempo, tentar sempre fazer a coisa certa. Se tem uma coisa que essa produção pode fazer é incentivar a próxima geração de profissionais (mulheres ou não) a serem pessoas melhores dentro dentro do ambiente corporativo, estender as mãos para seus colegas, trabalhar nas adversidades e não simplesmente passar um por cima do outro.

E isso tudo nos leva a segunda parte da quarta temporada.

O que diabos aconteceu com The Bold Type? 

The Bold Type sempre foi uma série com certa limitações. Por estar presente em uma emissora como a Freeform, que é voltada para produções leves e jovens, talvez existisse uma barreira que impedisse a série de alcançar todo o seu potencial (apesar desse ser um termo bem relativo). Mesmo assim, ela sempre fez o melhor que pôde dentro de suas próprias limitações. E, afinal, que obra não tem alguns defeitos para adicionar à balança? Mas a segunda parte da quarta temporada foi algo diferente. Depois de um breve hiato, a narrativa deu um pequeno salto de tempo. Jane já tinha tido a cirurgia e agora já comanda o seu vertical; Richard e Sutton estão na vida de recém-casados; e Kat, claro, está entre empregos após todo o fiasco com a Scarlet. E é nessa última trama que está o maior problema.

Depois de ser demitida da Scarlet, Kat se encontra em uma espécie de limbo. Ela é obrigada a alugar seu apartamento e apesar de ter várias entrevistas em lugares grandes e importantes, simplesmente não está disposta a abrir mão do seu posicionamento político para se encaixar em um ambiente corporativo e desonesto. É assim que ela acaba conseguindo um emprego como bartender no clube intitulado de The Belle, que reúne várias mulheres discutindo pautas pertinentes para o feminismo e o mundo em si. Mesmo presente em um ambiente completamente novo, Kat não hesita em sugerir melhoras e se engajar em conversas. E, até certo ponto, é realmente refrescante ver a protagonista em uma nova posição, enfrentando desafios e tentando fazer uma diferença no mundo. É assim que ela tem a ideia de criar um podcast de entrevistas onde iria entrevistar membros distintos do clube, expandir e dar voz a outras mulheres.

É assim também que ela conhece Ava Rhodes (Alex Paxton-Beesley), uma mulher conservadora e republicana que atua como advogada. Além de Ava ser um membro do clube, ela também é filha do empresário que Kat denunciou por apoiar terapia de conversão na primeira parte da temporada. Quando a protagonista precisa de um convidado interessante para participar do seu primeiro episódio do podcast, ela convida Ava — apesar das duas viverem constantemente em pé de guerra. Mas será que todas as mulheres no The Belle a melhor que Kat conseguia pensar era uma conversadora com um pai que apoia terapia de conversão? Não parece algo natural ou condizente com a forma que a mente da personagem funciona. À medida em que a trama vai se desenrolando, no entanto, as duas começam a criar uma espécie de conversa saudável, apesar das suas diferenças, e acabam se aproximando. Quando Kat sugere que ela pare de falar em nome da comunidade LGBTQ+, já que ela não pertence a mesma, Ava releva (para surpresa de absolutamente ninguém) que é lésbica e, por isso, pode sim falar sobre propriedade e vestir a camisa do movimento, mesmo que suas opiniões não sejam parecidas com as de Kat.

Não haveria problema nenhum com esse plot se não fosse por dois problemas centrais que se explanam na narrativa. O primeiro é o fato de que a trama em si faz com que Kat entre em uma espiral de insegurança e desconfiança. Ela não consegue contar para suas amigas o que está acontecendo, assim como começa a sentir mal com ela mesma pela escolha de se envolver com Ava. Se a primeira parte da quarta temporada foi sobre ela encontrar meios de potencializar sua voz e crescer pessoalmente, abraçando todos seus os lados, inclusive sua bissexualidade, tudo parece seguir no caminho oposto agora. Sem contar que a narrativa claramente estava aos poucos traçando uma reaproximação entre Kat e Adena — algo que foi completamente jogado fora na segunda parte.

O segundo motivo se encontra no fato de que Eva tem algo que pode ser considerado quase uma redenção, por causa de Kat. Durante uma entrevista para uma emissora conservadora, um jornalista começa a questioná-la sobre sua aproximação repentina com a protagonista, ao qual ela responde que ouvir opiniões diversas é algo bom e importante. Ou seja, por sua intimidade com Kat, o público passa a vê-la com um olhar mais empático.

Não sou totalmente contra a narrativa dos opostos que se atraem quando desenvolvido de uma maneira decente e com calma o suficiente para dar espaço para os personagens realmente se envolverem de forma limpa, mas em The Bold Type toda a história parece fora de contexto. Como se todos os roteiristas tivessem sido demitidos de uma hora para outra e novos entraram no lugar da noite para o dia. Kat em si sempre foi uma mulher segura na forma que pensava e apesar de ter tido seus momentos para refletir sobre suas escolhas e ações, sempre escolheu ficar ao redor de pessoas com uma posição parecida com a sua — e, com isso, quero dizer pessoas que não são preconceituosas e apoiam a terapia de conversão. Fora que, no geral, é quase bizarro essa narrativa tenha surgido em um ano como 2020, quando Donald Trump literalmente tranca crianças imigrantes em jaulas e as separa dos pais e tem algumas das posições mais retrógradas sobre inclusão do que qualquer outro líder do mundo (exceto, muito provavelmente, no Brasil).

