Argentina, 1985, o candidato argentino ao Oscar de 2023, se assemelha com os premiados compatriotas na categoria de Melhor Filme Estrangeiro (atual Melhor Filme Internacional), A História Oficial (1985) e O Segredo dos Seus Olhos (2009), ao trazer a ditadura militar em seu enredo. As três obras abordam o tema de formas diversas, exemplificando a potência do cinema argentino, com muito a dizer sobre o seu passado e o nosso presente.
Dirigido por Santiago Mitre, o filme é centrado no Julgamento das Juntas, que fez história ao julgar em um tribunal civil ex-líderes militares por crimes brutais cometidos enquanto o país estava sob uma ditadura. Ao longo de sete anos, a ditadura argentina vitimou cerca de trinta mil pessoas, entre mortos e desaparecidos, segundo organizações dos direitos humanos. Diferente do Brasil, cuja Lei da Anistia de 1979 perdoou crimes de motivação política e a Comissão da Verdade (cujo objetivo é expor crimes cometidos contra a humanidade e alertar a sociedade para que atos dessa natureza não se repitam) aconteceu muito tardiamente (o relatório final da Comissão Nacional da Verdade foi entregue em 10 de dezembro de 2014) teve com pouco impacto na sociedade brasileira, a Argentina iniciou investigações sobre os crimes cometidos por militares logo após o fim do regime.
O governo de Raúl Alfonsín, o primeiro da redemocratização, determina a investigação dos crimes logo ao assumir, em dezembro de 1983; e o julgamento dos acusados é entregue à jurisdição civil, a contragosto dos militares, que desejavam ser julgados pelo Tribunal Militar. É com o desafio de contextualizar o público internacional que o filme começa, apresentando de forma um pouco confusa textos descrevendo brevemente a história da Guerra Suja da Argentina e o Julgamento das Juntas. Porém, esse início descompassado logo tem fim, sendo substituído por um filme palatável para diferentes públicos, ainda que o tema seja carregado de aspereza.
Argentina, 1985 lembra muitos filmes de Hollywood do gênero de tribunal, guiando a audiência em uma tradicional jornada rumo ao ápice, isto é, a condenação ou não dos acusados. O filme, no entanto, supera clichês e apresenta uma série de virtudes. Com mais de duas horas de duração, o filme mantém excelente ritmo, sem nunca cansar o telespectador. A montagem de Andrés P. Estrada valoriza o suspense e o drama da obra, enquanto o roteiro de Santiago Mitre e Mariano Llinás consegue equilibrar muito bem os núcleos dos personagens principais, a busca por testemunhas da ditadura e os depoimentos de vítimas.
O filme faz uso frequente de detalhes históricos que se sobrepõe a imagens de arquivo reencenadas e a cobertura televisiva original da época, em uma montagem que tanto expõe os esforços de se reunir provas contundentes sobre os crimes cometidos contra a sociedade argentina quanto relembram constantemente que o que vemos é o reconto de uma história real.
Ainda que mostre muito bem a gravidade dos atos ilícitos cometidos pelo regime militar, a obra traz momentos de alívio cômico, facilitando sua recepção. A exemplo de quando o protagonista, o promotor Julio Strassera (Ricardo Darín), ao perceber que a velha guarda legal argentina está do lado dos militares, faz uma lista de potenciais colaboradores, separando-os entre os mortos, os fascista e os superfascista. Sem opção, resta a Strassera se aliar ao jovem Luis Moreno Ocampo (Peter Lanzani) e uma equipe de recém graduados em direito, cuja seleção também rende uma divertida cena.
Também méritos do filme são seus protagonistas e performance do elenco. Ricardo Darín faz um Strassera obstinado, ao estilo herói clássico das narrativas de tribunal, mas que, na presença da família, apresenta um lado carinhoso e vulnerável diante do caso perigoso que tem nas mãos — ele, bem como sua família e membros de sua equipe, recebem diversas ameaças de morte ao longo de todo o julgamento. Peter Lanzani interpreta Luis Moreno Ocampo de forma muito eficiente, mostrando os esforços da personagem em fazer justiça e revelar a verdadeira face do regime. Ocampo, pertencente a classe dominante do país, tem conexões pessoais e familiares com os militares; sua mãe, em particular, era uma pessoa profundamente conservadora, com a crença de que nada havia de ilegal nas ações militares. É de Ocampo a frase que ilustra a importância do apoio popular, sobretudo de uma camada específica da sociedade, para legitimar o julgamento dos militares:
“… [a classe média] é aquela que precisamos convencer para termos a legitimidade que precisamos, levando em conta a tradicional tendência da classe média de justificar qualquer golpe militar.”
Outros personagens que se destacam no filme são Silvia (Alejandra Flechner) e Javier (Santiago Armas Estevarena), a esposa e o filho de Strassera, respectivamente. Alejandra Flechner brilha ao interpretar a personagem que está mais próxima do público, por não estar envolvida com o julgamento, apoiando sempre o marido com sua sabedoria. Já Santiago Armas Estevarena entrega cenas memoráveis como o filho que auxilia o pai, seja espionando a irmã mais velha, Verónica (Gina Mastronicola), ou os juízes que irão julgar as acusações contra os militares.
Argentina, 1985 deseja lutar pela memória, liberdade e justiça, fazendo isso de forma muito contundente ao destacar, entre os muitos relatos de vítimas (mais de 800 testemunhas depuseram no julgamento real), o depoimento angustiante de uma mulher que, mesmo grávida, foi raptada e torturada pelos militares. É também prova da qualidade da interpretação de Darín o momento emocionante em que Strassera entrega a acusação final e aponta os crimes brutais da ditadura argentina: “… o sadismo não é uma ideologia política, nem uma estratégia bélica, mas uma perversão moral”, diz em seu longo, mas apropriado e necessário discurso, concluído com o arrepiante: “Senhores juízes, nunca mais!”
Argentina, 1985 recebeu 1 indicação ao Oscar, na categoria de: Melhor Filme Internacional.