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As Bruxas de Bass Rock: dor e misogina que atravessa gerações

Bass Rock é uma ilha localizada ao leste da Escócia, uma rocha vulcânica íngreme que atinge 107 metros de altura em seu ponto mais alto. Localizada a cerca de dois quilômetros do mar, a ilha possui um farol, construído em 1902, e os restos de uma capela. Da janela de sua casa, Ruth consegue ver a ilha se erguendo em meio ao mar, uma testemunha silenciosa e gelada de toda a violência perpetrada por homens e que envolveu diferentes gerações de mulheres que por ali viveram.

“(…) era uma mulher cheia de vida demais para que esse tipo de coisa acontecesse com ela. Certamente jamais se sentaria sozinha em um cômodo, perguntando-se como teria ido parar ali, nem encararia o próprio rosto irreconhecível no espelho, imaginando que tipo de pessoa teria se tornado.”

É nesse cenário que a escritora Evie Wylde desenvolve o enredo de As Bruxas de Bass Rock, lançado no Brasil pela DarkSide Books com tradução de Floresta. Em seu livro, a autora entrelaça as histórias de três mulheres que, vivendo em períodos diferentes e sempre nos arredores da ilha, sofrem violências dos homens em suas vidas e precisam ser resilientes para perseverar. As Bruxas de Bass Rock é um livro construído com base em uma intrincada trama de assombrações, reais e imaginadas, misoginia e masculinidade tóxica, e como a sociedade opera de maneira coletiva para quebrar os espíritos das mulheres de diferentes gerações. O que foi feito às mulheres ao longo da existência da humanidade ecoa em todas as páginas do romance de Evie Wylde, quase como um grito entalado na garganta querendo sair e bradar contra todas as injustiças cometidas. Sua obra é de ficção, mas a realidade, sabemos bem, é tão assustadora quanto — e é dessa maneira que acompanhamos as jornadas de Sarah, Ruth e Viviane.

As Bruxas de Bass Rock

No século XVIII está a história de Sarah, uma adolescente acusada de bruxaria que precisa fugir ao lado de um padre e seu filho, pois o vilarejo em que se abrigava decidiu queimá-la. A menina parece resignada com o seu destino, visto que sabe da maldade dos homens e como eles fazem o que bem entendem com as mulheres ao seu redor, mas, mesmo assim, permanece em fuga até que esse mesmo destino a alcança de maneira cruel. No pós-Segunda Guerra Mundial, está a história de Ruth: recém casada com Peter, um viúvo com dois filhos pequenos, ela se muda para uma mansão à beira-mar cuja vista é Bass Rock. Ainda que se esforce para criar um verdadeiro lar para Peter e seus filhos, Ruth sempre se sente à sombra de Elspeth, a primeira esposa de Peter, e nada do que ela faz parece ser suficiente para o marido.

Ainda de luto pela perda do irmão, Anthony, que morreu em combate na Segunda Guerra Mundial e cujo corpo nunca foi recuperado, Ruth tenta preencher seus dias se tornando uma boa mãe e dona de casa, mas nenhuma de suas ações atende às expectativas de Peter ou da comunidade local — ali, todos parecem ter instruções para Ruth, principalmente o estranho padre da paróquia local. Peter começa a se ausentar da casa com uma frequência cada vez maior, e com os filhos em um internato, Ruth se vê na companhia apenas de Beth, a mulher responsável por limpar e cozinhar para a família. O luto de Ruth pela perda de Anthony é uma constante em sua narrativa, assim como na de Viviane, que está no tempo presente e foi contratada para cuidar da antiga mansão em que Ruth vivia. Viviane perdeu o pai recentemente e chega para limpar e cuidar da casa de sua avó, Ruth, apenas para descobrir que, na verdade, sabe pouco a respeito da história da família, assim como dos mistérios que envolvem a mansão, Bass Rock e as mulheres ao seu redor.

“Mas o barulho cessou. À beira-mar, o céu começa a escurecer; um raio de sol ilumina a ilha de Bass Rock. É dourado e amarelo, e me deixa triste.”

A estrutura do romance de Evie Wylde se revela a cada capítulo onde os pontos de vista das três mulheres — Sarah, Ruth e Viviane — é intercalado, mostrando conexões entre suas histórias tanto por meio do local em que estão, quanto pela condição de ser mulher em um mundo dominado por homens. Embora em As Bruxas de Bass Rock a autora dedique um tempo maior e, logo, mais páginas, às tramas envolvendo Ruth e Viviane, a história de Sarah é capaz de deixar o leitor com um gosto amargo na boca por muito tempo. Tanto pelo momento em que se passa, no século XVIII em meio a uma caça às bruxas, quanto pelo destino da adolescente.

O livro, de maneira geral, é brutal em sua narrativa e não nos poupa dos horrores perpetrados contra mulheres. Evie Wylde explora cada nuance possível da violência e misoginia de nossa sociedade, mas de uma maneira que somente a autora é capaz de fazer. Ainda que As Bruxas de Bass Rock seja muito diferente de Onde Cantam os Pássaros, seu primeiro livro publicado no Brasil pela DarkSide Books, é notável como as particularidades de sua escrita saltam aos olhos. Wylde é capaz de misturar realidade e ficção de maneira única, criando em seu romance um terror quase gótico com direito até a uma mansão mal-assombrada à beira mar, espíritos e bruxas.

“Não riu, não chorou, mas, quando se esforçou para pensar em alguma reação além dessas duas, nada lhe veio à mente.”

Evie Wylde explora com maestria a mente disfuncional dos homens de sua trama, pintados em cores tão frias e cruas que causam arrepios mesmo que sejam ficcionais. A manipulação está toda lá, assim como o comportamento abusivo e cheio de falhas de personagens que se sentem donos das mulheres com que se relacionam. Para Wyld e suas bruxas, o terror não está no sobrenatural ou nos fantasmas que espreitam dos cantos escuros, mas de homens bem conhecidos, capazes de transformar em verdadeiro pesadelo a existência de uma mulher. As Bruxas de Bass Rock é uma leitura intensa e tão pesada quanto possível, mas belamente escrita por uma autora que sabe muito bem do que está falando. Wyld não deixa de reunir certo humor ácido e sarcasmo em suas páginas, mesmo lidando com temas complexos e difíceis, e aí está toda a magia de sua escrita incrível.

Ao final de sua narrativa, Bass Rock permanece impassível diante das brumas que a envolvem e do mar que a açoita, um lembrete fixo da indiferença e crueldade praticada por nossa sociedade contra mulheres e crianças. Ainda que não tenha muitas passagens explícitas de violência, As Bruxas de Bass Rock não deixa de ser uma leitura difícil devido à brutalidade de sua realidade contada. Por dias à fio continuei a pensar em suas personagens e como, ao redor do mundo, ainda vivem, e sofrem, muitas Sarahs, Ruths e Vivianes.

“Tenho uma sensação estranha, o tipo de sensação de quando olhamos para uma mulher que morreu há muito tempo e sabemos que ela carregava dentro de si tudo que era necessário para tornar nossa existência possível.”

O exemplar foi cedido para resenha por meio de parceria com a DarkSide Books.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!

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