Tudo foi tão estranho que a própria Aisha Dee, intérprete de Kat, falou ao público, em um post bem corajoso no seu Instagram. Na ocasião, ela chamou a atenção para a trajetória da sua personagem na temporada e como tudo parecia fora de ordem, tendo abordado, ainda, a falta de representatividade por trás das câmeras na série.

“Sabendo do poder que a arte tem de moldar mentes, tenho que falar sobre isso. The Bold Type chegou para mim em um momento que minha estima estava lá em baixo. Pela primeira vez na minha vida pude interpretar um personagem que estava no centro da sua própria narrativa. Ela não era apenas a melhor amiga da personagem branca. Ela era empoderada e confiante e enfrentou a busca por entender sua identidade queer de forma corajosa. E em retorno, seus amigos a receberam com amor e aceitação. A diversidade que vemos na frente da câmera, no entanto, tem que ser uma reflexão do que está nos bastidores. A responsabilidade de falar por uma comunidade inteira nunca deve cair nas mãos de uma pessoa. Em 48 episódios, apenas uma mulher negra dirigiu um episódio da série e demorou 3 temporadas para contratarem uma profissional que sabia lidar com meu tipo de cabelo.” 

Ainda não ficou claro aonde Kat e Ava vão a seguir, mas se a relação entre elas é algo que precisaremos suportar nos próximos episódios, ao menos por enquanto, então que pelo menos Ava receba um desenvolvimento apropriado, mais complexo e menos superficial, ao invés de ter uma redenção meia boca por meio de Kat.

Apesar de Kat ser a personagem cuja jornada foi mais notoriamente falha, Jane e Sutton sofrem com o mesmo problema da mão invisível das mudanças. No caso de Jane, ela precisa lidar com sua recente cirurgia e aprender a entrar em contato com seu corpo novamente — algo que tem dificuldade em fazer —, e, para isso, conta com a eventual ajuda das duas melhores amigas, do pai e até mesmo do trabalho. Com a sua vertical (que ela intitulou de “The Falling Feminist”) funcionando, ela procura vozes que podem ser uma adição pertinente para o seu time. É assim que conhece Scott (Mat Vairo), que é contratado para ser o contraponto masculino nas suas matérias. Consequentemente, ela se torna chefe de Scott.

Por causa da sua vulnerabilidade recente, que envolve sua cirurgia e o término com Pinstripe, e até mesmo a dificuldade de aprender e se tornar chefe, Jane acaba se aproximando de Scott para além das obrigações chefe/funcionário. The Bold Type levanta uma discussão sobre o abuso de poder dentro de ambientes corporativos — sendo que eles saem para investigar histórias juntos —, reforçando a necessidade de fazer o romance entre eles se desenvolver de forma natural e certa. Mesmo assim, parece que ainda existe algo faltando. Talvez seja o fato de que todos os dilemas de Jane são resolvidos às pressas, ou simplesmente o fato de que a dinâmica nasceu sem que ela nem pudesse processar a traição do ex-namorado. Apesar dos poucos momentos entre eles serem notáveis, tudo parece um grande tapa buraco.

Por fim, é Sutton quem fica com a trama mais triste e difícil da quarta temporada de The Bold Type. É difícil acreditar que depois de uma metade de temporada inteira sofrendo para conseguir subir de cargo no seu emprego, ela tenha que lidar com problemas sérios no seu relacionamento. Que, devo acrescentar, tinha acabado de ser concretizado em matrimônio. Uma mulher, portanto, não pode ter tudo? Nem que apenas por um tempo considerável para que ela consiga absorver a felicidade e o sentimento de ter conquistado seus sonhos?

Quando a segunda parte da temporada começa, Richard e Sutton têm o momento de suas vidas: ela está feliz com o trabalho, ele planeja seu futuro na nova empresa e, mais do que isso, eles estão satisfeitos e apaixonados um pelo outro. É nesse contexto colorido que Sutton acaba engravidando e, logo em seguida, sofrendo um aborto espontâneo. Algo comum na primeira gravidez, Richard diz. Logos eles tentarão de novo. O único problema é que, no meio da confusão e da dor, Sutton descobre que ela tem uma vida que considera perfeita e não quer ter filhos agora ou nem sequer no futuro. Essa é, claro, uma discussão muito complicada porque Richard já expressou com todas as palavras que quer ter filhos e não quer esperar anos por isso, já que a diferença de idade entre eles é considerável.

O que me deixa intrigada nessa história é o tempo em que ela chega. Esse é um tópico importante e que merece ser discutido: afinal, quantas mulheres não apenas acatam a maternidade compulsória sem pensar duas vezes no que elas realmente querem? Sutton não tem esse problema. Apesar de doer e ela sempre pensar no seu parceiro, e no que é bom para ele, ela sente a necessidade de, acima de tudo, ser honesta consigo mesma. Não existe como um relacionamento dar certo sem todas as cartas na mesa, e Sutton entende isso muito bem. Ela procura entender seus sentimentos para só então expô-los a Richard — que, no entanto, reage da pior forma possível e acaba deixando-a (um comportamento também justificável em vista das prioridades dele). Para Richard, criar uma família é algo essencial, enquanto que, para Sutton o que eles têm já é suficiente. E por que não seria? Ela acabara de se casar, é jovem, tem uma vida inteira pela frente e sua carreira está apenas começando a engrenar. Existem tantas possibilidades no seu futuro, e ela vê isso com muita clareza.

A impressão que fica, no entanto, é que esse é o final definitivo de Richard e Sutton: um casal querido pelos fãs e que não teve nem tempo de ter seu casamento explorado antes de ser interrompido por uma convergência de opiniões. Parece que, assim como acontece nas histórias de outras protagonistas, essa narrativa chegou na hora errada. E, apesar de ser algo necessário de ser abordado, não deixa de ser também dolorido, triste e, até mesmo, apático — o que se reflete na jornada de Sutton nos últimos episódios, quando ela volta para sua cidade natal, dorme com o ex-namorado (um homem casado) e, finalmente, entende que com Richard ou não, com um casamento falho ou não, ela chegou longe.

Quatro anos depois do seu começo, The Bold Type ainda é uma obra relevante e essencial, e continua a série que eu gostaria de ter assistido na minha adolescência. A necessidade de amadurecer e criar desafios diferentes para as protagonistas na medida em que elas vão crescendo como pessoas e profissionais é algo mais do que compreensível e, ao menos até a primeira parte da temporada, o trabalho havia sido feito com cuidado e respeito. É impossível, no entanto, não pensar no depoimento de Dee: até que ponto o seriado é honesto sobre a mensagem embutida em sua essência se essa inclusão não existe em todos os níveis hierárquicos? A renovação para uma quinta temporada já é quase certa; existe ainda, portanto, a possibilidade de consertar todos esses erros e fazer com que a produção volte a ser uma pequena revolução na maneira como se faz TV para o público jovem.

4 comentários

  1. Ótima análise! A série realmente pareceu um trem fora dos trilhos nessa última parte da 4a temporada. Notei um sentimento generalizado de decepção entre os fãs. Ficou um gostinho amargo de ter a nossa vontade acatada (temporadas maiores), mas ter recebido essas histórias com pouco ou nenhum cuidado no seu desenvolvimento. Só discordo um pouco da avaliação de que a Sutton “procura entender seus sentimentos para só então expô-los a Richard” – achei que foi tudo absurdamente corrido e me parece que ela foi de “podemos esperar 5 anos” pra negativa absoluta em menos de 48h. Entendo que isso partiu do desejo dela de não enganar o Richard, mas mostrar ela refletindo por algumas semanas ao menos não faria mal. A Kat sempre foi conhecida por ser a amiga impulsiva, Jane a “overthinker” e Sutton um equilíbrio entre as duas – até por ser a única que começou a pagar as próprias contas/teve um relacionamento familiar difícil desde cedo. Pra mim, a Sutton sempre foi a mais madura, e essa correria pra resolver a trama tirou ela completamente “do personagem”. A questão da maternidade compulsória devia ter sido explorada com o cuidado que a série dedicou a outros tópicos. Também é importante lembrar que dois episódios não foram exibidos em função da Covid-19, mas me parece pouco pra consertar todos os erros da 4B. Resta torcer pra eles ouvirem a Aisha e refletirem antes de retomarem as gravações!

  2. Ahh, the Bold Type, como explicar o meu encanto por essa série? Foi uma grande surpresa para mim, que esperava uma sex and the City atualizada, o que par minha já estava bom, para ter um refresh de uma série que sempre amei também. Mas fui surpeendida a cada episódio com a abordage mde questões séries, importantes e necessárias a serem debatidas. Principalmente porque o público que assiste é jovem. A questão do câncer de mama se atualizou, a questão de Sutton ser muito segura ao priorizar a sua carreira profissional apesar de amar muito seu marido e ser firme em sua posição de não ser mãe no momento, as descobertas de Kat, que no início se definiu 100% hetéro e depois se vê namorando com Adina. Considero que ela foi a que teve a maior evolução na trama, pois saiu de uma família estável de psicólogos bem de vida, conseguiu o seu emprego por indicação de uma maneira bem fácil, e ao longo da série ela foi crescendo e vendo a importância de sua representatividade no mundo queer e como uma mulher negra, jovem (apesar dela ter seus privilégios), e ela assume uma posição política de ‘mudar o mundo’, de querer ‘salvar’ o planeta. Estou ansiosa para a quinta e última temporada, mas, de verdade, estou satisfeita com o que assisti até agora. Ao mesmo tempo que a série aborda temas complicados (de maneira um pouco superficial), mas só de abrir essas portas e levar as coisas de maneira ‘leve’, é ótimo. Porque é uma entrada mais natural na cabeça das pessoas, de todes que assistem. Convido vocês a conhecerem o meu blog, será um prazer!

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